Um ateu chega ao céu
Enviado: 23 Fev 2008, 13:56
"O Globo" 23/02/08
Door policy
João Ximenes Braga
O mundo acabou ontem, enfim. E vocês podem imaginar meu alívio ao ver que a Clarisse era a doorwoman do céu. Pra quem não conhece, é aquela que já em 2000 o jornalista Ronald Villardo dizia ter “inaugurado a era das hostess simpáticas no Rio de Janeiro”. E se você não sabe o que isso significa, não sou eu que vou explicar
Fui logo dando dois beijinhos na Clarisse e perguntando se estava animado lá dentro.
— É claro que não. É o céu.
— Posso dar uma olhadinha pra ver se eu quero ficar?
— Não, porque você não vai ficar. É invitation only e seu nome não tá na lista.
— Pô, gata, precisa falar desse jeito?
— “Gata” já é falta de respeito!
— Mas eu sempre te chamei de “gata”.
— Achei que você ia entender logo, não sou a Clarisse, sou São Pedro.
Apenas visto o ectoplasma de alguém com quem o interlocutor se sinta mais à vontade. Posso ser o maître do Antiquarius, o Paiva do Jobi, por aí vai. Quer ver? Pra você também posso ser a Nicole. Só não chama de “gata”.
E eis que Clarisse se fez Nicole.
— Nicole? Já sei que não vou ganhar pulseira VIP, mas dá uma olhada na lista amiga, tenho certeza que recebi o e-mail e dei reply.
— Não recebeu e-mail nenhum, porque não vai entrar no céu.
— Tudo bem, não ia ter ninguém conhecido aí dentro… Mas me diz o porquê. Nunca matei ninguém.
Sempre reprimi o instinto de chutar crianças barulhentas em restaurantes. Só roubei uma vez: um cinzeiro de motel, mas era trote pros estagiários do Jornal do Commercio, se ainda não foi perdoado, é coisa que se resolve com uma semana de purgatório.
— Você não pode entrar no céu porque não acreditava em Deus!
— Xi, não sabia que isso era eliminatório!
— Então, vai sair da fila ou vou ter que chamar o segurança?
— Mas há atenuantes preu não acreditar em Deus! Ele também não ajudou, sempre foi muito mal representado, um problema sério de divulgação.
— Tá anotado que você estudou em colégio de padre, é atenuante, sim.
— Falei no geral, todos aqueles que usam o nome Dele, que dizem que divulgam a palavra Dele, que dizem falar em nome Dele. Você viu a última da Universal? Aquela série de processos contra jornalistas, contra a pobre moça da “Folha” que simplesmente reportou que o bispo Macedo construiu um império de comunicações… E aqueles bispos da Renascer presos em Miami? Vamos combinar, antes do mundo acabar andava muito difícil acreditar em Deus.
Era tanta gente falando Nele, e tanta gente que, vamos combinar… Eu fui praticamente induzido ao ateísmo!
— Tá tudo anotado aqui, seu sofrimento na era Garotinho, sua aversão a quem mistura política com religião. São atenuantes, sim, mas no fim das contas dá no mesmo. Você não acreditava em Deus, não entra.
— Ah, qual é? E o obscurantismo do Bento XVI? Queria que eu engolisse na boa?
— Isso é um problema entre Ele e Sua Santidade o Papa.
— Então vamos mais longe. E os escribas do Antigo Testamento? Aquelas barbaridades todas que disseram que Ele fez? Matou todos os primogênitos do Egito, coitados! E o mesmo Bush que acreditava nisso vinha pregar contra o abor to.
— Deus não tem culpa se os homens levaram uma obra literária a sério demais. E você tá atravancando a fila.
— Só acho que alguém podia ter dado um toque Nele, tipo assim, o nome Dele tava sendo avacalhado, nunca se fez tanta bobagem em nome Dele desde a inquisição. A imagem tava desgastada quase ao nível de Senado e Alerj! E olha que eu só falei dos cristãos, não vou nem começar com os…
— (interrompendo) Próximoooooo!
— Só mais uma coisa.
Quem entrou? O Macedo tá aí dentro? Os Hernandez? O Ratzinger?
— A lista é confidencial.
— Desisto! Tudo bem, vou conviver com assassinos e prefeitos que não recolhiam crianças das ruas, vou pro inferno.
— Não conheço a door policy de lá.
— Então pr’onde é que eu vou?
— Se vira. Mas no botequim da esquina tem cerveja de garrafa.
* * * * * * *
Se você percebeu que esta crônica é um plágio mal acabado de “Vida eterna”, de Luis Fernando Verissimo, parabéns. Sinal de que você lê Verissimo. Mas lembre-se que, tecnicamente, preferimos o termo “intertextualidade”. E, socialmente, “homenagem”.
E-mail para esta coluna jxbraga@oglobo.com.br
Door policy
João Ximenes Braga
O mundo acabou ontem, enfim. E vocês podem imaginar meu alívio ao ver que a Clarisse era a doorwoman do céu. Pra quem não conhece, é aquela que já em 2000 o jornalista Ronald Villardo dizia ter “inaugurado a era das hostess simpáticas no Rio de Janeiro”. E se você não sabe o que isso significa, não sou eu que vou explicar
Fui logo dando dois beijinhos na Clarisse e perguntando se estava animado lá dentro.
— É claro que não. É o céu.
— Posso dar uma olhadinha pra ver se eu quero ficar?
— Não, porque você não vai ficar. É invitation only e seu nome não tá na lista.
— Pô, gata, precisa falar desse jeito?
— “Gata” já é falta de respeito!
— Mas eu sempre te chamei de “gata”.
— Achei que você ia entender logo, não sou a Clarisse, sou São Pedro.
Apenas visto o ectoplasma de alguém com quem o interlocutor se sinta mais à vontade. Posso ser o maître do Antiquarius, o Paiva do Jobi, por aí vai. Quer ver? Pra você também posso ser a Nicole. Só não chama de “gata”.
E eis que Clarisse se fez Nicole.
— Nicole? Já sei que não vou ganhar pulseira VIP, mas dá uma olhada na lista amiga, tenho certeza que recebi o e-mail e dei reply.
— Não recebeu e-mail nenhum, porque não vai entrar no céu.
— Tudo bem, não ia ter ninguém conhecido aí dentro… Mas me diz o porquê. Nunca matei ninguém.
Sempre reprimi o instinto de chutar crianças barulhentas em restaurantes. Só roubei uma vez: um cinzeiro de motel, mas era trote pros estagiários do Jornal do Commercio, se ainda não foi perdoado, é coisa que se resolve com uma semana de purgatório.
— Você não pode entrar no céu porque não acreditava em Deus!
— Xi, não sabia que isso era eliminatório!
— Então, vai sair da fila ou vou ter que chamar o segurança?
— Mas há atenuantes preu não acreditar em Deus! Ele também não ajudou, sempre foi muito mal representado, um problema sério de divulgação.
— Tá anotado que você estudou em colégio de padre, é atenuante, sim.
— Falei no geral, todos aqueles que usam o nome Dele, que dizem que divulgam a palavra Dele, que dizem falar em nome Dele. Você viu a última da Universal? Aquela série de processos contra jornalistas, contra a pobre moça da “Folha” que simplesmente reportou que o bispo Macedo construiu um império de comunicações… E aqueles bispos da Renascer presos em Miami? Vamos combinar, antes do mundo acabar andava muito difícil acreditar em Deus.
Era tanta gente falando Nele, e tanta gente que, vamos combinar… Eu fui praticamente induzido ao ateísmo!
— Tá tudo anotado aqui, seu sofrimento na era Garotinho, sua aversão a quem mistura política com religião. São atenuantes, sim, mas no fim das contas dá no mesmo. Você não acreditava em Deus, não entra.
— Ah, qual é? E o obscurantismo do Bento XVI? Queria que eu engolisse na boa?
— Isso é um problema entre Ele e Sua Santidade o Papa.
— Então vamos mais longe. E os escribas do Antigo Testamento? Aquelas barbaridades todas que disseram que Ele fez? Matou todos os primogênitos do Egito, coitados! E o mesmo Bush que acreditava nisso vinha pregar contra o abor to.
— Deus não tem culpa se os homens levaram uma obra literária a sério demais. E você tá atravancando a fila.
— Só acho que alguém podia ter dado um toque Nele, tipo assim, o nome Dele tava sendo avacalhado, nunca se fez tanta bobagem em nome Dele desde a inquisição. A imagem tava desgastada quase ao nível de Senado e Alerj! E olha que eu só falei dos cristãos, não vou nem começar com os…
— (interrompendo) Próximoooooo!
— Só mais uma coisa.
Quem entrou? O Macedo tá aí dentro? Os Hernandez? O Ratzinger?
— A lista é confidencial.
— Desisto! Tudo bem, vou conviver com assassinos e prefeitos que não recolhiam crianças das ruas, vou pro inferno.
— Não conheço a door policy de lá.
— Então pr’onde é que eu vou?
— Se vira. Mas no botequim da esquina tem cerveja de garrafa.
* * * * * * *
Se você percebeu que esta crônica é um plágio mal acabado de “Vida eterna”, de Luis Fernando Verissimo, parabéns. Sinal de que você lê Verissimo. Mas lembre-se que, tecnicamente, preferimos o termo “intertextualidade”. E, socialmente, “homenagem”.
E-mail para esta coluna jxbraga@oglobo.com.br