Cinema capitalista X cinema de Estado
Enviado: 23 Jan 2008, 23:15

Cinema capitalista X cinema de Estado
por Ipojuca Pontes em 28 de abril de 2006
Resumo: Se o representante do cinema capitalista errar, e o filme não der retorno de bilheteria, pagará o prejuízo com dinheiro próprio. Se o cineasta do cinema do Estado errar, basta deitar falação ideológica na mídia e aguardar a nova abertura dos cofres estatais - e tudo recomeça de novo.
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Quem quiser saber a diferença entre o cinema do capitalismo e o cinema patrocinado pelo Estado basta ir ver “16 Quadras” (“16 Blocks”, Image Films, EUA, 2006) e “Brasília 18%” (Petrobrás e Regina Filmes, Brasil, 2006), ambos em exibição em salas nacionais (no Rio, salas 1 e 2 do São Luiz). O primeiro, dirigido por Richard Donner, é produzido por empresa independente, fruto de dinheiro arrecadado nas bilheterias, com a intervenção de companhias de seguros, agentes e empréstimos bancários; o segundo, de Nelson Pereira dos Santos, é feito com o dinheiro da Petrobrás, estatal responsável pelo empobrecimento do povo brasileiro, visto que produz um dos combustíveis mais caros do mundo; com a grana fácil do BNDES, extraído do Fundo de Amparo ao trabalhador – FAT; e com a grana da Eletrobrás, uma empresa que aumenta os preços da energia elétrica a cada três meses.
Os dois filmes tratam da corrupção nos meios oficiais: o americano disseca a virulência da geografia criminosa de um distrito policial de Nova York, o brasileiro pretende denunciar a putrefação dos bastidores políticos de Brasília e arredores, ambos procurando trabalhar dramaticamente em cima de fatos e personagens atuais – com uma diferença básica: enquanto o filme capitalista palpita de vida, sinceridade, emoção e interesse, o cinema do Estado vegeta no solo árido da inconsistência, da chatice, da preguiça e do escapismo. E a mediocridade do filme nacional não pode ser atribuída à falta de dinheiro: é plausível garantir que, com as despesas de lançamento, “Brasília 18%” supere a casa dos US$ 3 milhões – uma quantia astronômica para os cofres de uma nação que não consegue pagar salário mínimo aos seus professores primários.
Em “16 Quadras”, um detetive alcoólatra (Bruce Willis, excepcional) recebe a missão de escoltar um marginal que servirá de testemunha (Moss Derf, negro comovente) até a Corte Judicial, em Chinatown, que fica a 16 quadras de distância. No trajeto, uma autêntica prova de obstáculos, ele descobre que a própria polícia (inclusive o seu parceiro, o detetive Nugent - David Morse, perfeito) quer liquidar a testemunha. A trama é antiga, vem de Homero e até João Ubaldo, em “Sargento Getúlio”, dela se valeu. Mas o que resulta da narrativa em tempo real é um primor: enquanto detetive e marginal escapam pelos descaminhos do asfalto selvagem, o filme avança pleno de vibração, os personagens se descobrem e evoluem como seres humanos, consciente do valor da vida, os dois na busca da redenção. Tudo, a partir de um projeto de cinema cuja essência é: ganhar dinheiro.
O filme de Nelson Pereira se vale de fatos folclóricos do apodrecido tecido político-social brasiliense - por exemplo: do caso da mulher de senador que foi seqüestrada e fotografada nua com o amante, num motel, nos anos 80; do assessor parlamentar José Carlos dos Santos, que matou de picareta a mulher, Ana Elizabeth, e depois denunciou as falcatruas dos anões do orçamento (no tempo de Itamar); da ação do legista Eduardo Reis, do IML de Brasília, etc. - para flagrar a perplexidade de Olavo Bilac (Ricceli), um legista brasileiro radicado em Los Angeles, chamado às pressas para assinar um laudo conclusivo sobre a identidade do corpo de uma mulher, Eugênia Câmara (K. Carvalho), personagem improvável, que “sabe demais” sobre os desvios financeiros de uma quadrilha de parlamentares.
No seu enfadonho “Marienbad” dos pobres, que labora em cima do discurso verbal, Pereira sugere que quem está por trás de tudo é um senador, Silvio Romero (C.Vereza, esboçando estereótipo embigodado que lembra Zé Sarney, o “bengalinha” dos incentivos fiscais na área da cultura), mentor da tunga no orçamento da União. O negócio é de doer, pelo artesanato primário da dramaturgia: querendo dar um tom ambíguo à narrativa, 100% artificial, Pereira mete na história um cineasta drogado, Augusto dos Anjos (M. Melamed), amante da trêfega Eugênia, que poderá servir de bode expiatório ao projeto da quadrilha. Numa atmosfera marcada pelo inverossímil, o legista, que pode ser considerado um dos personagens mais tolos já criados pelo cinema, passeia sua irresolução gaguejante como a Cinderela num bordel de prostituta – quem sabe a reedição de Lula, o ídolo de Nelson Pereira na vida real, que nada sabe, nada ouve e nada vê.
No final do melodrama, o diretor, tradicional lobista do cinema nas ante-salas do poder corrupto de Brasília, revela o real objetivo do filme: ele faz o cineasta caboclo, ao defender-se das acusações, dizer, num depoimento, que pode ser viciado e alcoólatra, mas não é ladrão nem assassino, terminando por amaldiçoar o poder do dinheiro. Aqui, Pereira abusa dos fatos. Não bastassem os comprovados e recentes escândalos de “O Guarani” e “Chatô”, o próprio ato de desperdiçar o dinheiro público em filmes insolventes, para além de imoral, só coonesta a prática consagrada pela elite política tupiniquim, que é a de se dar bem em cima do suor da patuléia ignara.
Voltando ao tema do cinema capitalista e do cinema do Estado, pode-se afirmar que a grande diferença é a seguinte: se Donner, de 76 anos e mestre na arte de filmar, errar a mão, e o filme não vender tickets na bilheteria, ele vai passar muito tempo na geladeira ou pagar o prejuízo com dinheiro próprio. Se o cineasta do cinema do Estado errar, como em geral erra, não tem problema: basta tirar da cachola uma “idéia”, deitar uma falação ideológica na mídia e aguardar a nova abertura dos cofres das estatais - e tudo recomeça de novo. Com uma diferença: a sala de “16 Quadros” estará lotada, com o público vibrando; e a de “Brasília 18%”, com apenas 6 pessoas (sessão das 21h, dia 24/04/06), será a jaula de um público miseravelmente frustrado e até enfurecido.