Squaters - sociedade alternativa

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Herf
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Squaters - sociedade alternativa

Mensagem por Herf »

“O fato de não trabalharmos não significa que não fomentamos reflexões, não geramos debates nem fazemos circular as idéias que assimi­lamos, lendo as centenas de revistas, livros e filmes que quem está ‘trabalhando’ produz – mas mal tem tempo de consumir...”
Enquanto eu tentava ordenar as minhas idéias para rebater tese tão original, num coffee shop ensolarado no meio da tarde de Amsterdã, Maria sem misericórdia fechou logo o ponto: “Somos a vingança tardia e bem-humorada que vive das brechas desse sistema... Já vocês, do ‘mercado de trabalho’, são a graxa do capitalismo moderno... sempre bem arrumados e descolados, mas ainda assim graxa”.
Fiquei perplexo. Nunca em minha vida fui chamado de graxa ou qualquer outro derivado de óleo e gorduras. Lá se foram sete anos desde a última vez que me encontrara com Maria, em Havana, Cuba. A mexicana, amiga desde uma temporada de Puerto Escondido, vivia na Europa há cinco anos. Nas cartas que trocávamos, que logo se transformaram em e-mails e SMS, ela me contava desse universo incrível em que vivia, em que um grupo crescente de pessoas, “jovens de todas as idades”, simplesmente não trabalhavam. Viviam em comunidades e invadiam casas, apartamentos e prédios abandonados nas principais capitais européias – um MST urbano. Uma vez lá dentro, a polícia nada mais podia fazer, e somente um longo e oficialesco processo de despejo, com ordem judicial e tudo, poderia colocá-los na rua. Mas isso podia demorar até cinco anos...
Nada disso é novidade: são os chamados squats, que hoje se espalham por todas as regiões da Europa: squats campestres, em lindas áreas no interior; squats balneários, às vezes à beira do mar e com direito a pé na areia; squats baladeiros, com festas intermináveis ao som do melhor do eletrônico; squats intelectuais, com um público mais velho, culto e tranqüilo; squats gays... Alguém que faça parte dessa comunidade pode correr a Europa inteira, ou ainda países como Índia e Israel, e se hospedar num squat, pois há sempre alguém que conhece alguém que convida o visitante para uma temporada. Apesar de ninguém pagar aluguel, água ou luz – é tudo gato –, há uma organização vigente e algumas regras no mundo dos squats, e, se você não foi convidado, simplesmente não pode ficar.
Novidade, para mim, foi conviver com um grupo de squaters por um weekend em Amsterdã e descobrir que meus preconceitos em relação à prática eram idéias equivocadas.

Vantagem?
Enquanto Maria me explicava como foi parar na Squatland, eu me pus a fazer um jogo infantil em minha cabeça comparando minha vida com a dela. Tivemos educações similares em dois enormes países latino-americanos, estudamos nos melhores colégios, viajamos bastante e conquistamos a independência da vida adulta na mesma época. Num resumo genérico e leviano, desenhei a seguinte panorâmica de nossas vidas atuais sob o ponto de vista dos dois lados da quadra:
Manhã – Eu acordo cedo diariamente, tomo banho quente, me visto ante uma variedade enorme de roupas a escolher, engulo um café apressado, passo o olho no jornal, entro no carro, pego trânsito, falo ao celular, contemplo paisagens que não escolho – geralmente medonhas, a não ser que você more no Rio –, entro num escritório com janelas e sem vista, ligo o computador, o ar-condicionado e começo a trabalhar. Ela acorda na hora que seu corpo deseja, toma um longo café, escolhe um bom livro, pega sua bicicleta, pedala tranqüilamente pela urbe arborizada, sempre escolhendo o caminho mais bonito, ouve música gerada de um velho discman, entra num parque, deita na grama sob o sol e começa a ler.
Almoço – Saio para almoçar por volta das 13h, entro num restaurante cheio, sento, peço um prato, tiro e-mails no BlackBerry enquanto espero, como rapidamente, converso sobre trabalho na sobremesa, pago uma pequena fortuna de conta enquanto engulo o café e saio apressado. Ela pára de ler seu livro por volta do meio-dia, monta em sua bike, pedala sossegada até uma feira de rua, espera pelo início do desarme das barracas, conversa com os vendedores – que já a co­nhecem –, recebe gratuitamente queijos, frutas, pães, verduras, salames e outras iguarias, abre um largo sorriso como forma de pagamento, caminha até uma praça, senta-se e come pausadamente.
Em seguida, acende um cigarro e abre seu livro de novo.

Tarde/noite – Quando não tenho uma reunião fora, volto para o escritório, reúno minha equipe, trabalho no computador sem pausas até a noite, desligo o computador, o ar-condicionado e a luz, dirijo pela cidade no trânsito, contemplo as mesmas paisagens, falo ao celular, chego em casa, tomo banho, saio para jantar, gasto outra pequena fortuna e eventualmente emendo numa balada, onde gasto outra (nem sempre pequena) fortuna. Ela guarda o que sobrou da comida para o café do dia seguinte, pedala até um museu gratuito, contempla obras de arte durante horas a fio, passa numa biblioteca pública, tira e-mails, troca de livro (lê em média um por semana), pedala até seu squat, toma um banho frio (nem sempre os squats têm água quente), pedala até outro squat maior onde uma baladinha foi armada. Se estiver precisando de dinheiro, ali ela tem a opção de trabalhar no bar: assim conseguiu comprar um motorhome usado. Essa rotina pode durar meses, e, quando ela já conheceu a cidade toda, simplesmente sobe em seu motorhome e pega a estrada até uma nova cidade ou país.
Outros pontos – Enquanto gasto horas em lojas estudando o preço de móveis e gadgets para decorar minha casa e minha vida, nunca sem gastar uma pequena fortuna, ela garimpa os lixos dos bairros mais nobres das cidades onde já encontrou (em ótimo estado) cadeiras, cama, roupas, discman, livros, CDs, enfeites, dinheiro... Durante um desses garimpos, que tive o prazer de testemunhar, ela encontrou uma belíssima gravura de Van Gogh intitulada Schoenen met veters, que hoje ilustra a mais nobre parede de minha casa. No fim do ano, junto todo o dinheiro que me sobrou e viajo por duas a três semanas, geralmente para algum lugar na Europa e... gasto uma fortuna. Ela, que já viaja durante o ano todo pela Europa ao seu bel-prazer, geralmente passa o fim de ano numa cidade grande, quando todos se foram e a cidade está vazia e agradável. Do ponto de vista político, eu, que me considero uma figura com formação avançada no assunto, faço questão de ler e discutir os temas em pauta e sempre voto. Ela, que só lê as manchetes dos cadernos especializados, “afinal já sabemos o que vão dizer”, não gasta tempo com o tema e, por prin­cípio, nunca vota – para minha tristeza, me dei conta de que esse seu boicote leviano acaba agredindo muito mais a cena política do que eu, com minhas teses infladas de mesa de bar. Do ponto de vista ecológico, sou um consumidor voraz e patrocinador das emissões de CO2 e outras mazelas, enquanto ela, por consumir quase nada e reciclar tudo o que eu e os meus descartamos, é uma exemplar cidadã do futuro.
A essa altura do campeonato, começo a ficar deprimido e abandono o jogo num deselegante WO...

Game x Game
Após um fim de semana atípico, quando conheci pessoas incríveis e hábitos desconcertantes, me dei conta de que novidade mesmo foi encarar minhas próprias escolhas sob nova perspectiva. Ao contrário do que imaginava, Maria não é uma jovem preguiçosa e sem ambição, e sim a prova viva de que existem outras maneiras de levar a vida, mesmo inseridos na loucura do capitalismo alucinado. E que devemos tomar cuidado com o julgamento instantâneo que fazemos ao deparar com alguém diferente – seja a figura em questão um índio, um me­trossexual ou um squater. E que até mesmo a prática da comparação, forma que escolhi para a construção deste texto, já é bastante capita­lista, conceitualmente falando, logo, um tanto ina­dequada. Ponto. Desisto. Adoraria ser um squater... talvez na próxima encarnação. Com licença, preciso tirar meus e-mails.

P.S. No caso de você estar curioso, a palavra squat significa
“aga­cha­mento” ou “aquele que se estabelece em terras públicas”.


*Giuliano Cedroni, historiador, jornalista e roteirista, foi diretor de redação da Trip por cinco anos. Atualmente dirige um núcleo de desenvolvimento de projetos na Prodigo Films, e trabalha desde os 16 anos...
http://revistatrip.uol.com.br//162/matchpoint/home.htm

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Herf
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Re.: Squaters - sociedade alternativa

Mensagem por Herf »

Eu me pergunto por que diabos movimentos alternativos como esse têm sempre que adotar a porcaria do discurso anti-capitalista. Não é, de forma alguma, logicamente impossível posicionar-se em favor do modo de produção capitalista ao mesmo tempo em que se escolhe como modo de vida ficar vagando por aí e pedindo comida. Muito pelo contrário, isso é o que se esperaria, afinal os squaters vivem das sobras que "as graxas do sistema" produziram. O capitalismo lhes concede o privilégio de viver sem trabalhar, ainda que uma vida sem grandes confortos materiais. Não fosse o capitalismo, não existiriam sobras para os squaters catarem, não existiriam feirantes para os quais pedir comida, não existiriam bibliotecas públicas onde entrar e pegar livros gratuitamente, pois eles não contribuem para a existência dessas bibliotecas, elas são mantidas com o trabalho "da graxa" do sistema. Ou seja, ELES TERIAM QUE TRABALHAR.

Sabe, não tenho nada contra quem escolhe como modo de vida errar pelas cidades pedindo alimento de modo a não precisar trabalhar, abdicando de riquezas e confortos materiais. Claro que há o detalhe de que usufruem de certos serviços, como no caso das bibliotecas, que são mantidos com o dinheiro de quem trabalha, sendo que eles não contribuem com nada. Mas isto é o de menos. O que me deixa irado é esse papo de adolescente metido a revolucionário de "ir contra o sistema", o "capitalismo selvagem", etc, como se eles fossem a vanguarda de uma nova geração, e o movimento, o prenúncio de uma nova era onde todos poderão comer, festejar e adquirir conhecimento sem precisar trabalhar.

Vão tomar no rabo.

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Ilovefoxes
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Re.: Squaters - sociedade alternativa

Mensagem por Ilovefoxes »

É porque é só baixar o discurso revolucionário que um bando de velho metido a adolescente rebelde já baixa as calça. :emoticon12:

NeferNeferNefer
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Mensagem por NeferNeferNefer »

No meu tempo (eta veiera) eles eram chamados de hippies.

Mesmo modus operandi, mesmo discurso... só que aliados a idéias novas para a época, como o amor livre.

Passados os anos é desalentador reencontrá-los: em sua maioria hoje vivem e fazem tudo ao contrário do que sempre pregaram.
Livre pensar é só pensar!

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Apáte
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Re.: Squaters - sociedade alternativa

Mensagem por Apáte »

Por um momento, pensei que a tal Maria era deputada.
"Da sempre conduco una attività ininterrotta di lavoro, se qualche volta mi succede di guardare in faccia qualche bella ragazza... meglio essere appassionati di belle ragazze che gay" by: Silvio Berlusconi

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Ilovefoxes
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Mensagem por Ilovefoxes »

NeferNeferNefer escreveu:No meu tempo (eta veiera) eles eram chamados de hippies.

Mesmo modus operandi, mesmo discurso... só que aliados a idéias novas para a época, como o amor livre.

Passados os anos é desalentador reencontrá-los: em sua maioria hoje vivem e fazem tudo ao contrário do que sempre pregaram.
Sim, exatamente, hippies.
Mas existe uma diferença, esses argumentavam a partir da felicidade pessoal, esses outros falam de CapitalistasComemCriancinhasOMG...

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Fernando Silva
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Re.: Squaters - sociedade alternativa

Mensagem por Fernando Silva »

Eles parasitam o próprio sistema que atacam, mas criam uma ideologia idiota para se justificarem, inclusive perante eles mesmos.

Se fossem coerentes, iriam viver no meio do mato sem levar nada do "sistema".

Parecem até aqueles adolescentes que decidem levar uma vida independente e vão morar sozinhos - num apartamento sustentado pelos pais.

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Ilovefoxes
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Re: Re.: Squaters - sociedade alternativa

Mensagem por Ilovefoxes »

Fernando Silva escreveu:Eles parasitam o próprio sistema que atacam, mas criam uma ideologia idiota para se justificarem, inclusive perante eles mesmos.

Se fossem coerentes, iriam viver no meio do mato sem levar nada do "sistema".

Parecem até aqueles adolescentes que decidem levar uma vida independente e vão morar sozinhos - num apartamento sustentado pelos pais.
Precisamente.

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Fenrir
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Re.: Squaters - sociedade alternativa

Mensagem por Fenrir »

Independente de qualquer ideologia, uma das coisas que chama a atençao no depoimento do Giuliano é sua rotina diária: ele não tem muito tempo fora do trabalho.

Meu caso é parecido: moro em São Paulo e em dias de transito ruim, fico 4(!) horas no percurso (ida-e-volta), gasto 1h de almoço e umas 8-10h de trabalho.
Programador PJ não tem descanso: as vezes vou nos finais de semana, as vezes mais de 10h quando o prazo está estourando (o que não é exceção e sim regra). Férias? nem sei o que é isto .
"Man is the measure of all gods"
(Fenrígoras, o sofista pós-socrático)

"The things are what they are and are not what they are not"
(Fenrígoras, o sofista pós-socrático)

"As mentes mentem"
(Fenrir, o mentiroso)

NeferNeferNefer
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Re.: Squaters - sociedade alternativa

Mensagem por NeferNeferNefer »

Os squaters nos lembram o quanto nós desperdiçamos.
Os "Giulianos" nos lembram o quanto não aproveitamos a vida.
Talvez um meio termo entre um e outro... produzir o necessário (somente o necessário, o extraordinário é demais... quem lembra da musiquinha?).

:emoticon7:
Livre pensar é só pensar!

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SickBoy
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Re: Re.: Squaters - sociedade alternativa

Mensagem por SickBoy »

Fenrir escreveu:Independente de qualquer ideologia, uma das coisas que chama a atençao no depoimento do Giuliano é sua rotina diária: ele não tem muito tempo fora do trabalho.

Meu caso é parecido: moro em São Paulo e em dias de transito ruim, fico 4(!) horas no percurso (ida-e-volta), gasto 1h de almoço e umas 8-10h de trabalho.
Programador PJ não tem descanso


PJ?


Pojo? ah, não deve ser. que significa?

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RicardoVitor
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Mensagem por RicardoVitor »

PJ significa Pessoa Jurídica. Concordo com o companheiro de classe em relação a carga de trabalho, mas o mercado informal é a única forma de fugir do roubo estatal e não entregar uma boa parte dos seus rendimentos para sustentar o luxo de alguns esquerdistas no governo. Uma coisa é certa, pelo menos para mim: CLT nunca mais. A carteira de trabalho tá ali no fundo da gaveta, e se não fosse um documento oficial já teria ido pro lixo há muito tempo.

Aliás, o mercado informal é uma espécie de sociedade alternativa, já esses squatters são apenas mais uns filhinhos de papai brincando de revolução.
Logical, responsible, practical.
Clinical, intellectual, cynical.
Liberal, fanatical, criminal.
Acceptable, respectable, presentable, a vegetable!

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zumbi filosófico
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Re.: Squaters - sociedade alternativa

Mensagem por zumbi filosófico »

Nem li bem, mas talvez eles nem defendam uma "revolução" nem nada. Apenas que podem fazer isso e pronto, como modo de vida deles. A crítica ao capitalismo não é (não necessariamente) "o capitalismo é mal, deveria acabar", mas no sentido de "trabalhar 'de verdade'/nos moldes tradicionais não é pra mim". Mais para Thoreau do que para Marx, acho, ainda que não seja exatamente igual pelo caráter urbano e por aparentemente não fazerem quase nada como subsistência, sendo mais parasíticos (ou quase "decompositores").
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Trancado