Aborto e sua ética

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Joe
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Aborto e sua ética

Mensagem por Joe »

Diante algumas discussões que aconteceu aqui no fórum, eu me senti na obrigação de trazer textos científicos e bioéticos sobre o Aborto e sua ética e porque ele é permissível.

Segue um texto do Pedro Madeira, professor do King's College London:


Pedro Madeira, discussa sobre o aborto e seus argumentos

Há a necessidade premente de tentar esclarecer o público em relação ao debate sobre o aborto. Foi com dois objetivos em mente que decidi escrever este artigo. O primeiro é apresentar uma análise crítica tanto dos argumentos freqüentemente usados em debates públicos, como dos principais argumentos usados na bibliografia de bioética. O segundo objetivo é o de procurar devolver alguma credibilidade ao debate. Parece-me que as pessoas têm a sensação — infelizmente acertada — de que os intervenientes públicos neste tipo de debate não costumam ser imparciais. É preciso mudar esta situação.
Em cada uma das quatro primeiras secções menciono um mau argumento usado pelos defensores da legalização do aborto e um mau argumento usado pelos opositores da legalização do aborto. Tento fornecer uma análise tanto quanto possível imparcial de todos os argumentos, de modo a que não seja possível perceber-se qual é a minha posição acerca do assunto. Se as pessoas percebessem logo qual era a minha posição na primeira secção, de certeza que nem se incomodavam a ler as restantes. Nas três secções seguintes, digo onde me situo no debate acerca da legalização do aborto e argumento a favor da minha posição. Finalmente, na oitava e última secção, teço alguns comentários de natureza geral acerca do estado dos debates públicos sobre problemas éticos em Portugal.

1. Os argumentos da inevitabilidade e da dignidade

Comecemos então por analisar dois maus argumentos freqüentemente apresentados em Portugal. O primeiro é a favor da legalização do aborto; o segundo é contra.

Primeiro, temos o argumento de que continuarão a ser realizados abortos, quer o aborto seja descriminalizado ou não, pelo que mais vale descriminalizar e, deste modo, fornecer melhores condições às mulheres que desejem abortar. A resposta óbvia ao argumento é: roubar é crime, mas há roubos na mesma. Por isso, o melhor é descriminalizar o roubo e, deste modo, fornecer melhores condições aos pobres ladrões, para que não rasguem as calças no arame farpado nem incorram no risco de tropeçar e partir uma perna quando fogem da polícia. A resposta será, obviamente: "estás a ser tremendamente injusto — o aborto e o roubo são coisas completamente diferentes". Mas é claro que são; ninguém está a dizer o contrário. O ponto é simplesmente o de que, se achamos que o argumento de que "as pessoas fá-lo-iam na mesma" não é, por si só, justificação suficiente para descriminalizar o roubo, então também não poderá ser, por si só, justificação suficiente para descriminalizar o que quer que seja, aborto incluído. Aquilo que se passa é que, ao usar este argumento de que "as pessoas fá-lo-iam na mesma", os defensores da legalização do aborto estão implicitamente a partir do princípio de que o roubo é eticamente incorreto, ao passo que o aborto, se não eticamente correto, será, pelo menos, eticamente permissível. Assim que nos apercebemos disto, vê-se claramente que, ao usar o argumento de que "as pessoas fá-lo-iam na mesma" para tentar justificar a legalização do aborto, os defensores da legalização estão, pura e simplesmente, a fugir à questão.

É freqüentemente dito que o aborto é errado "porque vai contra a dignidade da pessoa humana", ou "por causa da santidade da vida humana". Este é um daqueles argumentos que me deixam a coçar a cabeça, tentando descobrir o que é que alguém poderá estar a querer dizer com isto. A interpretação mais caridosa é, talvez, a interpretação religiosa, segundo a qual a única coisa que este "argumento" diz é que é atribuída uma alma ao feto no momento da concepção, pelo que é imoral matá-lo em qualquer momento da gravidez. Este argumento talvez seja suficiente para convencer uma pessoa religiosa de que o aborto é imoral. No entanto, dado o seu caráter religioso, não é um argumento que possamos usar contra a legalização do aborto. (É de notar, de passagem, que a própria ideia de uma alma a ser "atribuída" (por assim dizer) no momento da concepção é problemática. Não estou a falar no problema de saber o que é, supostamente, uma alma, a sua composição — já nem vou tão longe. O problema é o de que não há um momento preciso em que se dá a concepção. Essa é apenas uma ilusão. A fertilização é um processo gradual que leva cerca de vinte e duas horas. É difícil perceber em que altura é que a alma supostamente será "atribuída".) Uma interpretação menos caridosa deste argumento dirá que, das duas, uma: ou o argumento é simplesmente vácuo — o opositor da legalização consegue pouco mais ao avançá-lo do que aclarar a garganta; ou então o argumento está, pura e simplesmente, a fugir à questão e não há mais nada a dizer. Dizer que o aborto é imoral porque o feto tem dignidade intrínseca, ou coisa que o valha, é um "conversation-stopper". Vi uma vez um episódio curioso num debate televisivo em que um dos convidados avançou este argumento, mas vou deixar essa interessante história para depois — contá-la-ei na última secção (a oitava).

2. O argumento feminista e o apelo ilegítimo às emoções

Um mau argumento usado pelos defensores da legalização do aborto é o argumento feminista de que o corpo é das mulheres, pelo que as mulheres é que sabem o que hão-de fazer com ele. Este argumento limita-se a fugir à questão porque as feministas nunca chegam a dizer nada acerca do estatuto moral do feto — nunca dizem se o feto tem, ou não, o direito à vida. Esta é uma falha grave pela seguinte razão: Se o argumento das feministas fosse, simplesmente, o de que "o corpo é da mulher, a mulher é que sabe o que há-de fazer com ele", então isso implicaria que seria moralmente permissível abortar até no nono mês. Afinal, no nono mês a criança ainda está no ventre da mãe. As feministas podem agora aceitar esta conclusão, ou rejeitá-la. Imaginemos que a aceitam. Nesse caso, ficam com a dificuldade de explicar porque é que não podemos matar uma criança recém-nascida. Afinal, podíamos matá-la dois minutos antes, mas agora já não? Isso parece extremamente arbitrário. Imaginemos agora que as feministas rejeitam a conclusão de que é moralmente permissível abortar no nono mês. Nesse caso, terão de nos dizer a partir de que altura é que o feto, ainda na barriga da mãe, começa a ter o direito à vida.

Independentemente de como escolham responder a este problema, uma coisa é certa: ao admitir que não é moralmente permissível abortar no nono mês, uma feminista terá acabado de abandonar o argumento de que "o corpo é da mulher, a mulher é que sabe o que há-de fazer com ele". O máximo que uma feminista poderá dizer é que, até determinado estádio da gravidez, é moralmente permissível abortar. A partir dessa altura, o feto adquire o direito à vida. De qualquer maneira, se o argumento feminista de que "o corpo é da mulher, a mulher é que sabe o que há-de fazer com ele" fosse mesmo levado a sério, então isso teria a implicação de que a prostituição devia ser legalizada. Afinal, o corpo é da mulher. Todavia, é quase certo que qualquer feminista que se preze se oporá à legalização da prostituição, com o argumento habitual de que a prostituição degrada a mulher à condição de mero objeto sexual.

Há um mau argumento usado pelos opositores da legalização do aborto que não é, em bom rigor, um argumento: é apenas o chamado apelo às emoções. Aquando do período imediatamente precedente ao referendo, assisti, com algum desconforto, a uma campanha chamada "Não matem o Zézinho", a qual, se não estou em erro, distribuiu vídeos em que eram mostrados abortos verídicos. Também constatei que houve pelo menos um partido que pôs fotografias de bebês sorridentes em outdoors. E, de um modo geral, em vez de se falar em zigoto, embrião, ou feto, falava-se na "criança ainda por nascer". É certo que os defensores da legalização também recorriam, aqui ou ali, a linguagem envenenada, como por exemplo quando se referiam ao feto como "um amontoado de células". Mas o apelo às emoções por parte dos defensores da legalização não foi, ainda assim, tão descarado como o apelo às emoções por parte dos opositores da legalização. Suspeito que um número considerável de votantes tenham sido influenciados por essas imagens e mudado, conseqüentemente, as suas intenções de voto. Esta é uma maneira deplorável de conduzir uma campanha. Os outros maus argumentos a favor e contra a legalização do aborto que tive a oportunidade de analisar na secção anterior e nesta (e que continuarei a analisar na próxima secção) são apenas isso: maus. Mas o apelo às emoções não é apenas um mau argumento: é um argumento perigoso. É a própria história do século XX que no-lo ensina.

3. O argumento social e o argumento do direito à vida

Um dos argumentos mais freqüentemente avançados pelos defensores da legalização é o de que, enquanto o aborto continuar a ser ilegal, as mulheres pobres fá-lo-ão na mesma, sempre em condições precárias, e às "madames" bastará apenas ir a Espanha ou apanhar um avião para Londres para se desembaraçarem. Moral da história: os pobres é que se lixam. Na melhor das hipóteses, os opositores da legalização são ingênuos; na pior das hipóteses, são hipócritas. Não é difícil ver porque é que este é um mau argumento.

Pense no seguinte: devido à recente midiatização do fenômeno da pedofilia em Portugal, é de crer que as redes pedófilas em Portugal venham a reduzir substancialmente as suas atividades, pelo menos nos próximos tempos. Contudo, quem tenha dinheiro pode facilmente apanhar um avião para países onde a pedofilia seja quase impune ou pode, até, importar crianças desses países. Moral da história: quem não tiver dinheiro para ir fazer turismo sexual ao estrangeiro ou para mandar vir crianças de fora é que fica privado de poder manter relações pedófilas; os pedófilos pobres é que se lixam. Será este um bom argumento a favor da legalização da pedofilia? É óbvio que não. O mesmo argumento, quando empregue a favor da legalização do aborto, só parece mais convincente porque se limita a fugir à questão.

Acho que a maior parte dos opositores da legalização defende apenas a tese moderada de que o aborto deve apenas ser permitido em caso de violação. Mas há que olhar com atenção para a argumentação geralmente aduzida. Os opositores da legalização dizem que o aborto é errado porque o feto tem o direito à vida. Mas o problema é o de que, se isso é assim, então um feto gerado por violação tem tanto direito à vida como um feto gerado voluntariamente. O estatuto moral do feto não varia de acordo com o modo como foi gerado. De modo a completarmos a explicação, devemos acrescentar qualquer coisa como: é imoral abortar apenas nos casos em que feto foi gerado voluntariamente, porque só nessa situação é que a mulher terá tido responsabilidade direta pela gravidez. Mas isso seria como se eu dissesse a uma pessoa metida em apuros: eu não tenho qualquer responsabilidade pelo fato de teres acabado nessa situação; logo, não tenho qualquer dever de te ajudar. Isto é claramente falso. Se nós vamos a passar na estrada e vemos uma pessoa atropelada no chão, temos o dever de a ir ajudar. Logo, o simples fato de a mulher não ter gerado o feto voluntariamente em caso de violação não chega para justificar a permissibilidade moral do aborto em caso de violação. Temos de fornecer mais algum argumento para explicar porque é que, no caso da mulher ter sido violada, continuar a gravidez é apenas um dever supererrogatório, um dever cujo cumprimento não nos é estritamente exigido. A conclusão de tudo isto é a seguinte: Se o feto tem o direito à vida, então tem-no independentemente de a gravidez ter tido origem num ato voluntário da mulher ou em violação. Sobre quem acredita que o feto tem o direito à vida recai o fardo de explicar porque é que é permissível recorrer ao aborto em caso de violação. As pessoas nem sempre se apercebem disto.

4. O argumento da potencialidade e da cultura de morte

Quando os defensores da legalização pretendem ridicularizar os opositores, aquilo que fazem é geralmente dizer que, se os opositores da legalização estivessem certos, então os espermatozóides e os óvulos também teriam o direito à vida, pelo que os homens não deviam masturbar-se, de modo a não desperdiçar esperma. E nem os homens nem as mulheres deveriam poder usar métodos contraceptivos, porque isso também implicaria um desperdício de esperma. Isto não passa de retórica. Esta objeção não atende ao fato de que, embora tanto o feto como o espermatozóide e o óvulo sejam potencialmente seres humanos adultos, são-no em sentidos diferentes.

(Aristóteles foi, tanto quanto eu saiba, o primeiro a notar que há várias acepções do termo "potencialidade". Embora o argumento que vou apresentar seja inspirado pela distinção estabelecida por Aristóteles, não a segue à letra. Para os curiosos, a posição de Aristóteles em relação aos diferentes tipos de potencialidade está em De anima, 417a-20.)

Podemos dizer que há, basicamente, dois tipos de potencialidade: "potencialidade no sentido forte" e "potencialidade no sentido fraco". Tomemos o caso de uma criança de dez anos que está a aprender a tocar violino. Há um sentido claro em que essa criança é, potencialmente, um violinista. Tomemos agora o caso de uma criança de dez anos que tem grande talento musical, embora não esteja a receber aulas de música nem nunca tenha tocado num violino. Há também um sentido em que podemos dizer que esta criança é, potencialmente, um violinista. No entanto, a primeira criança não é potencialmente um violinista no mesmo sentido em que a segunda é potencialmente um violinista. A primeira criança é potencialmente um violinista no sentido forte; a segunda criança é potencialmente um violinista no sentido fraco. A mesma coisa se passa no caso do feto, por um lado, e do espermatozóide e do óvulo, por outro. O feto é potencialmente um ser humano adulto no sentido forte. Se deixarmos as coisas decorrer normalmente, daqui a uns meses vamos ter um bebê humano. O espermatozóide e o óvulo são potencialmente seres humanos adultos no sentido fraco. Se a segunda criança começar a receber lições de violino, as coisas alteram-se; do mesmo modo, se um espermatozóide fecundar o óvulo, as coisas também se alteram. A maior parte das pessoas que são contra o aborto referem-se (presumivelmente) apenas à potencialidade forte, não à potencialidade fraca. Por isso, a única coisa que os defensores da legalização poderão fazer é tentar mostrar que é inconsistente proteger o feto, com base na sua potencialidade forte, e não proteger os óvulos e os espermatozóides, com base na sua potencialidade fraca. Infelizmente, a acusação de inconsistência não costuma vir acompanhada de argumentos, pelo que não passa de retórica vazia. Além do mais, a única maneira de impedir que os espermatozóides e os óvulos morressem seria congelá-los. Um homem produz diariamente milhões de espermatozóides. Cada espermatozóide tem uma duração de vida bastante limitada, mesmo não sendo ejaculado. E os óvulos são expelidos naturalmente durante o período de menstruação, e não há muito que possamos fazer para os salvar. É tudo uma questão de tempo.

Um argumento repetido com certa repudia pelos opositores da legalização é o de que, se legalizamos o aborto, então qualquer dia ainda andamos por aí a matar deficientes mentais e idosos com Alzheimmer. Novamente, isto não passa de retórica. Quem avança este tipo de objeção tem a incumbência de explicar porque é que isso se segue — mas tal nunca acontece. Por vezes, fala-se vagamente na emergência de uma "cultura da morte", mas nunca ninguém explica o que isso seja. Estamos perante um conjunto de considerações que são demasiado vagas para poderem ser adequadamente analisadas. É importante frisar que o fato de sermos a favor do aborto não implica, de modo algum, que sejamos a favor da eutanásia ou da pena de morte. Imagine que o leitor é a favor do aborto. Poderá, ainda assim, ser contra a eutanásia porque acredita que não é verdade que as pessoas estejam sempre em condições de decidir o que é o melhor para elas. E poderá ser contra a pena de morte porque não acredita em justiça retributiva — acha que o ponto da justiça não é castigar as pessoas pelos seus crimes, mas sim reeducá-las (quando possível). Há outro aspecto que vale a pena clarificar. Os defensores das touradas costumam acusar os defensores dos direitos dos animais de serem inconsistentes, dado que parece que a maior parte dos defensores dos direitos dos animais são a favor do aborto. Este é um mau argumento porque pressupõe que matar um feto é a mesma coisa que matar cruelmente um touro na arena para gáudio dos espectadores. É possível que haja algum argumento que mostre que é inconsistente ser contra as touradas e ser a favor da legalização — mas eu nunca ouvi nenhum. À partida, nada impede um defensor dos direitos dos animais de ser a favor do aborto. Um defensor dos direitos dos animais poderá até, em princípio, ser contra a realização de abortos em animais, dado que é impossível perguntar ao animal se quer abortar ou não.

5. Em defesa da permissibilidade do aborto

Como prometido, digo agora qual é a minha posição em relação à legalização do aborto. Por razões que passarei a explicar, sou a favor.

De um modo geral, podemos dizer que há basicamente dois tipos de argumentos na bibliografia de bioética que procuram mostrar que o feto tem o direito à vida, pelo que o aborto é imoral: o argumento da potencialidade, e aquilo a que podemos chamar "o argumento dos dois minutos". A parte negativa da minha argumentação será a de tentar mostrar que ambos os argumentos são maus — é o que farei nesta secção. Na próxima, direi qual é a altura a partir da qual penso que devemos considerar que o feto tem o direito à vida e explicarei porque é que acho que todos os outros critérios estão errados. Essa será a parte positiva da minha argumentação.

Os argumentos que fazem uso da potencialidade geralmente têm a seguinte estrutura: o feto é, em potência, um ser humano; todos os seres humanos, quer sejam apenas seres humanos em potência ou não, têm o direito à vida; logo, o feto tem o direito à vida. Este é um mau argumento porque foge à questão. Aquilo que está em disputa é a segunda premissa: não é, por isso, permissível incluí-la num argumento. E é, de qualquer modo, falso que, se um ser tem potencialmente um direito, então tem, efetivamente, esse direito. Enquanto cidadão português, sou potencialmente presidente da República; o presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas; no entanto, daí não se segue que eu seja agora o Comandante Supremo das Forças Armadas. Poderá ser objetado que estou simplesmente a fugir à questão: a analogia não funciona — o feto tem o direito à vida desde a concepção, mas eu só adquirirei o estatuto de Comandante Supremo das Forças Armadas caso venha a ser eleito Presidente da República. O problema com esta objeção é que foge, ela própria, à questão! Se estivéssemos desde logo a partir do princípio de que o feto tem o direito à vida desde a concepção, então para que é que precisaríamos de invocar o estatuto de potencialidade do feto?

Aquele a que podemos chamar "o argumento dos dois minutos" faz o percurso inverso. Primeiro, nota-se que a criança, quando nasce, tem o direito à vida. Depois, acrescenta-se que não há grande diferença entre a criança dois minutos antes de nascer e agora, que acabou de nascer. Isso significa, certamente, que tinha o mesmo direito à vida dois minutos antes de nascer. E, se a coisa é assim, então certamente também teria o direito à vida quatro minutos antes de nascer. E por aí fora até ao momento da concepção. (A concepção não é um processo instantâneo, como alguns parecem pensar; já expliquei isto na segunda secção, e aprofundarei na próxima secção.) Este argumento é falacioso. Para ver que é, basta pensar no seguinte argumento análogo, que é claramente falacioso:

O Jorge não é careca; o Zé tem menos um cabelo na cabeça do que o Jorge; logo, o Zé também não é careca. O Eduardo tem menos um cabelo na cabeça do que o Zé; logo, o Eduardo também não é careca. E, como a diferença de um cabelo não parece ser suficiente para delimitar a fronteira entre os carecas e os não carecas, chegamos ao caso do Manuel, que não tem qualquer cabelo na cabeça. Para sermos consistentes, devemos dizer que o Manuel também não é careca, o que é claramente falso.

Em ambos os casos, a falácia é a mesma. O fato de haver casos de fronteira não significa que não haja casos em que seja fácil dar uma solução. O fato de haver pessoas acerca das quais não saberíamos bem dizer se são ou não carecas não significa que não haja pessoas que são decididamente carecas ou decididamente não carecas. Do mesmo modo, do fato de que um recém-nascido tem o direito à vida não se segue que um feto de dois meses tem o direito à vida.

Na próxima secção passarei em revista os principais critérios propostos na bibliografia para explicar a partir de que altura é que o feto tem o direito à vida e direi qual me parece o mais adequado.

6. Direito à vida a partir de quando?

Sobre o defensor da legalização do aborto recai o fardo de explicar em que altura o feto passa a ter o direito à vida, dado que temos de aceitar que tanto um ser humano adulto como uma criança recém-nascida têm o direito à vida. Há vários critérios propostos na bibliografia, sendo que os seguintes são os mais comuns: concepção; implantação; forma humana; aceleração; atividade cerebral inicial; atividade organizada do córtex cerebral; viabilidade. Sou a favor do critério da atividade organizada do córtex cerebral. Vou rapidamente passar em revista todas as posições e explicar porque é que esta posição parece a correta. Há ainda outra posição: o gradualismo. De acordo com o gradualismo, o feto vai progressivamente adquirindo direitos ao longo do tempo. Tanto quanto pude perceber, o gradualismo não recebe grande atenção na bibliografia de bioética. Direi por que penso que isto sucede mais abaixo. Olhemos, então, para os vários critérios que têm sido propostos na bibliografia de bioética para decidir a partir de que altura é que o feto começa a ter o direito à vida.

Concepção

Como já tive oportunidade de mencionar, muitas pessoas parecem pensar que há um momento concreto em que se dá a concepção; mas isto é falso. A fertilização é um processo gradual que demora cerca de 22 horas. Primeiro, o espermatozóide penetra no óvulo, deixando a cauda do lado de fora. Nas horas seguintes, o espermatozóide e o óvulo são, ainda, duas coisas distintas, embora o espermatozóide já esteja dentro do óvulo. Só ao fim das ditas 22 horas é que já temos um único objeto: o zigoto. Mas vamos fingir que não há esta dificuldade: vamos fingir que há um momento concreto em que se dá a concepção. Ainda assim, a concepção não poderia marcar o momento em que o feto adquire o direito à vida. Presumivelmente, um bebê recém-nascido e um ser humano adulto têm algo em comum que lhes garante a ambos o direito à vida. O que é que o zigoto teria em comum com um bebê recém-nascido e com um ser humano adulto que bastaria para lhe atribuirmos, igualmente, o direito à vida? Não conheço qualquer resposta convincente. O opositor do aborto que favorece o critério da concepção geralmente tenta usar o argumento da potencialidade para mostrar que o zigoto tem o direito à vida. E esse argumento, como já vimos, é muito fraco.

Implantação

A implantação é a altura em que aquilo que virá a ser o feto se "agarra" à parede do útero. Isto geralmente acontece seis a oito dias após a fertilização. É fácil ver que a implantação não pode ser o critério correto. O que é que não existe, no quinto dia, que passa a existir no sexto? Aparentemente, nada. Ocorrem alterações hormonais no corpo da mulher, mas não é claro que relevância moral isto possa ter.

Forma humana

O feto começa adquirir forma humana por volta das seis a oito semanas. Até essa altura, podia parecer apenas "um amontoado de células", como os defensores da legalização costumam dizer, agressivamente. Poderá ser o fato de que o feto adquire forma humana que lhe garante o direito à vida? Não. Se uma avestruz passasse pelas mãos de um cirurgião talentoso e adquirisse forma humana, acha mesmo que adquiriria, só por isso, o direito à vida? Não — se já não o tinha antes, não era agora que ia passar a tê-lo.
Aceleração ("quickening")

Normalmente, a mãe começa a aperceber-se dos movimentos do feto por volta das 16/17 semanas após a fertilização. Há pessoas que defendem que é aqui que o feto começa a ter o direito à vida porque é precisamente na altura em que a mãe sente o feto "a dar pontapés" que se cria uma empatia especial entre ela e o feto. Este também é um mau argumento. O fato de um ser ter ou não o direito à vida não pode estar dependente de termos ou não empatia para com ele (ou ela). Se não podemos dizer que o feto começa a ter o direito à vida quando começa a mexer-se, então também não podemos dizer que começa a ter o direito à vida quando a mãe se apercebe, pela primeira vez, desse movimento.

Atividade cerebral inicial

Na maior parte dos casos, o feto começa a revelar indícios de atividade cerebral entre as 6 e as 10 semanas. É importante especificar o que queremos dizer quando falamos em atividade cerebral. Entre as 6 e as 10 semanas, o que começa a haver é atividade elétrica naquilo que virá a ser o cérebro. Mas isto, por si só, é um dado desinteressante. Há atividade elétrica em todas as células do corpo humano. O fato de haver atividade elétrica naquilo que virá a ser o cérebro não significa que ali se esteja a passar algo de moralmente relevante. Não tenho dúvida de que o desenvolvimento do cérebro está relacionado com a aquisição do direito à vida por parte do feto — mas o tipo de atividade cerebral registrada a partir das 6/10 semanas não é suficiente para que tal suceda. Nessa altura, a única parte do cérebro que está mais ou menos desenvolvida é a que se ocupa de funções básicas, como o ritmo cardíaco e a respiração.

Atividade organizada do córtex cerebral

De acordo com uma estimativa conservadora, o feto começa a ter atividade organizada do córtex cerebral algures entre as 25 semanas e as 32 semanas. (Uma estimativa menos conservadora diria que só às 30 semanas essa atividade tem início.) É a partir desta altura que as ligações sinápticas entre células cerebrais individuais começam a estabelecer-se — até esta altura, essas células eram pequenas ilhas, por assim dizer. Começa a ser possível captar as ondas cerebrais do feto através de eletro-encefalogramas.

Argumentavelmente é sensivelmente a partir desta altura que o feto começa a pensar e a ter consciência, algo que tanto um ser humano adulto como um bebê recém-nascido têm (embora em graus diferentes, obviamente). É por isso que penso ser nesta altura que o feto adquire o direito à vida. Uma objecção perspicaz a este critério é a de que adaptá-lo parece implicar que as pessoas em coma não têm o direito à vida. Uma resposta curta a esta objeção seria a seguinte: Quem tiver lido a quarta secção lembrar-se-á de que estabeleci uma distinção útil entre potencialidade no sentido forte, e potencialidade no sentido fraco. Essa mesma distinção volta a ser pertinente agora. Tanto o feto antes das 25 semanas como o comatoso são potencialmente seres conscientes. No entanto, são-no em sentidos diferentes. O comatoso é potencialmente um ser consciente num sentido mais forte do que aquele em que o feto é potencialmente um ser consciente. O comatoso é como uma pessoa que sabe francês, embora não esteja a falar francês neste momento, e o feto é como uma pessoa que ainda não aprendeu a falar francês. Como a situação do feto antes das 25 semanas e a do comatoso diferem num aspecto relevante (são ambos potencialmente conscientes, mas em sentidos diferentes), o argumento por analogia não colhe.
Viabilidade

Diz-se que um feto se torna viável quando pode sobreviver fora da barriga da mãe (ainda que com recurso a cuidados médicos), o que acontecerá algures entre as 20 e as 23 semanas. Argumenta-se por vezes que a viabilidade do feto marca a altura em que o feto adquire o direito à vida, dado que a partir desta altura o feto já não necessita da mãe. Este critério sofre de um problema óbvio: a altura da viabilidade do feto é determinada pelo estado da tecnologia existente. Isso torna arbitrária a adoção do critério da viabilidade. No futuro, a viabilidade pode passar a ser mais cedo — mas isso não significa que o feto adquira o direito à vida mais cedo.

Uma perspectiva diferente: o gradualismo

Há ainda uma última posição que, tanto quanto me pude aperceber, não é muito discutida na bibliografia de bioética, mas que aparece, de vez em quando, em debates públicos: o gradualismo. O gradualismo é a posição de que o direito à vida é uma questão de grau, e que o feto vai progressivamente adquirindo maior direito à vida à medida que a gravidez avança no tempo. Há um sentido trivial em que concordo com o gradualismo: a partir da vigésima quinta semana, o feto vai adquirindo progressivamente maior direito à vida, e, em termos morais, matar um feto com 30 semanas não é, certamente, a mesma coisa que matar um feto com 40 semanas. No entanto, não é possível usar o gradualismo para argumentar a favor da posição de que o zigoto tem o direito à vida. Ao usar esta linha de argumentação, uma pessoa estaria a cair, subtilmente, no erro de usar o chamado "argumento dos dois minutos", que, como já vimos, é falacioso.

A minha posição não é facilmente rotulável. Dado que acho que há uma altura a partir da qual é imoral abortar, não me considero "pró-escolha". E, dado que acho que é moralmente permissível abortar até certa altura, também não me considero "pró-vida". Se pensarmos que temos de ser ou pró-vida ou pró-escolha, então ficamos perante um grande dilema. Se somos pró-escolha, ficamos com a dificuldade de explicar porque é que o infanticídio não é permissível, dado que seria permissível abortar no nono mês. Se somos pró-vida, ficamos sem nenhuma história para contar para explicar porque é que o zigoto tem o direito à vida — só podemos bater na mesa e repetir que o aborto vai contra a dignidade da pessoa humana. Ao apoiar um critério que me parece convincente, escapo ao dilema.

Dado que há inúmeros critérios possíveis para definir a partir de que altura o feto tem o direito à vida, os opositores da legalização costumam reclamar que, se nem os defensores da legalização estão de acordo acerca do critério a usar, segue-se que devemos ser cautelosos e tratar o feto como se tivesse o direito à vida desde a concepção. Esta objeção falha o alvo. É verdade, sim, que há desacordo entre os defensores da legalização acerca de qual o critério a usar. Mas a única coisa que daqui se segue é que não se pode recorrer a argumentos de autoridade para defender um dado critério. É uma regra elementar da argumentação que não é permissível usar um argumento de autoridade para tentar estabelecer uma dada conclusão quando as autoridades não estão de acordo entre si. No entanto, daqui não se segue, de modo algum, que um critério particular seja tão bom como qualquer outro. E, de fato, acabei de falar dos critérios mais debatidos na bibliografia e, como se pôde ver, só um deles parece defensável. Seja como for, na próxima secção olharei para este argumento da cautela em maior pormenor e explicarei por que acho que não colhe.

7. Será melhor não legalizar por uma questão de cautela?

Tenho vindo a discutir vários argumentos a favor e contra o aborto. Agora, porém, vou analisar um argumento especial que os opositores da legalização costumam usar em desespero de causa. Este argumento não procura estabelecer que o aborto é imoral, mas apenas que o aborto não deve ser legalizado porque o debate acerca da moralidade ou imoralidade do aborto é inconclusivo.

A estratégia argumentativa é a seguinte: Se o aborto é moralmente permissível, então ao tomar a atitude de não legalizar o aborto estaremos apenas a dificultar desnecessariamente a vida às mulheres que pretendiam abortar ("dificultar a vida" é um eufemismo, obviamente). Por outro lado, caso o aborto seja imoral, estaremos a autorizar um assassínio em larga escala. O problema com este argumento é o de que toma a seguinte forma: "podemos achar que os argumentos contra a permissibilidade moral da prática X não são convincentes; no entanto, como as conseqüências morais de X ser imoral seriam terríveis, mais vale abstermo-nos de realizar X". Este é um princípio de decisão a que é comum chamar "princípio de eliminação do risco". A idéia é simples: imagine que o leitor tem várias opções disponíveis. Uma delas tem a possibilidade ínfima de causar um desastre. Por isso, o leitor deve abster-se de escolher esta opção. Não é difícil perceber porque é que não devemos empregar este princípio. Imagine que o leitor é presidente de uma empresa que vende champôs ao domicílio. Um dos seus vendedores vem ter consigo, com ar solene, mas cauteloso, e diz-lhe que acha que a empresa devia deixar de vender o champô "Charmoso". Perplexo com este comentário, dado que o champô Charmoso é, precisamente, o champô mais popular junto dos consumidores, pergunta-lhe, inquieto, quais as suas razões. O vendedor diz-lhe que duas pessoas foram atropeladas, no mesmo dia, logo após usar o dito champô, pelo que a empresa corre o risco de ser processada por vender um champô que dá azar aos utilizadores.

Como é óbvio, este é um argumento nada convincente. A coisa certa a fazer é, sem dúvida, continuar a vender o champô Charmoso. É extremamente escassa a probabilidade de que seja um dia aprovada uma lei (com efeitos retroativos, ainda por cima) que permita processar uma empresa por vender produtos azarentos. E a probabilidade de que o champo Charmoso seja mesmo azarento é mais escassa ainda. O problema com o princípio de eliminação do risco está agora à vista: o princípio pede-nos que negligenciemos a qualidade dos argumentos apresentados. Se houver um argumento qualquer a defender que X é uma conseqüência possível de fazer Y e que X é uma coisa terrível, então, por pior que esse argumento seja, o melhor é mesmo não fazer Y. Este é um princípio que não parece lá grande idéia adotar. O princípio só entra em cena se houver um empate entre os argumentos a favor da posição de que X é uma coisa terrível e os argumentos a favor da posição de que X não é uma coisa terrível. Quando não se mostrou que há esse empate, é falacioso invocar o princípio de eliminação do risco.

O leitor poderá achar, contudo, que usei o exemplo de uma decisão comercial, ao passo que o princípio se aplica, fundamentalmente, a questões éticas. Esta não é uma crítica justa, dado que a objeção que apresentei contra o argumento é igualmente pertinente quer tentemos aplicá-lo na vida de uma empresa, quer na nossa vida ética quotidiana. Um princípio de decisão aplica-se, supostamente, a todas as decisões que temos de tomar no dia-a-dia, quer estejam relacionadas com a nossa vida moral ou não. Mas vou, ainda assim, tomar esta preocupação em linha de conta e apresentar um exemplo de uma questão ética em que o princípio poderia ser empregue.

Imagine, então, que aparecia alguém a dizer que as árvores têm direitos. Nesse caso, ele poderia apelar ao princípio de eliminação do risco e dizer: "vocês podem achar que os meus argumentos não são muito convincentes; no entanto, pensem nas terríveis conseqüências morais de eu estar certo. Estaríamos a autorizar anualmente o assassínio de milhões de arvores inocentes pelo mundo inteiro." Se aceitássemos o princípio de eliminação do risco, então seríamos forçados a deixar de deitar abaixo árvores. Mas não há qualquer razão para fazermos isso, dado que os argumentos a favor da posição de que as árvores tem direitos não são convincentes. As pessoas podem reclamar que o caso das árvores não é semelhante ao do feto, pelo que a analogia não funciona. Não é semelhante? Se o leitor pensa isso, é porque está implicitamente a partir do princípio de que o aborto é imoral. No entanto, como já tive oportunidade de mostrar, não há um empate entre os argumentos a favor da posição de que o aborto é uma tragédia moral e os argumentos a favor da posição de que o aborto não é uma tragédia moral. Pelo contrário — tanto os argumentos freqüentemente usados em debates públicos como os principais argumentos usados na bibliografia de bioética parecem maus. E, embora alguns argumentos apresentados a favor da legalização do aborto sejam maus, há outros que parecem decisivos. Os argumentos não são como maçãs num cabaz: a "podridão" — passe a expressão — de uns não afeta a qualidade (boa ou má) dos outros. (O facto de muitos dos argumentos a favor de uma dada posição serem nitidamente maus pode provocar um preconceito espontâneo contra uma posição, mas essa é outra história.) Concluindo: é falacioso estar a usar o princípio da eliminação do risco para argumentar que, por uma questão de precaução, o aborto não deve ser legalizado, dado que não há um empate entre os argumentos contra e a favor.

A quem queira ter uma posição informada acerca do assunto, aconselho dois livros. Em primeiro lugar, Ethics in practice: an anthology, organizado por Hugh LaFollette, tem uma secção acerca do aborto que contém quatro artigos, sendo que dois deles são já clássicos: "A Defense of Abortion", de J. J. Thomson, e "An Argument that Abortion is Wrong", de Don Marquis. É um escândalo que um livro destes ainda não esteja publicado em Portugal. [Ambos os artigos, e outros, foram entretanto publicados no livro A Ética do Aborto, org. de Pedro Galvão (Dinalivro, 2005).] Não admira que, em termos de divulgação da bioética, ainda estejamos na idade da pedra. Em segundo lugar, A Defense of Abortion, de David Boonin, é a defesa mais convincente (e exaustiva) do aborto que já alguma vez li, e a minha discussão do aborto foi muito influenciada pelo livro. Como foi publicado recentemente (2003), achei por bem retirar daqui todos os dados científicos de que necessitei. Alguns dos argumentos que discuti aqui não aparecem no livro porque são demasiados maus. Achei por bem discuti-los, ainda assim, porque vêm muito à baila em debates públicos em Portugal.

Se o leitor concorda que o aborto deve ser legalizado, então está igualmente ciente de que enfrentamos agora um grave problema político: o referendo foi realizado há apenas 5 ou 6 anos atrás e a resposta foi "não". Se fizermos outro referendo agora, estaremos a desautorizar os votantes, a tratá-los como crianças. Se, por outro lado, o aborto desta vez for legalizado sem recorrer a um referendo, então não se percebe para que se fez o primeiro referendo: bastava ter legalizado logo e pronto. Como as coisas estão é que não podem continuar: o aborto deve ser legalizado até às vinte e cinco semanas. Penso que o melhor a fazer é simplesmente legalizar o aborto sem recorrer a um novo referendo. Nesta altura, alguém poderá objetar que um referendo acerca da legalização do aborto é sempre necessário, tal como um referendo acerca da entrada de um qualquer país na União Européia é sempre necessário. Discordo. Talvez faça sentido repetir-se um referendo acerca da entrada de um dado país na União Européia porque as condições de entrada mudam ao longo do tempo. Os cidadãos de um país podem ver que as vantagens de entrar para a União aumentaram, e nesse caso poderão votar a favor da entrada do país na União. No entanto, o caso moral a favor e contra o aborto não mudará substancialmente ao longo dos anos. É por isso que esta é uma decisão que não deve ser deixada aos votantes: a legalização do aborto não deve passar pelo referendo. Seja como for, isso agora é um problema para os políticos.

8. O estado da discussão pública de problemas éticos em Portugal

Em 5 de Novembro de 2003, Paulo Carvalho, um leitor do jornal Público, interrogava-se acerca de onde andariam os filósofos portugueses. Esta é uma questão pertinente, dado que os filósofos parecem ser as pessoas mais indicadas para discutir questões éticas. Infelizmente, esta é uma ausência auto-inflingida. Não há uma cabala nos meios de comunicação contra os filósofos. O que se passa é que não poderá ser convidada para um debate uma pessoa que jamais tenha tomado a iniciativa de expressar a sua opinião em público, quer através de um livro, de um press-release, ou de uma simples carta para um jornal. Os filósofos portugueses não têm ninguém a culpar pelo seu afastamento da vida pública a não ser eles próprios. Como Paulo Carvalho também notou, há filósofos (como Manuel Maria Carrilho) e pessoas com formação filosófica (como Pacheco Pereira) que intervêm em debates. O problema é o de que, quando o fazem, é sempre enquanto políticos, não enquanto filósofos.

Em Inglaterra, onde me encontro a residir há cerca de três anos, as coisas são diferentes. Sem querer dar uma lista muito extensa, podemos dizer que os seguintes filósofos têm vindo a dar contribuições públicas para a discussão de problemas éticos ao longo de vários anos (escrevendo livros de divulgação para o grande público, escrevendo para jornais, participando em comissões éticas, etc): Bernard Williams (que faleceu no ano passado), Jonathan Wolff, Mary Warnock, Simon Blackburn, Roger Scruton, Anthony Grayling e Raimond Gaita. (Isto apenas em Inglaterra: na América, há outros tantos.) Deixe-me dar apenas um exemplo concreto da participação directa de um filósofo inglês num caso polémico: o caso de Diane Pretty. Diane Pretty tinha uma doença terminal e pediu autorização ao Supremo Tribunal para que o marido pudesse desligar-lhe a máquina sem por isso incorrer numa pena de prisão. Não sei bem se o caso chegou a ser divulgado em Portugal, mas pelo menos em Inglaterra fez correr muita tinta. Lembro-me de há dois anos estar a passar os olhos pelo Guardian e ver um artigo de Grayling, em que ele defendia que a eutanásia devia ser permitida no caso de Diane. Nessa altura, apercebi-me de que este tipo de coisa raramente ou nunca acontece em Portugal.

Em Portugal, é frequentemente apregoado que a filosofia é "o lugar crítico da razão", mas isto na prática é letra morta. Os filósofos portugueses quase não participam na vida pública, ou, quando participam, é geralmente com um discurso demasiado vago para poder ser propriamente avaliado, ou demasiado dogmático para poder ser levado a sério.

O resultado mais visível da ausência de filósofos nas discussões públicas em Portugal é o de que, como Paulo Carvalho diz, acabam por ser convidadas as pessoas erradas para debates: cientistas, jornalistas, políticos, teólogos e juristas. Embora competentes nas suas áreas, geralmente não têm grande conhecimento da bibliografia relevante de bioética. De modo a exemplificar isto, deixe-me contar-lhe um episódio marcante de um debate acerca da clonagem num canal de televisão português. (Abster-me-ei de dizer o canal, a data e os intervenientes de modo evitar polémicas desnecessárias — seria errado fazer disto uma questão pessoal.) Nesse debate, um habitué dos debates televisivos sobre bioética dizia ao jornalista que tinha ido a uma conferência de especialistas europeus em bioética e que tinha sido capaz de convencer a audiência de que a clonagem era errada. O jornalista perguntou-lhe, expectante, qual havia sido esse argumento. O entrevistado respondeu que a clonagem era errada porque ia contra a dignidade da pessoa humana. O jornalista ficou momentaneamente a olhar para o entrevistado, incrédulo, e perguntou, com ar desconfiado, se tal havia bastado para convencer a audiência, ao que o entrevistado respondeu afirmativamente. O jornalista evitou delicadamente fazer qualquer comentário e apressou-se a passar a palavra a outro convidado.

Este é o tipo de coisa que pode acontecer quando são convidadas as pessoas erradas para discutir questões éticas. Felizmente, há pelo menos duas excepções notáveis a este panorama desanimador: Alexandre Quintanilha e Humberto Rosa. Creio que só o primeiro apareceu em debates televisivos, mas o segundo apareceu noutros debates, a que tive a oportunidade de assistir. Um detalhe curioso é o de que tanto um como outro são cientistas. No entanto, não é na qualidade de cientistas que participam nesses debates, mas na qualidade de pessoas obviamente bem informadas acerca da bibliografia relevante de bioética. Se eles quisessem mudar de carreira, não teriam dificuldade em fazê-lo.

Não quero, porém, dar a impressão de que a Inglaterra é um paraíso no sentido da divulgação da bioética — não é. A grande diferença é que, em Inglaterra, há filósofos dispostos a intervir activamente no debate. Isso é bom por duas razões. Por um lado, faz subir o nível de sofisticação filosófica dos cientistas. Por outro, faz os filósofos passar a ter ao seu dispor todos os dados científicos relevantes à distância de um telefonema cordial, de uma mensagem de correio electrónico, ou de uma simples conversa informal após uma conferência. O diálogo entre filósofos e cientistas portugueses é salutar e deve ser encorajado: será bom para ambas as partes.

Os portugueses não têm grande vontade de assistir a debates nos meios de comunicação acerca de questões éticas porque esses debates são sempre a mesma coisa: um grupo de pessoas sentadas numa mesa a expressar os seus preconceitos. Para mudar isso, é preciso que as pessoas sintam que estão a assistir a um debate entre especialistas em bioética que tenham uma visão informada e imparcial acerca do assunto; que esgrimam argumentos, não preconceitos; que não se limitem a atirar areia para a cara das pessoas, mas que as esclareçam acerca das diferentes posições e quais os argumentos que as sustentam.

Pedro Madeira


É de necessidade ler o Livro Ética do Aborto feito por Pedro Galvão, aqui apenas há a introdução, o que se refere a uma boa abordagem, diga-se de passagem.

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Joe
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Re: Aborto e sua ética

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Aborto, uma polémica de sempre
Ana Cristina Leonardo

"Um bebé não é um problema metafísico" foi uma frase que encheu as ruas de Paris, há cerca de 20 anos, durante uma campanha em prol da maternidade. Em Portugal, hoje, a discussão diz respeito ao aborto. Paula Teixeira da Cruz, do Movimento Voto Sim, afirmou que "não estamos a discutir nem a vida nem a morte. Recuso-me a discutir o problema nesses termos" (Diário de Notícias, 20-01-2007). A verdade é que muitos insistem em fazê-lo.

Não sendo os bebés, definitivamente, um problema metafísico, há questões levantadas pelos opositores do Sim que nos deixam na dúvida sobre se não o serão o zigoto, o embrião e o feto. Um dos argumentos mais publicitados pelo Não assenta no seguinte raciocínio:

Premissa a: O feto é, em potência, um ser humano; Premissa b: Todos os seres humanos, mesmo os seres humanos em potência, têm direito à vida; Conclusão: O feto tem direito à vida.


Daí se infere que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) é atentatória desse direito, logo, um crime, um crime parente próximo do homicídio.

É esta, aliás, a posição oficial da Igreja católica, que classifica o aborto como um dos pecados sujeitos a excomunhão (e isto apesar de algumas vozes discordantes, como a do padre Anselmo Borges, teólogo e professor de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que propõe a distinção entre vida, vida humana e pessoa humana): "A gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio (...)" (João Paulo II, Enc. Evangelium Vitae, 25/03/1995, n. 58); e ainda:

"Também a legislação canónica, há pouco renovada, continua nesta linha quando determina que "quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae", isto é, automática" (idem, n. 62).


Mas, a não ser que se faça da vida humana uma leitura religiosa — e essa é uma posição legítima embora, obviamente, impossível de sujeitar a referendo — a argumentação atrás exposta, contrária à IVG, não parece defensável. Porque se o que falta provar é, precisamente, que todos os seres humanos em potência têm direito à vida, não se pode, ao mesmo tempo, afirmá-lo como premissa sem incorrer em falácia. O filósofo Pedro Madeira vai mais longe. Em "Argumentos sobre o Aborto" acrescenta:

"(...) é, de qualquer modo, falso que, se um ser tem potencialmente um direito, então tem, efectivamente, esse direito. Enquanto cidadão português, sou potencialmente presidente da República; o presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas; no entanto, daí não se segue que eu seja agora o Comandante Supremo das Forças Armadas".


Do lado do Sim, insiste-se nas condições sócio-económicas das mulheres desfavorecidas e na realidade dos números, apesar da lei proibitiva. São razões fracas, que pecam por circularidade. Porque do facto de os cidadãos carenciados terem menos condições para contratar um assassino não resulta que o estado deva disponibilizar um serviço grátis de gangsteres ao domicílio. Assim como do facto de existirem ladrões, apesar da lei proibitiva, não se infere que o roubo deva ser legalizado. Note-se que esta contestação aos argumentos do Sim, não implica uma equivalência moral dos exemplos. Apenas se pretende mostrar que, nos casos expostos, a sustentabilidade da argumentação é difícil, se não impossível.

Nada disto é novo. O aborto nunca foi um facto pacífico. No Ocidente, durante a Antiguidade, a sua regulamentação, regra geral, apenas tinha em conta os interesses masculinos e, consequentemente, só era punível quando estes eram lesados: "Estigmatizado como sinal de decadência dos costumes ou visto como atentado à ordem familiar e social, o aborto é considerado uma manifestação de inaceitável autonomia feminina" (in História do Aborto, Giulia Galeotti, Edições 70, 2007). Pelo menos até ao século XVIII, o aborto é encarado como um assunto de mulheres. Rodeado de insondáveis mistérios, à semelhança de tudo quanto dizia respeito ao segundo sexo: não por acaso, durante o longo período da "caça às bruxas", do século XIV ao XVII, uma das acusações mais recorrentes é a das práticas abortivas.

Com o cristianismo a impor-se como religião do estado, o aborto ganhará o estatuto de "crime abominável", um pecado que atenta contra a acção criadora de Deus, destruindo uma criatura que Lhe pertence. Apesar deste princípio geral, a posição sobre o momento em que o feto passa plenamente a pessoa não será unânime. Embora contrário ao aborto, é Santo Agostinho quem avança com a posição mais tolerante, alicerçada na teoria da animação diferida, que faz atrasar o aparecimento da alma em relação ao momento da concepção: "não é homicida quem provoca o aborto antes da infusão da alma no corpo", sugerindo-se que esta surge nos rapazes aos 40 dias e nas raparigas aos 80. A polémica atravessará séculos: em 1558, o Papa Sisto V publica a bula Effraenatam, que condena à excomunhão todos os que provocarem o aborto, sem fazer distinção entre feto animado ou não animado. Em 1591, Gregório XIV retoma a posição agostiniana. Em 1679, Inocêncio XI vem reafirmar que o nascituro é pessoa desde o momento da concepção… Como se vê, a discussão sobre o estatuto do zigoto, do embrião e do feto (embora sob outros nomes) é coisa antiga.

A ciência acabaria por ser chamada à colação, na medida exacta em que se interessa cada vez mais pelos segredos da vida intra-uterina. Quando, em 1762, Charles Bonnet propõe, em defesa do preformismo, que qualquer organismo já contém em si os futuros seres pré-formados a que dará origem, o naturalista suíço crê estar, não só a contribuir para o avanço da ciência como a confirmar a Génese bíblica. De acordo com o preformismo, desde o momento da concepção, ou o espermatozóide transporta em si um "homunculus" (animaculismo), ou este já está contido no óvulo (ovismo). A polémica entre preformismo e epigénese — hipótese proposta em 1759 pelo embriologista alemão Kaspar Friedrich Wolff, que, ao invés de Bonnet, defendia que as novas estruturas se iam formando progressivamente — foi um dos debates intelectuais mais acesos do século XVIII, só resolvido com a teoria celular, já no século seguinte.

Para todos os efeitos, é interessante sublinhar que então, como agora, as posições contrárias ao aborto, mesmo quando assentes em princípios religiosos mais ou menos assumidos, nunca deixaram de tentar credibilizar-se através da ciência. Vejam-se, por exemplo, as declarações actuais de Nuno Vieira, da Plataforma Não Obrigada, um dos muitos portugueses católicos que responderam à chamada do bispo de Leiria para ir a Fátima "celebrar a vida", esclarecendo que o movimento a que pertence está empenhado em dotar a sua campanha de "dados científicos", procurando utilizar uma "linguagem moderada e esclarecedora".

Se a religião sempre se pronunciou sobre o aborto, e também a ciência viria a intervir no debate, caberá ao estado e ao direito legislar sobre o tema. Aquilo a que alguns autores, nomeadamente Elisabeth Badinter, chamaram "a invenção da maternidade", ideia romântica que começa a propagar-se em finais do século XVIII e que desenha uma mulher plenamente realizada no seu papel de mãe, toda ela bondade e sentimentalismo, cruzar-se-á com os desígnios do poder político, que, pela primeira vez, irá defender o feto, agora não por motivos de fé mas por razões de estado. A demografia torna-se ideologia (então, como agora, era necessário fazer aumentar a natalidade), a maternidade é explicitamente regulamentada e o aborto voluntário declarado contrário ao patriotismo nascente. Em 1810, o artigo 317 do Código Penal francês é claro: "Quem provocar aborto de uma mulher grávida com ou sem o seu consentimento (...) é punido com prisão". Em Portugal, o Código Penal de 1886 considera o aborto ilícito em todas as situações e, já no século XX, a tendência mantém-se, embora o Projecto da Parte Especial do Código Penal de 1966, do Prof. Eduardo Correia, previsse, como excepção, o aborto terapêutico (acrescente-se, a título de curiosidade, que a tese apresentada por Álvaro Cunhal em 1940 para o exame de 5.º ano da Faculdade de Letras de Lisboa versava o tema: O Aborto: Causas e Soluções, Campo das Letras, 1997). O que se verifica, portanto, é que após séculos a tecer, como Penélope, no recato das casas, as mulheres e, consequentemente, a maternidade, ganham uma exposição cada vez maior no espaço público, com todas as consequências daí decorrentes.

A grande alteração ao estado das coisas — tendencialmente repressivo da IVG (em França, por exemplo, em 1942, o aborto é considerado "crime contra o estado" e sujeito à pena capital — ficará tristemente célebre o caso de Marie-Louise Giraud, guilhotinada a 9 de Junho de 1943 por práticas abortivas) — dar-se-á com a introdução, na década de 70, do argumento que pugna pelo "direito das mulheres ao seu próprio corpo". E, embora hoje em dia, este pareça ser um argumento em desvantagem na discussão, a sua consistente defesa pela filósofa Judith Jarvis Thomson em 1971 continua a ser uma referência inultrapassável (ver A Ética do Aborto, organização e tradução de Pedro Galvão, Dinalivro, 2005).

A grande viragem (mesmo se, já desde 1967, a legislação britânica fosse bastante tolerante na matéria) ocorre em 1970, quando, nos Estados Unidos, o Supremo Tribunal, no caso Roe versus Wade, decide a favor de a mulher poder escolher interromper a gravidez. Segundo Ronald Dworkin, especialista em filosofia do direito, o que estava então em causa não dizia respeito "ao problema metafísico da pessoa do feto ou teológico da sua alma, mas sim ao problema jurídico de o feto ser ou não uma pessoa do ponto de vista constitucional" (in História do Aborto). E se Jane Roe dá hoje voz aos chamados movimentos Pró-vida, a decisão continua a fazer lei, apesar da insistência de George W. Bush em atribuir personalidade jurídica ao feto. As palavras de Ronald Dworkin poderão, eventualmente, agradar a Paula Teixeira da Cruz. Afinal, colocar a questão do aborto em termos absolutos de vida ou de morte, não parece estar a levar a lugar nenhum, apresentando-se a própria comunidade científica dividida quanto ao assunto. Sendo, contudo, irrecusável, que no debate sobre a IVG, seja ela encarada sob o prisma do direito ou da saúde pública, se introduz um irrecusável problema moral, dificilmente a discussão ética poderá ser varrida para debaixo de tapete.

O caso ocorrido na Irlanda em 1992, que envolveu uma adolescente grávida que ameaçou suicidar-se se não lhe fosse permitido interromper a gravidez, talvez seja exemplo suficiente para percebermos os limites do que está em causa. Sendo a Irlanda, juntamente com Portugal, Polónia e Malta, dos países europeus com legislação mais repressiva na matéria, o Supremo Tribunal irlandês levantaria a interdição da jovem se deslocar ao estrangeiro, e esta pôde abortar em Inglaterra. Ora isto, independentemente da posição de cada um sobre a moralidade do aborto, deixa-nos perante a questão mais radical de todas: como obrigar uma mulher grávida que não quer ser mãe a sê-lo? O que nos conduz a uma segunda pergunta: até onde pode o estado interferir nas decisões individuais dos seus cidadãos? É que, independentemente de concordarmos ou não com o argumento do "direito ao corpo", independentemente de aceitarmos ou não a existência de um conflito de interesses entre o estatuto da mulher e do feto, e, até independentemente de nos colocarmos de um lado ou de outro, o que é inegável é que a natureza atribuiu à mulher o poder da maternidade. Enquanto assim for, não há legislação que possa mudar esse facto.

Ana Cristina Leonardo

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Re: Aborto e sua ética

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ABORTO
é possível ser ao mesmo tempo
"pró-vida" e "pró-escolha"?


Carl SAGAN


A humanidade gosta de pensar em termos de extremos opostos. É dada a formular as suas convicções em termos de ou-ou, entre os quais não identifica possibilidades intermédias. Quando se vê obrigada a reconhecer que não é possível influenciar os extremos, continua inclinada a defender que em teoria eles têm razão, mas que, quando se trata de questões práticas, as circunstâncias nos empurram para o compromisso.

JOHN DEWEY, Experiência e Educação, I (1938)


A questão tinha sido decidida anos antes. O tribunal tinha optado pela posição intermédia. Pensou-se que a luta tinha acabado. Em vez disso, há comícios gigantescos, ataques à bomba e intimidações, assassínios de trabalhadores de clínicas de aborto, prisões, intensas acções de sensibilização de órgãos do poder, dramatização legislativa, audições no Congresso, decisões do Supremo Tribunal, grandes partidos políticos que quase se definem em função da questão e clérigos que ameaçam os políticos com o inferno. Os que são a favor brandem acusações de hipocrisia e crime. Invoca-se do mesmo passo a intenção da Constituição e a vontade de Deus. Exibem-se argumentos duvidosos como se fossem certezas. As facções em confronto fazem apelo à ciência para reforço das suas posições. As famílias dividem-se, marido e mulher concordam em não discutir o assunto, velhos amigos deixam de se falar. Os políticos consultam as sondagens mais recentes em busca de ditames de consciência. No meio de tanta gritaria, os adversários mal conseguem ouvir-se. As opiniões polarizam-se. As mentes fecham-se.

Será errado abortar uma gravidez? Sempre? Às vezes? Nunca? Como decidir? Escrevemos este artigo para melhor compreendermos os pontos de vista em confronto e para vermos se conseguíamos chegar a uma posição que satisfizesse a ambos. Não há meio termo? Tivemos de avaliar a consistência dos argumentos de ambos os lados e apresentar casos para teste, alguns dos quais meramente hipotéticos. Se no caso de alguns desses testes dermos a ideia de que vamos longe de mais, pedimos ao leitor que tenha paciência connosco — o que queremos é forçar as várias posições até ao ponto de ruptura para lhes detectarmos os pontos fracos e ver onde falham.

Nos momentos de meditação, quase toda a gente reconhece que a questão não é totalmente unilateral. Verifica-se que muitos defensores de pontos de vista diferentes sentem algum desconforto quando se confrontam com o que está na base dos argumentos opostos. (É em parte por isso que se evitam esses confrontos.) E não há dúvida de que o problema toca em questões de fundo: quais são as nossas responsabilidades para com os outros e vice-versa? Devemos permitir que o Estado se intrometa nos aspectos mais íntimos e pessoais das nossas vidas? Onde estão os limites da liberdade? O que significa ser humano?

Dos muitos pontos de vista existentes, a ideia generalizada — em especial na comunicação social, que raramente tem tempo ou vontade de fazer distinções subtis — é a de que só há dois: "pró-escolha" e "pró-vida". É assim que gostam de ser chamados os dois principais campos beligerantes, e é assim que vamos chamar-lhes aqui. Na caracterização mais simplista, um pró-escolha defenderá que a decisão de abortar uma gravidez só pertence à mulher, que o Estado não tem direito a interferir. E um pró-vida defenderá que, a partir do momento da concepção, o embrião ou feto tem vida, que essa vida impõe a obrigação moral de a preservar e que aborto é igual a crime. Ambos os nomes — pró-escolha e pró-vida — foram escolhidos com a intenção de influenciar aqueles que ainda estão indecisos: não há muita gente disposta a ser considerada contrária à liberdade de escolha ou oposta à vida. Com efeito, liberdade e vida são dois dos valores mais queridos, mas aqui parecem estar em conflito irredutível.

Analisemos separadamente cada uma destas posições absolutistas. Um bebé recém-nascido é seguramente o mesmo ser que era imediatamente antes de nascer. Há boas provas de que um feto em fim de período responde ao som — inclusive à música, mas especialmente à voz da mãe. É capaz de chuchar no dedo ou dar uma cambalhota. De vez em quando gera ondas cerebrais de adulto. Há pessoas que se lembram do seu nascimento, ou mesmo do ambiente uterino. Talvez no ventre se pense. É difícil defender que no momento do parto se dá abruptamente uma transformação em pessoa plena. Assim sendo, será aceitável que seja crime matar uma criança no dia a seguir a ter nascido e não no dia antes de ter nascido?

Em termos práticos, isso não é muito importante: menos de 1% de todos os abortos constantes dos registos nos Estados Unidos terão ocorrido nos três últimos meses de gravidez (e, quando analisados em mais pormenor, a maior parte deles resultam de perda involuntária ou erro de cálculo). Mas os abortos no 3.º trimestre constituem um teste aos limites da posição pró-escolha. O "direito natural da mulher a dispor do seu próprio corpo" incluirá o direito a matar um feto em fim de tempo, que é, para todos os efeitos e fins, idêntico a uma criança recém-nascida?

Estamos convencidos de que esta questão assalta, pelo menos de vez em quando, muitos dos defensores da liberdade de reprodução. Mas têm relutância em suscitá-la porque ela é o princípio de uma encosta escorregadia. Se não é permissível abortar uma gravidez que vai no nono mês, que dizer do oitavo, sétimo, sexto...? Se aceitarmos que o Estado possa interferir numa altura da gravidez, não decorrerá daí que o Estado pode interferir sempre?

Isto faz levantar o espectro de legisladores, predominantemente homens, predominantemente ricos, a dizerem a mulheres pobres que têm de dar à luz e criar sozinhas filhos que não podem sustentar, a obrigarem raparigas a darem à luz filhos para os quais não estão emocionalmente preparadas, a dizerem a mulheres com aspirações a uma carreira que têm de abdicar dos seus sonhos, ficar em casa e criar filhos e, o que é o pior de tudo, a condenarem vítimas de violação e incesto a levarem por diante e alimentarem o filho de quem contra elas atentou(*). As proibições do aborto pela via legislativa suscitam a suspeita de que a sua real intenção seja controlar a independência e a sexualidade das mulheres. Por que hão-de os legisladores ter algum direito de qualquer espécie de dizer às mulheres o que podem fazer com o seu corpo? Privá-las da liberdade de reprodução é humilhá-las. As mulheres estão fartas de humilhações.
(*) Dois dos mais fervorosos arautos do pró-vida de todos os tempos foram Hitler c Estaline — que logo que chegaram ao poder criminalizaram o aborto, até então legal. Mussolini, Ceausescu e inúmeros outros ditadores nacionalistas fizeram o mesmo. É claro que isto não constitui por si só um argumento a favor da escolha, mas é, pelo menos, um alerta para a possibilidade de a posição contrária ao aborto nem sempre ser sinónima de um profundo respeito pela vida humana.


E, no entanto, por consenso, todos pensamos que deve haver leis contra, e penas para, o homicídio. Seria fraca defesa se o homicida alegasse que o que fez foi entre ele e a vítima e o Estado não tinha nada a ver com isso. Se matar um feto é efectivamente matar um ser humano, não será obrigação do Estado preveni-lo? Uma das funções primordiais do governo é efectivamente proteger os fracos dos fortes.

Se não nos opusermos ao aborto em alguma fase da gravidez, não haverá o perigo de desprezarmos uma categoria inteira de seres humanos por indignos da nossa protecção e respeito? E não será esse desprezo o timbre do sexismo, do racismo, do nacionalismo e do fanatismo religioso? Não deverão aqueles que se dedicam à luta contra tais injustiças ter um cuidado escrupuloso para não pactuarem com outra injustiça?

Em nenhuma sociedade à face da Terra há hoje, nem nunca houve em tempo algum (com poucas e raras excepções, como os Jainas da Índia), direito à vida: criamos animais domésticos para matança; destruímos florestas; poluímos rios e lagos até ao ponto de os peixes não conseguirem lá viver; matamos veados e alces por desporto, leopardos pela pele e baleias para adubos; aprisionamos golfinhos, que arfam e se debatem, em grandes redes de atum; espancamos até à morte crias de focas; extinguimos uma espécie por dia. Todos estes animais e vegetais são tão vivos como nós. O que (supostamente) é protegido não é a vida, mas sim a vida humana.

E mesmo com tal protecção o homicídio não premeditado é um lugar-comum na vida urbana e travamos guerras "convencionais" saldos de vítimas tão terríveis que quase todos nós temos medo de pensar nisso a fundo. (É significativo que as chacinas organizadas pelos Estados sejam normalmente justificadas pela reclassificação dos nossos adversários — por questões de raça, nacionalidade, religião ou ideologia — como sub-humanos.) Essa protecção, esse direito à vida, ignora as 40 000 crianças com menos de 5 anos que morrem diariamente de fome, desidratação, doença e negligência no nosso planeta e que podiam ser, todas elas, evitadas.

Aqueles que afirmam um "direito à vida" são (quando muito) a favor, não de toda e qualquer manifestação de vida, mas sim a favor — em particular e exclusivamente — da vida humana. Por isso, também eles, tal como os que são pró-escolha, têm de decidir o que distingue o ser humano dos outros animais e quando surgem, durante a gestação, as qualidades exclusivamente humanas — sejam elas quais forem.

Apesar das muitas afirmações em contrário, a vida não começa com a concepção: é uma cadeia ininterrupta que se estende quase até à origem da Terra, há 4,6 biliões de anos. E a vida humana também não começa na concepção: é uma cadeia ininterrupta que vem desde a origem da nossa espécie, há centenas de milhares de anos. Qualquer espermatozóide ou óvulo humano está, sem sombra de dúvida, vivo. Não são seres humanos, evidentemente. Mas o mesmo poderia dizer-se de um óvulo fertilizado.

Em certos animais, um ovo desenvolve-se até dar lugar a um adulto saudável sem necessitar de uma única célula de esperma. Mas isso não acontece, tanto quanto sabemos, entre os seres humanos. Um espermatozóide e um óvulo por fertilizar constituem em conjunto o mapa genético integral de um ser humano. Em certas circunstâncias, após a fertilização, podem desenvolver-se e dar um feto. Mas a maior parte dos ovos fertilizados abortam espontaneamente. O desenvolvimento para feto não está de modo nenhum garantido. Nem um espermatozóide e um óvulo separados, nem um óvulo fertilizado, são mais do que um bebé ou um adulto em potência. Por isso, se um espermatozóide e um óvulo são tão humanos como um óvulo fertilizado resultante da sua união, e se é crime destruir um óvulo fertilizado — apesar de não passar de um bebé em potência —, por que não há-de ser crime destruir um espermatozóide ou um óvulo?

Centenas de milhões de células de espermatozóide (velocidade máxima com a cauda a abanar: 12 centímetros por hora) são produzidas, em média, numa ejaculação masculina. Um jovem saudável pode produzir em uma ou duas semanas espermatozóides suficientes para duplicar a população humana da Terra. Então a masturbação será homicídio cm massa? E as emissões nocturnas do sexo vulgar? Quando os óvulos não fecundados são expelidos mensalmente, morreu alguém? Deveremos pôr luto por todos esses abortos? É possível, em laboratório, produzir muitos animais inferiores a partir de uma única célula. E é possível clonar células humanas (talvez o mais famoso seja o clone HeLa, assim chamado por causa da sua doadora, Helen Lane). À luz desta tecnologia de clonagem, estaríamos a cometer homicídios em massa ao destruirmos qualquer célula clonável? Ao deitarmos fora uma gota de sangue?

Todos os espermatozóides e óvulos humanos são metades genéticas de seres humanos "potenciais". Fará sentido desenvolver esforços heróicos no sentido de os salvar e preservar integralmente, em toda a parte, por causa desse "potencial"? Não o fazer será imoral ou criminoso? É claro que existe uma diferença entre tirar uma vida e não a salvar. E existe uma grande diferença entre a probabilidade de sobrevivência de uma célula de espermatozóide e a de um óvulo fertilizado. Mas o absurdo de um exército de generosos preservadores de sémen leva-nos a pensar se o simples "potencial" de um óvulo fertilizado chegar a ser um bebé bastará para fazer da sua destruição um homicídio.

Os adversários do aborto receiam que, se for permitido o aborto imediatamente após a concepção, não haja mais nenhum argumento que o restrinja em qualquer fase posterior da gravidez. Daí que, temem eles, um dia seja permissível matar um feto, que é inquestionavelmente um ser humano. Tanto os que são pró-escolha como os que são pró-vida (pelo menos parte deles) são empurrados para posições absolutistas por receios paralelos da tal encosta escorregadia.

Encosta escorregadia é também aquela com que deparam os pró-vida dispostos a abrir uma excepção no caso angustiante de uma gravidez resultante de violação ou incesto. Mas por que há-de o direito à vida depender das circunstâncias da concepção? Se o resultado é igualmente uma criança, poderá o Estado decretar a vida para o fruto de uma união legítima, mas a morte para alguém que foi concebido pela força ou coacção? Que justiça é esta? E, se se abre uma excepção para um feto nestas circunstâncias, porquê recusá-la para qualquer outro feto? Esta é parte da razão pela qual algumas pessoas que são pró-escolha adoptam aquela que muitas outras consideram a postura excessiva de oposição ao aborto em todas e quaisquer circunstâncias — com a possível excepção do caso em que esteja em risco a vida da mãe(*).
(*) Martinho Lutero, o fundador do protestantismo, recusava mesmo esta excepção: "Se elas ficarem cansadas ou mesmo morrerem de parto, não faz mal. Que morram de fecundidade — é para isso que elas existem" [Lutero, Vom Ebelichen Leben (1522)].


A razão mais frequente para abortar, à escala mundial, é de longe o controle da natalidade. Assim sendo, não deveriam os adversários do aborto andar a distribuir contraceptivos e a ensinar as crianças das escolas a usá-los? Seria um método eficaz de reduzir o número de abortos. Mas não é isso que se passa: os Estados Unidos estão muito atrás de outros países no desenvolvimento de métodos seguros c eficazes de controle do nascimento — em muitos casos a oposição a esse tipo de investigação (e à educação sexual) vem das mesmas pessoas que são contra o aborto(*).

(*) E os que são pró-vida não deviam contar os aniversários de nascimento desde o momento da concepção? Não deviam fazer um interrogatório cerrado aos seus progenitores sobre a sua história sexual? É claro que iriam chegar a uma incerteza insanável: pode levar horas ou mesmo dias desde o acto sexual até acontecer a concepção (dificuldade acrescida para quem é pró-vida, mas quer estar de bem com a astrologia dos signos do Zodíaco).


A tentativa de chegar a uma definição eticamente válida e inequívoca de quando, se em algum momento, é permissível o aborto tem raízes históricas profundas. Com muita frequência, em especial na tradição cristã, essas tentativas estiveram ligadas à questão do momento em que a alma entra no corpo — matéria que não é fácil de submeter a investigação científica e assunto de controvérsia mesmo entre teólogos eruditos. Já houve quem localizasse a entrada da alma no espermatozóide antes da concepção, no momento da concepção, na altura da "aceleração" (quando a mãe sente pela primeira vez o feto a mexer dentro dela) e no nascimento. Ou mesmo depois.

Diferentes religiões têm doutrinas diferentes. No seio dos caçadores-recolectores não há normalmente limitações ao aborto, que na Grécia e Roma antigas era prática comum. Em contrapartida, os Assírios, mais severos, empalavam em estacas as mulheres que tentavam o aborto. O Talmude judaico ensina que o feto não é uma pessoa e não tem direitos. O Velho e o Novo Testamentos — ricos de proibições espantosamente pormenorizadas sobre trajos, dietas c palavras permissíveis — não contêm uma única palavra de proibição específica do aborto. A única passagem que vagamente lhe diz respeito (Exodus, 21, 22) decreta que, se houver uma luta e uma mulher circunstante for ferida por acidente e abortar, o autor tem de pagar uma multa.

Nem Santo Agostinho nem São Tomás de Aquino consideravam homicídio o aborto cm início de termo (o segundo com base cm que o embrião não parece humano). Este ponto de vista foi adoptado pela Igreja no Concílio de Viena, em 1312, e nunca foi repudiado. A primeira colectânea de direito canónico, em vigor durante muito tempo (segundo o principal historiador da doutrina da Igreja sobre o aborto, John Connery, S. J.), defendia que o aborto só era homicídio depois de o feto já estar "formado" — mais ou menos no fim do 1." trimestre.

Mas, quando, no século XVII, as células de esperma foram examinadas aos primeiros microscópios, achou-se que elas mostravam um ser humano completamente formado. Ressuscitou-se uma velha ideia do homúnculo — segundo a qual dentro de cada célula de esperma estava um minúsculo ser humano completamente formado, dentro de cujos testículos estavam inúmeros outros homúnculos, etc., ad infinitum. Em parte por causa desta interpretação errada de dados científicos, o aborto, em qualquer altura e por qualquer razão, tornou-se em 1869 motivo para excomunhão. A maior parte dos católicos e não católicos surpreendem-se quando descobrem que a data foi essa e não outra muito anterior.

Desde os tempos coloniais até ao século XIX, a opção nos Estados Unidos foi pela mulher até à "aceleração". Um aborto no 1º ou mesmo no 2.º trimestre era, quando muito, má conduta. Raramente era pedida a condenação, que era praticamente impossível de obter, porque dependia inteiramente do testemunho da própria mulher sobre se tinha sentido a aceleração e porque aos juizes não agradava acusarem uma mulher por exercer o seu direito à escolha. Em 1800 não havia, tanto quanto se sabe, uma única lei sobre o aborto. Viam-se anúncios a drogas indutoras do aborto em praticamente todos os jornais e mesmo em muitas publicações religiosas — embora a linguagem usada fosse adequadamente eufemística, mas de fácil compreensão.

Mas em 1900 já o aborto em qualquer altura da gravidez era interdito em todos os estados da União, excepto quando fosse necessário para salvar a vida da mãe. O que aconteceu para provocar tão grande reviravolta? A religião pouco teve a ver com ela. Drásticas conversões económicas e sociais transformaram este país de uma sociedade agrária numa sociedade urbano-industrial. A América estava a caminho de passar de uma das mais altas taxas de natalidade do mundo para uma das mais baixas. Sem dúvida, o aborto teve nisso um papel e estimulou as forças favoráveis à sua supressão.

Dessas forças, uma das mais significativas foi a classe médica. Até meados do século XIX, a medicina era uma actividade que não era certificada nem vigiada. Qualquer pessoa podia pendurar à porta uma tabuleta e intitular-se doutor. Com a criação de uma elite médica nova, de formação universitária, desejosa de promover o estatuto c a influência dos médicos, constituiu-se a Associação Médica Americana. Na sua primeira década de vida, a AMA começou a fazer campanha de bastidores contra os abortos que não fossem praticados por médicos legalmente reconhecidos. Diziam os médicos que os novos conhecimentos de embriologia tinham demonstrado que o feto é humano mesmo antes da aceleração.

O ataque que fizeram ao aborto era motivado, não pela preocupação com a saúde da mulher, mas sim, afirmavam, com o bem-estar do feto. Era preciso ser médico para saber quando o aborto era moralmente justificável, porque a questão dependia de factos científicos e médicos que só os médicos compreendiam. Ao mesmo tempo, as mulheres eram efectivamente excluídas das escolas médicas, onde tão secretos conhecimentos eram ministrados. Resultado: as mulheres não tinham a mínima palavra a dizer sobre a interrupção da sua própria gravidez. Cabia também aos médicos decidir se a gravidez constituía uma ameaça para a mulher e ficava ao seu inteiro critério determinar o que era e não era uma ameaça. Para a mulher rica, a ameaça podia ser uma ameaça à sua tranquilidade emocional ou mesmo ao seu estilo de vida. A mulher pobre era muitas vezes obrigada a recorrer à solução clandestina ou ao cabide.

Foi assim a lei até aos anos 60, altura em que uma coligação de indivíduos e organizações, entre elas a AMA, se bateu pela sua revogação e pela restauração dos valores mais tradicionais que viriam a tomar corpo no caso Roe contra Wade.

Matar por deliberação um ser humano chama-se assassínio. Matar por deliberação um chimpanzé — biologicamente o nosso parente mais próximo, com o qual partilhamos 99,6% dos nossos genes activos — pode ser qualquer outra coisa, mas assassínio não é. Até ver, assassínio aplica-se apenas ao acto de matar seres humanos. Daí que seja nuclear para a discussão do aborto a questão de saber em que momento começa a haver pessoa (ou, se quisermos, alma). Quando é que o feto se torna humano? Quando emergem as qualidades que são distinta e caracteristicamente humanas?

Reconhecemos que especificar um momento preciso é passar por cima de diferenças individuais. Portanto, se temos de traçar uma linha, que seja conservadora — isto é, sobre o cedo. Há quem resista a ter de definir um limite numérico, e nós comungamos desse desconforto, mas, se tem de haver uma lei nesta matéria, e se queremos que ela estabeleça um compromisso prático entre as duas posições absolutistas, ela tem necessariamente de especificar, pelo menos aproximadamente, um tempo de transição para a pessoalidade.

Todos nós começámos por sermos um ponto. Um óvulo fecundado é mais ou menos do tamanho do ponto com que se termina ortograficamente esta frase. O importante encontro de espermatozóide e óvulo ocorre normalmente numa das duas trompas-de-falópio. Uma célula divide-se em duas, duas transformam-se em quatro, e assim sucessivamente — sempre a multiplicar por 2. Ao décimo dia o ovo fertilizado transforma-se numa espécie de esfera achatada que parte para outro reino: o útero. Pelo caminho destrói tecidos. Suga sangue dos vasos capilares. Banha-se em sangue materno, do qual extrai oxigénio e nutrientes. Instala-se como uma espécie de parasita nas paredes do útero.

* À terceira semana, por altura da primeira falta de período menstrual, o embrião em formação tem cerca de 2 milímetros de comprimento e desenvolve várias partes do corpo. Só nesta altura começa a depender de uma placenta rudimentar. Tem mais ou menos o aspecto de um verme segmentado(*).
(*) Várias publicações de direita e de cristãos fundamentalistas criticaram este argumento — dizendo que ele se baseia numa doutrina obsoleta, chamada recapitulação, de um biólogo alemão do século XIX. Ernst Haeckel defendia que os passos do desenvolvimento embrionário individual de um animal reconstituem (ou recapitulam) as fases do desenvolvimento evolutivo dos seus antepassados. A recapitulação foi exaustiva e cepticamente tratada pelo biólogo evolucionista Stephen Jay Gold (no seu livro Ontogenia e Filogenia, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Prcss, 1977). Mas o nosso artigo não tinha uma palavra sobre a recapitulação, como o leitor deste capítulo poderá constatar. As comparações do feto humano com outros animais (adultos) baseiam-se na aparência do feto. A sua forma não humana, nada que diga respeito à sua história evolucionista, é a chave do raciocínio que expomos nestas páginas.


* Ao fim da quarta semana tem cerca de 5 milímetros de comprimento. É reconhecivelmente um vertebrado, o seu coração de forma tubular começa a bater e torna-se visível a presença de algo que faz lembrar as guelras de um peixe ou de um anfíbio e uma cauda pronunciada. Mais parece um tritão ou um girino. É o fim do primeiro mês volvido sobre a concepção.

* À quinta semana já se distingue o essencial das linhas de divisão do cérebro e o que mais tarde irão ser os olhos e surgem uns pequenos rebentos a partir dos quais irão formar-se os braços e as pernas.

* À sexta semana, o embrião tem 13 milímetros de comprimento. Os olhos ainda estão aos lados da cabeça, como na maioria dos animais, e a face de réptil apresenta fendas cerradas no lugar que irá ser o da boca e do nariz.

* Ao fim da sétima semana, a cauda praticamente desapareceu e já se detectam características sexuais (embora ambos os sexos pareçam femininos). A face é de mamífero, mas vagamente porcina.

* Ao fim da oitava semana, a face faz lembrar um primata, mas ainda não é completamente humana. Quase todas as partes do corpo humano estão presentes no essencial. Parte da anatomia do cérebro inferior está bem desenvolvida. O feto mostra alguma resposta reflexa a um estímulo delicado.

* À décima semana, a face tem feições iniludivelmente humanas. Começa a ser possível distinguir os machos das fêmeas. As unhas e as principais estruturas ósseas só aparecem ao terceiro mês.

* Ao quarto mês já se distingue a cara de um feto da de outro. A aceleração sente-se quase sempre ao quinto mês. Os bronquíolos dos pulmões só começam a desenvolver-se por volta do sexto mês e os alvéolos ainda mais tarde.

Portanto, se só uma pessoa pode ser assassinada, quando é que o feto atinge a pessoalidade? Quando a sua face se torna nitidamente humana, perto do final do 1.º trimestre? Quando o feto começa a responder a estímulos, no fim do 1.º trimestre? Quando se torna suficientemente activo para se sentir acelerar, o que acontece, por norma, a meio do 2.º trimestre? Quando os pulmões atingem um estádio de desenvolvimento suficiente para que o feto possa, apenas por hipótese, ser capaz de respirar sozinho ao ar livre?

O problema com estos marcos específicos de desenvolvimento não é apenas o facto de eles serem arbitrários. Mais preocupante é o facto de nenhum deles envolver características exclusivamente humanas — com excepção da questão superficial do aspecto da face. Todos os animais respondem a estímulos e se mexem por vontade própria. Muitos são capazes de respirar. Mas isso não de os exterminarmos aos biliões. Não são os reflexos, nem o movimento, nem a respiração, que fazem de nós humanos.

Há outros animais que têm vantagem sobre nós em termos de velocidade, força, resistência, capacidades trepadoras ou rastejadoras, camuflagem, visão, olfacto ou audição, agilidade no ar ou na água. A nossa única grande vantagem, o segredo do nosso sucesso, é o pensamento — o pensamento caracteristicamente humano. Temos capacidade para pensarmos profundamente nas coisas, imaginarmos acontecimentos que ainda estão para vir, encontrar soluções. Foi assim que inventámos a agricultura e a civilização. O pensamento é a nossa bênção e a nossa maldição e faz de nós aquilo que somos.

É claro que as coisas acontecem no cérebro — principalmente nas camadas superiores da "massa cinzenta" convoluta a que se chama córtex cerebral. Os cerca de 100 biliões de neurónios do cérebro constituem a base material do pensamento. Os neurónios estão ligados uns aos outros e as suas sinapses desempenham um papel fundamental no acto de pensar. Mas a interligação de neurónios em larga escala só começa entre a 24ª e a 27ª semanas de gravidez — o sexto mês.

Através da colocação de eléctrodos inofensivos na cabeça de um paciente, os cientistas medem a actividade eléctrica produzida pela rede de neurónios existente dentro do crânio. Tipos diferentes de actividade mental produzem tipos diferentes de ondas cerebrais. Mas as ondas cerebrais de padrão regular características do cérebro humano adulto só são detectadas no feto por altura da 30ª semana de gravidez — à entrada do 3.º trimestre. Antes disso o feto não tem a necessária arquitectura cerebral. Ainda não pode pensar.

Aceder a matar qualquer criatura viva, em especial uma que possa mais tarde transformar-se num bebé, é perturbador e doloroso. Mas nós rejeitámos os extremos do "sempre" e do "nunca" e isto coloca-nos — quer queiramos, quer não — na rampa escorregadia. Se nos obrigam a escolher um critério de desenvolvimento, então é aqui que traçamos a linha: mal se torna possível o começo do pensamento caracteristicamente humano.

Trata-se, efectivamente, de uma definição muito conservadora: raramente se detectam em fetos ondas cerebrais regulares. Talvez mais investigação ajudasse. (Nos babuínos e nos fetos de ovinos as ondas cerebrais bem definidas também só começam no fim da gestação.) Se quiséssemos tornar o critério ainda mais rigoroso, prevendo a eventualidade de casos de desenvolvimento cerebral fetal precoce, podíamos traçar a linha aos seis meses. Por acaso foi aí que o Supremo Tribunal a traçou em 1973 — embora por razões completamente diferentes.

A sua decisão no caso Roe contra Wade veio mudar a lei americana sobre o aborto. Permite o aborto a pedido da mulher sem restrições no 1.º trimestre e, com algumas restrições destinadas a proteger-lhe a saúde, no 2.º trimestre. Dá aos estados o direito de proibirem o aborto no 3.º trimestre, excepto quando existe uma ameaça séria à vida ou à saúde da mulher. No acórdão Webster de 1989, o Supremo Tribunal recusou-se a revogar explicitamente a doutrina do caso Roe contra Wade, mas na prática convidou os 50 órgãos legislativos estaduais a que decidissem por si próprios.

Qual foi o raciocínio que prevaleceu no caso Roe contra Wade? Não foi atribuído qualquer peso legal ao que acontece às crianças depois de terem nascido ou à família. O que o tribunal deliberou foi que as garantias constitucionais de privacidade protegem o direito da mulher à liberdade de reprodução. Mas esse direito não é irrestrito. Há que ponderar a garantia de privacidade da mulher com o direito do feto à vida — e, quando o tribunal fez essa ponderação, deu prioridade à privacidade no 1.º trimestre e à vida no terceiro. A transição não foi decidida com base em nenhum dos considerandos que estamos a analisar no presente capítulo — nem quando se dá a "entrada da alma", nem quando o feto assume características humanas suficientes para ser protegido pelas leis contra o homicídio. Foi outro o critério: saber se o feto podia ou não viver fora da mãe. Chama-se a isto viabilidade e depende em parte da capacidade de respirar. Pura e simplesmente, os pulmões ainda não estão formados e o feto não consegue respirar — mesmo que o metam no mais sofisticado pulmão artificial — antes da 24ª semana, aproximadamente, portanto, no início do sexto mês. Por isso é que o acórdão de Roe contra Wade permite que os estados proíbam abortos no 3.º trimestre. É um critério muito pragmático.

O argumento é o seguinte: no caso de o feto, em determinada fase da gestação, ser viável fora do útero, então o direito do feto à vida sobrepõe-se ao direito da mulher à privacidade. Mas o que significa exactamente "viável"? Nem um recém-nascido de fim de termo é viável sem uma grande quantidade de cuidados. No tempo em que não havia, há escassas décadas, os nascidos de sete meses eram, em princípio, inviáveis. Nessa altura teria sido permissível o aborto ao sétimo mês? Com a invenção das incubadoras, tornaram-se de repente imorais as interrupções voluntárias das gravidezes de sete meses? O que acontecerá se no futuro se desenvolver uma nova tecnologia que permita a um útero artificial sustentar um feto mesmo antes do sexto mês, ministrando-lhe oxigénio c nutrientes através do sangue — tal como a mãe faz através da placenta e do sistema de circulação sanguínea do feto? Admitimos que não é provável que essa tecnologia seja desenvolvida tão cedo nem tão cedo seja posta à disposição de muita gente. Mas, se estivesse, passava a ser imoral abortar antes do sexto mês quando antes era moral? É frágil uma moralidade que depende da tecnologia e com ela muda; há quem a considere, além de frágil, inaceitável.

E por que razão, exactamente, deve a respiração (ou a função renal, ou a resistência à doença) justificar protecção legal? Se um feto demonstra que pensa e sente, mas não consegue respirar, será legítimo matá-lo? Damos mais valor à capacidade de respirar do que à de pensar e sentir? Os argumentos de viabilidade não podem, a nosso ver, determinar com coerência quando é que é permissível abortar. É preciso outro critério. Mais uma vez pomos à consideração a proposta de que esse critério seja o do primeiro sinal de pensamento humano.

Dado que, em média, a actividade cerebral fetal ocorre ainda mais tarde do que o desenvolvimento pulmonar, o acórdão do caso Roe contra Wade é, em nossa opinião, uma decisão boa e prudente para uma questão complexa e difícil. Com a proibição de abortar no último trimestre — excepto em casos de grave necessidade médica — define um equilíbrio justo entre as reivindicações de liberdade e vida em conflito.

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Herf
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Re: Aborto e sua ética

Mensagem por Herf »

Textos muito bons.

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Joe
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Re: Aborto e sua ética

Mensagem por Joe »

Aborto, argumentação e política
Desidério Murcho

Aproxima-se mais um refendo sobre o aborto e a discussão pública começa já a surgir nos jornais e na Internet. Nesta, como noutras discussões públicas, dá-se um fenómeno social curioso que importa esclarecer: muitos dos que intervêm no debate fazem-no com argumentos que carecem de informação básica e que são epistemicamente circulares.

Os argumentos carecem de informação básica quando as pessoas se recusam a estudar a bibliografia relevante. É um pouco como discutir a química dos vulcões sem nada saber de química nem de vulcões. Este tipo de fenómeno acontece muitas vezes no que respeita a matérias filosóficas. Porque muitas pessoas foram vítimas de um ensino depauperado e enganador da filosofia, que faz pensar que esta não passa de cultura geral e opiniões avulsas algo arbitrárias e puramente pessoais, pensam que podem falar de temas filosóficos sem qualquer conhecimento das matérias relevantes. A mesma atitude não seria aceitável no caso da química, da musicologia ou da arquitectura. Claro que os temas de importância pública devem ser discutidos publicamente por pessoas que não são profissionais das áreas em causa, mas fazê-lo desprezando os profissionais relevantes e a informação que estes disponibilizam não é aceitável.

Um argumento é epistemicamente circular quando as suas premissas não são mais plausíveis do que a sua conclusão. O caso mais óbvio e universal de um argumento epistemicamente circular é um argumento directamente circular, como "Deus existe porque existe". Geralmente, os argumentos circulares não são directa e obviamente circulares; são epistemicamente circulares porque usam premissas, ou seja, pontos de partida, que só são aceitáveis para quem aceita a conclusão; quem não aceita a conclusão também não aceita as premissas e portanto tais argumentos são inócuos. Para que um argumento seja bom, tem de reunir três condições: tem de ser válido, ter premissas verdadeiras e ter premissas mais plausíveis do que a conclusão. Quando falha a terceira condição, o argumento é mau. Vejamos um exemplo simples: "A vida é sagrada; logo, o aborto não é permissível". Este argumento é um entimema, que não explicita a seguinte premissa: "Se a vida é sagrada, o aborto não é permissível". O problema deste argumento é que a premissa de que a vida é sagrada não é mais plausível do que a conclusão. Aliás, é muitíssimo provável que quem recuse a conclusão recuse igualmente essa premissa. Por exemplo, um ateu acha que a vida não é sagrada, porque acha que o conceito de sagrado é pura mitologia: não há "água benta", há apenas água sobre a qual um padre executou um ritual declarando depois que tal substância adquiriu uma propriedade imaginária. Analogamente, o ateu defende que a vida não é literalmente sagrada, porque o sagrado é uma propriedade imaginária. Claro que o ateu pode considerar que a vida é sagrada num sentido não literal do termo — no sentido em que a vida deve ser preservada. Mas nem mesmo isto pode ser defendido coerentemente, pois ninguém defende que a vida das pulgas deve ser preservada. Vítimas de um antropocentrismo infeliz, as pessoas que defendem que a vida é metaforicamente sagrada — isto é, merecedora de respeito e protecção — têm em vista unicamente a vida humana. Muitas dessas pessoas não se preocupam com a vida das vacas e dos porcos que consomem todos os dias ao jantar, quanto mais das pulgas.

Para ser bom, um argumento tem de ter premissas mais plausíveis do que a conclusão — mas mais plausíveis para quem? A plausibilidade é uma medida do que as pessoas pensam que é mais ou menos verosímil. Em muitos casos, as pessoas concordam no que respeita à plausibilidade — todas as pessoas aceitarão que é mais plausível que Bush venha a morrer de ataque de coração do que vítima de um ataque de extraterrestres. Mas noutros casos as pessoas discordam quanto ao que é mais plausível. Uma pessoa religiosa poderá defender que a vida é literalmente sagrada, encarando isso como mais plausível do que a existência de extraterrestres, por exemplo. Um ateu defenderá exactamente o contrário: que a existência de extraterrestres é mais plausível do que a existência do sagrado. Assim, quando dizemos que um argumento bom tem de ter premissas mais plausíveis do que a conclusão, temos de perguntar imediatamente "Mais plausíveis para quem?". A resposta óbvia é que as premissas têm de ser mais plausíveis do que a conclusão para o auditório, para o destinatário do argumento — e não para o emissor, para quem apresenta o argumento. É por isso que o argumento contra o aborto baseado no carácter sagrado da vida, ou nos ensinamentos da Igreja, ou na opinião do Papa são maus argumentos: ainda que as premissas de tais argumentos sejam muitíssimo plausíveis para quem os apresenta, não são plausíveis para os destinatários dos argumentos. E os destinatários são, com certeza, as pessoas que defendem que o aborto é permissível. Ou não?

É neste ponto que se torna evidente o fenómeno social mais curioso do debate sobre o aborto. Como em muitos outros debates públicos, o objectivo não é realmente persuadir as pessoas de que a posição mais defensável é a nossa. Se o objectivo fosse esse, os argumentos das feministas e dos cristãos, para dar apenas dois exemplos, seriam sinal de carências cognitivas gritantes, pois os argumentos usados por estas pessoas são geralmente concebidos para serem inócuos para quem não aceita os seus pontos de partida — a sua atitude religiosa perante a vida, num caso, ou a sua atitude libertária com respeito à condição feminina, no outro. O que se passa é que as pessoas usam o debate sobre o aborto para "contar armas". O objectivo da feminista não é persuadir o religioso, por exemplo, a mudar de ideias; o objectivo é exaltar quem já aceita os pressupostos feministas, de modo a arregimentar partidários contra o religioso, exibindo-os publicamente para mostrar a força do movimento. O mesmo se pode dizer do religioso que argumenta contra a permissibilidade do aborto com base no carácter sagrado da vida: tudo o que ele quer realmente é apresentar números impressionantes de apoiantes que partilham a sua fé, contra as bestas dos ateus e das feministas. Em ambos os casos, trata-se de usar um tema de interesse público para acordar do sono complacente aquelas pessoas que no fundo já concordam connosco mas não se manifestam publicamente. É por isso que se usam argumentos que são obviamente inócuos para quem discorda de nós — o objectivo não é persuadir essas pessoas, mas sim esmagá-las com o número de apoiantes da nossa causa que conseguimos acordar e tornar activos. Curiosamente, esta estratégia de usar o problema do aborto para "contar armas" falhou completamente aquando do último referendo. Pois a taxa de abstenção foi tal que se tornou evidente que a maior parte da população não achou necessário juntar-se a qualquer das facções que tão diligentemente procuravam acordar os seus correligionários.

Usar um debate público para "contar armas" sugere que quem o faz não acredita pura e simplesmente na argumentação. Isto é, não acredita que seja possível chegar a resultados relativamente consensuais usando argumentos com premissas universais, ou tão universais quanto possível, que todas as pessoas possam aceitar. É por isso que tal pessoa não tenta sequer persuadir directamente quem não concorda com ela; ao invés, procura mostrar-lhe indirectamente que, se é feminista, ou católico, ou de direita, ou de esquerda, ou jovem, ou mulher, etc., então tem de votar num certo sentido e não noutro. Mas será verdade que não é possível encontrar argumentos que usem premissas universais, ou tão universais quanto possível? Não é este o lugar para responder a esta pergunta. Contudo, temos de ter plena consciência de que quem lhe responde negativamente não aceita realmente os princípios fundamentais de uma sociedade democrática e livre. Imaginemos uma pessoa religiosa que quer usar o debate sobre o aborto para "contar armas". Essa pessoa não acredita apenas que não é possível persuadir os ateus da imoralidade do aborto. Se essa pessoa acreditasse apenas nisso, teria de dizer algo como "as pessoas religiosas como eu não farão tal coisa, mas é óbvio que quem não é religioso não terá problemas em fazê-lo — tal como é óbvio que quem não é religioso não vai à igreja benzer-se com água benta". Ou seja, o religioso que acreditasse apenas que a questão do aborto é insusceptível de debate racional que use premissas universais teria de acreditar concomitantemente que cada qual faria ou não abortos em função da sua posição pessoal sobre o assunto. Se o religioso quer impedir legalmente o aborto apesar de achar que não há razões públicas a favor de tal medida, então é antidemocrático: esse religioso quer eliminar os ateus da sociedade, ou impedi-los de viver a vida à sua maneira. É um pouco como querer impedir-me de ler um determinado romance por considerar que é blasfemo — apesar de eu ser ateu e portanto não aceitar a existência de blasfémias. Esta mentalidade é incompatível com a sociedade democrática e livre em que felizmente vivemos, pois esta sociedade baseia-se na ideia de que há razões públicas que justificam as nossas leis. A democracia livre não é a ditadura da maioria; é o respeito tão alargado quanto possível a diferentes modos de viver, aceitando todos que os únicos limites são os limites impostos pela argumentação universal partindo de premissas que todos podemos aceitar como seres racionais — e não como feministas, cristãos, muçulmanos, conservadores ou revolucionários.

Note-se que não se pode inferir do que acima está exposto que defender que o aborto não é permissível é inadmissível. Segue-se apenas que defender que o aborto não é permissível ou que é permissível recorrendo à "contagem de armas" e à força bruta do número de apoiantes é uma atitude antidemocrática e ditatorial. O voto dos cidadãos não deve reflectir as suas origens, preconceitos, modos de vida, opções religiosas ou ideológicas, mas antes a sua reflexão imparcial, séria e informada sobre o que consideram obrigatório ou permissível, para toda a gente, à luz da razão pública. Qualquer decisão pública sobre a permissibilidade ou não do aborto terá de responder a razões universais, que qualquer cidadão de boa-fé possa aceitar, independentemente das suas opções religiosas, ideológicas ou outras. Procurar impor a toda a população uma medida que só é defensável usando argumentos feministas ou religiosos é um acto antidemocrático, inaceitável numa sociedade livre.

Infelizmente, esta é atitude que impera na nossa jovem democracia — e não apenas em relação ao aborto. Talvez este seja o resultado de um país que só em breves momentos conheceu regimes democráticos e livres: não se acredita na argumentação racional. Enquanto persistir esta descrença, a nossa democracia será frágil e meramente formal. O debate público sobre o aborto — ou melhor, a algazarra irracional sobre o aborto — é preocupante precisamente por isso.

Desidério Murcho

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Joe
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Re: Aborto e sua ética

Mensagem por Joe »

Procedure escreveu:Textos muito bons.


São apenas textos que tenho arquivado aqui, de muitos outros voltado a bioética, ciência. Peguei apenas alguns e postei.

Demonstra totalmente que os argumentos de potencialidade humana e entre tantas outras questões pró-vida são meramentes ruins.

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NadaSei
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Re: Aborto e sua ética

Mensagem por NadaSei »

Joe escreveu:
Procedure escreveu:Textos muito bons.


São apenas textos que tenho arquivado aqui, de muitos outros voltado a bioética, ciência. Peguei apenas alguns e postei.

Demonstra totalmente que os argumentos de potencialidade humana e entre tantas outras questões pró-vida são meramentes ruins.


Não li os outros ainda, apenas o primeiro, então falo sobre ele.

O texto no geral é bem, toca adequadamente em pontos muito pertinentes, mas erra em outros.
A analogia com a prostituta é inadequada, apesar de ser um "pecado" pequeno, não está de acordo com a questão do aborto.
O corpo ser unicamente da mulher, dá sim a ela o direito de se prostituir, o mesmo argumento já não vale para o aborto.
Eu entendi o contexto em que ele usou o argumento, mas não foi muito racional, foi apenas uma "chacota" ou tentativa de "desbancar" feministas moralmente contrarias a prostituição que usam esse argumento, o que estava totalmente sem ligação com a questão do aborto em si.

O segundo erro foi ao atacar o principio da cautela, ele o atacou adequadamente ao falar sobre questões que não estão empatadas, mas o fez a priori dizendo que a questão do aborto não esta empatada. Atacou como sendo certo que os argumentos pró-aborto são vencedores.

Também peca aqui na questão da potencialidade humana e em sua visão de potencialidade forte e fraca, quando compara o zigoto a alguém em coma, e com o presidente como comandante das forças armadas.
Ele apenas afirma que o direito a vida é dado a consciência, mas não discute a questão, e, esse é o ponto chave.
A discussão agora teria que girar em torno da consciência como fonte do direito a vida, deveria argumentar sobre ausência de consciência, justificar o direito de impedir um ser de tornar-se consciente momentos antes disso ocorrer (e o quanto antes isso é permitido e porque), etc...
Uma vez que o ceticismo adequadamente se refere à dúvida ao invés da negação - descrédito ao invés de crença - críticos que assumem uma posição negativa ao invés de uma posição agnóstica ou neutra, mas ainda assim se auto-intitulam "céticos" são, na verdade, "pseudo-céticos".

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Joe
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Re: Aborto e sua ética

Mensagem por Joe »

NadaSei escreveu:
Joe escreveu:
Procedure escreveu:Textos muito bons.


São apenas textos que tenho arquivado aqui, de muitos outros voltado a bioética, ciência. Peguei apenas alguns e postei.

Demonstra totalmente que os argumentos de potencialidade humana e entre tantas outras questões pró-vida são meramentes ruins.




Também peca aqui na questão da potencialidade humana e em sua visão de potencialidade forte e fraca, quando compara o zigoto a alguém em coma, e com o presidente como comandante das forças armadas.
Ele apenas afirma que o direito a vida é dado a consciência, mas não discute a questão, e, esse é o ponto chave.
A discussão agora teria que girar em torno da consciência como fonte do direito a vida, deveria argumentar sobre ausência de consciência, justificar o direito de impedir um ser de tornar-se consciente momentos antes disso ocorrer (e o quanto antes isso é permitido e porque), etc...


Se você leu até o final, ele se refere que as opiniões dele são baseadas no livro A Ética do Aborto, de Pedro Galvão aonde estão reunidos algumas teses de algumas pessoas em favor ao pró-escolha e o pró-vida.

Vale ressaltar que o zigoto não é um ser consciente diferente do bebê que (expressado nos outros textos) tem uma consciência, apesar disso entrar em discussões extremamente grandes e cansativas. Toda questão se resume no valor, circunstâncias e não no direito da vida. Se a pessoa é pró-vida, ela deve defender que é pró-vida em todos os casos, justamente explicado sobre a ótica do primeiro texto e dos outros, logo que as circunstâncias exteriores não vão interferir no direito a vida do qual virá a ser um ser humano.

O aborto é permissível por todos os motivos, liberdade de escolha, o zigoto não se caracteriza por ser um ser humano exatamente pela questão da potencialidade. O erro das pessoas pró-vida está em ver a potencialidade de maneira limitada.

O argumento inicial:

Esta objeção não atende ao fato de que, embora tanto o feto como o espermatozóide e o óvulo sejam potencialmente seres humanos adultos, são-no em sentidos diferentes.


Corretamente, depois da análise dele sobre a potencialidade humana:

A maior parte das pessoas que são contra o aborto referem-se (presumivelmente) apenas à potencialidade forte, não à potencialidade fraca.


Na sua maioria, quem é contra o aborto se refere ao zigoto o argumento de potencialidade forte e isso não é cabível, o zigoto tem potencialidade fraca e é um ''ser'' não-consciente, assim é concebível abortar, por o zigoto não assumir características suficientes de um feto por ter potencialidade fraca e não-consciência.

É de fato a se abordar aqui que o assunto está direcionado a gravidez sem planejamento, ou seja, quando acontece por uma falha, tanto seja por falha dos anti-concepcionais ou por a camisinha estourar ou por imprudência de ambas as partes. Alguns discussos se baseiam em aguentar as consequências do ato feito e seguir em frente assumindo o que fez. E sabemos que isso é uma espécie de ''dogma fragmentado''.

O que me permite discutir assim o controle da natalidade, índice de violência e a taxa de aborto feita nos períodos de gravidez, logo que alguns tipos de pró-escolha ''argumentam sobre a permissividade geral do aborto e que consideram matar deliberadamente o feto numa fase avançada de gravidez'' (Pedro Galvão, Ética do Aborto, Introdução, pg.2), levando em conta essa afirmação a maioria dos abortos feito nos Estados Unidos, a taxa de aborto acontece nas primeiras nove semanas.



O mais interessante:

• Forty-three percent of women obtaining abortions identify themselves as Protestant, and 27% as Catholic.[3]


Entre tantos outros fatos que o aborto é permissível.

Há de se concordar entre todos, mesmo sendo pró-vida ou escolha, que o melhor há ser feito é a política de planejamento familiar e dessa há carências em ênfase em toda a região pobre do Brasil e do mundo.
Editado pela última vez por Joe em 09 Mar 2008, 14:29, em um total de 1 vez.

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Anna
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Re: Aborto e sua ética

Mensagem por Anna »

Caramba! Tem zil tópicos sobre aborto no fórum!!!!! :emoticon28:
Vcs estão obssecados!!!!!!! :emoticon39: :emoticon16:

Os textos que você postou são muito bens Joe, até porque que quebram e demostram bem que esse assunto, assim como outros, estão no ambito científico e ético-moral, bioético.
A pouco tempo a ética pode ter sido preocupação quase que exclusiva de filófofos e teólogos, sendo olhada com desinteresse até mesmo por muitos deles, os filósofos de orientação científica e analítica, ou pelos cientistas-filósofos. Esses se desinteressavam pelos problemas morais, por considerar que não eram abordáveis com as ferramentas da lógica e da ciência.
Porém, isso começou a mudar com os efeitos da ciência do partido, bomba atômica, etc, assim, diversas revistas científicas passaram a se ocupar com questões morais e passaram insistir com a colaboração com órgãos governamentais. A confluência entre a experiência, razão e investigação empírica e metodológica é um fenômeno contemporâneo, e parece não ser percebido pelos eticistas clássicos. Esse movimento contemporâneo é inevitável, e está além das vontades e da retórica classista, pois está modificando gradualmente a atitude expoente em relação a diversos temas clássicos, de acordo com a evolução da própria ciência e do pensamento humano.
Cérebro é uma coisa maravilhosa. Todos deveriam ter um.

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Joe
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Re: Aborto e sua ética

Mensagem por Joe »

Anna escreveu:Caramba! Tem zil tópicos sobre aborto no fórum!!!!! :emoticon28:
Vcs estão obssecados!!!!!!! :emoticon39: :emoticon16:

Os textos que você postou são muito bens Joe, até porque que quebram e demostram bem que esse assunto, assim como outros, estão no ambito científico e ético-moral, bioético.
A pouco tempo a ética pode ter sido preocupação quase que exclusiva de filófofos e teólogos, sendo olhada com desinteresse até mesmo por muitos deles, os filósofos de orientação científica e analítica, ou pelos cientistas-filósofos. Esses se desinteressavam pelos problemas morais, por considerar que não eram abordáveis com as ferramentas da lógica e da ciência.
Porém, isso começou a mudar com os efeitos da ciência do partido, bomba atômica, etc, assim, diversas revistas científicas passaram a se ocupar com questões morais e passaram insistir com a colaboração com órgãos governamentais. A confluência entre a experiência, razão e investigação empírica e metodológica é um fenômeno contemporâneo, e parece não ser percebido pelos eticistas clássicos. Esse movimento contemporâneo é inevitável, e está além das vontades e da retórica classista, pois está modificando gradualmente a atitude expoente em relação a diversos temas clássicos, de acordo com a evolução da própria ciência e do pensamento humano.


Gratificação enorme minha Anna, de ser correspondido por você.

Não sabe como esse pequeno comentário me ajudou mais a saber sobre a ciência de partido e o desenvolvimento das novas ciências e debates.

Obrigado, Anna.

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Claudio Loredo
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Re: Aborto e sua ética

Mensagem por Claudio Loredo »



Gostei muito deste video do humorista George Carlin onde ele fala sobre o aborto. Vale a pena dar uma olhada. São bons argumentos a favor da legalização do aborto.
A primeira parte da apresentação está no endereço:

http://www.youtube.com/watch?v=opJA5r_9TxQ

Há ainda a segunda parte que pode ser vista neste mesmo endereço.


Trancado