Samba e Holocausto PARTE 2
Enviado: 07 Fev 2008, 12:05
Carnaval, Holocausto e liberdade de expressão
A tradição diz que a sabedoria é o caminho do meio. Nem empurrar realidades desagradáveis para baixo do tapete, por medo do conflito, nem insuflar os fatos além de suas reais dimensões. Tempo atrás, a porta de minha sala na UFRJ foi pixada com uma suástica. Fui convidado por lideranças da comunidade judaica a denunciar publicamente a “existência de anti-semitismo na universidade”. Recebi a solidariedade de todos meus colegas e alunos, e minha intuição –informada por outras pixações que tinha sofrido- era de que ela foi feita por um aluno ressentido com minhas críticas a que se fume maconha no recinto da Universidade. Com certeza não estava frente a um fenômeno de “anti-semitismo na universidade” e a solidariedade de meus colegas me pareceu suficiente. Achava que valorizar o evento seria dar publicidade indevida a um ato isolado e alimentar uma imagem distorcida da realidade.
O respeito pela sensibilidade alheia, e mais ainda no espaço público, seja em relação a objetos sagrados ou de grupos que sofreram discriminação, humilhação e perseguição é fundamental para construir uma sociedade onde ninguém sinta negada sua dignidade humana. Este objetivo porém é um ideal em direção ao qual procuramos encaminhar, mas que é construído a partir de uma bagagem cultural, onde hábitos lingüísticos, formas de humor e preconceitos inconscientes estão presentes. Não se trata de justificar nenhum deles, mas também de reconhecer que um comentário mal elaborado em torno a raça, religião, sexo ou etnia não transforma alguém em racista, anti-semita, homofóbico ou sexista. O conceito racismo esconde uma diversidade de situações. Um comentário racista não significa que o indivíduo esteja disposto a entrar no Klu Klux Klan ou no partido nazista, ou que esteja imbuído de ódio racial. A maioria das pessoas que faz estes comentários se desculpa quando se conscientizam de que feriram a sensibilidade de alguém.
Aclaremos, não estamos justificando expressões indevidas. Elas devem ser combatidas, mas com a ponderação devida em cada caso. Porque infelizmente o racismo, sexismo, etc. podem produzir uma indústria de vitimização, de líderes e instituições legitimamente constituídos que se projetam pela denúncia, levando-os a apresentar uma versão distorcida ou inflacionada dos fatos.
Existem áreas onde a luta contra o preconceito apresenta dimensões complexas e difíceis de resolver. O humor sem dúvida é uma delas. Muitas charges muitas vezes ferem a sensibilidade de indivíduos e grupos. O humor deve ser censurado, apesar de que ele explicitamente se reconheça como tal, isto é, como gozação, distorção e caricatura do real? A minha reação é que não, que o humor é parte constitutiva de uma sociedade democrática, pois ela representa a forma mais eficaz de criticar, questionar, duvidar e ironizar, nos obrigando a aceitar visões diferentes daquilo que nós “adoramos”.
Agora volta a surgir, como já aconteceu em carnavais passados, o tema da liberdade de expressão das escolas de samba e, em particular, de seus carros alegóricos. Como sabemos, as escolas de samba tratam dos mais diversos temas, desde a violência na cidade, que contou com a participação de vítimas diretas e familiares, ou a escravidão no Brasil. Todo tema pode ser “carnavalizado”. A questão, portanto, não é o tema, pois ninguém tem monopólio sobre ele, mas a forma em que ele é tratado e a mensagem que se procura veicular. Uma discussão ponderada sobre o carro alegórico dedicado ao holocausto deve focalizar somente esta questão. Idealmente, um diálogo aberto entre todas as partes interessadas é o caminho a trilhar nestas situações, onde não existem razões para duvidar da boa fé de todos os envolvidos. É possível que no final do dia tenhamos posições diferentes, mas sem preconceitos e com clareza sobre os pontos em que divergimos, dentro de uma lição de convivência democrática.
Bernardo Sorj
É Ph.D. em sociologia pela Universidade de Manchester, na Inglaterra. Atualmente é professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais e do Projeto Plataforma Democrática
A tradição diz que a sabedoria é o caminho do meio. Nem empurrar realidades desagradáveis para baixo do tapete, por medo do conflito, nem insuflar os fatos além de suas reais dimensões. Tempo atrás, a porta de minha sala na UFRJ foi pixada com uma suástica. Fui convidado por lideranças da comunidade judaica a denunciar publicamente a “existência de anti-semitismo na universidade”. Recebi a solidariedade de todos meus colegas e alunos, e minha intuição –informada por outras pixações que tinha sofrido- era de que ela foi feita por um aluno ressentido com minhas críticas a que se fume maconha no recinto da Universidade. Com certeza não estava frente a um fenômeno de “anti-semitismo na universidade” e a solidariedade de meus colegas me pareceu suficiente. Achava que valorizar o evento seria dar publicidade indevida a um ato isolado e alimentar uma imagem distorcida da realidade.
O respeito pela sensibilidade alheia, e mais ainda no espaço público, seja em relação a objetos sagrados ou de grupos que sofreram discriminação, humilhação e perseguição é fundamental para construir uma sociedade onde ninguém sinta negada sua dignidade humana. Este objetivo porém é um ideal em direção ao qual procuramos encaminhar, mas que é construído a partir de uma bagagem cultural, onde hábitos lingüísticos, formas de humor e preconceitos inconscientes estão presentes. Não se trata de justificar nenhum deles, mas também de reconhecer que um comentário mal elaborado em torno a raça, religião, sexo ou etnia não transforma alguém em racista, anti-semita, homofóbico ou sexista. O conceito racismo esconde uma diversidade de situações. Um comentário racista não significa que o indivíduo esteja disposto a entrar no Klu Klux Klan ou no partido nazista, ou que esteja imbuído de ódio racial. A maioria das pessoas que faz estes comentários se desculpa quando se conscientizam de que feriram a sensibilidade de alguém.
Aclaremos, não estamos justificando expressões indevidas. Elas devem ser combatidas, mas com a ponderação devida em cada caso. Porque infelizmente o racismo, sexismo, etc. podem produzir uma indústria de vitimização, de líderes e instituições legitimamente constituídos que se projetam pela denúncia, levando-os a apresentar uma versão distorcida ou inflacionada dos fatos.
Existem áreas onde a luta contra o preconceito apresenta dimensões complexas e difíceis de resolver. O humor sem dúvida é uma delas. Muitas charges muitas vezes ferem a sensibilidade de indivíduos e grupos. O humor deve ser censurado, apesar de que ele explicitamente se reconheça como tal, isto é, como gozação, distorção e caricatura do real? A minha reação é que não, que o humor é parte constitutiva de uma sociedade democrática, pois ela representa a forma mais eficaz de criticar, questionar, duvidar e ironizar, nos obrigando a aceitar visões diferentes daquilo que nós “adoramos”.
Agora volta a surgir, como já aconteceu em carnavais passados, o tema da liberdade de expressão das escolas de samba e, em particular, de seus carros alegóricos. Como sabemos, as escolas de samba tratam dos mais diversos temas, desde a violência na cidade, que contou com a participação de vítimas diretas e familiares, ou a escravidão no Brasil. Todo tema pode ser “carnavalizado”. A questão, portanto, não é o tema, pois ninguém tem monopólio sobre ele, mas a forma em que ele é tratado e a mensagem que se procura veicular. Uma discussão ponderada sobre o carro alegórico dedicado ao holocausto deve focalizar somente esta questão. Idealmente, um diálogo aberto entre todas as partes interessadas é o caminho a trilhar nestas situações, onde não existem razões para duvidar da boa fé de todos os envolvidos. É possível que no final do dia tenhamos posições diferentes, mas sem preconceitos e com clareza sobre os pontos em que divergimos, dentro de uma lição de convivência democrática.
Bernardo Sorj
É Ph.D. em sociologia pela Universidade de Manchester, na Inglaterra. Atualmente é professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais e do Projeto Plataforma Democrática