As tendências nos assuntos humanos

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RicardoVitor
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As tendências nos assuntos humanos

Mensagem por RicardoVitor »

As tendências nos assuntos humanos

por Milton e Rose Friedman

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O objetivo desse curto ensaio é apresentar uma hipótese de que uma grande mudança na política social e econômica seja precedida por uma alteração no clima da opinião intelectual. Uma tendência intelectual é espalhada pelo público seguindo o hábito do intelectual varejista: professores e pastores, jornalistas nos jornais e na televisão, especialistas e políticos.

Existem tendências poderosas nos assuntos humanos, interpretadas como a entidade coletiva que chamamos de sociedade, bem como nos assuntos individuais. As tendências nos assuntos da sociedade demoram a se tornar evidentes, como uma maré que começa a inundar a outra. Cada tendência permanece por um longo período – décadas, não horas – uma vez que começa a alagar, e deixa suas marcas em sua sucessora mesmo depois que recua.

Em quase todas as tendências, uma crise pode ser identificada como o catalisador de uma grande mudança na direção das políticas.

A Ascensão do Laissez Faire: A Tendência de Adam Smith

A primeira tendência que examinaremos começa na Escócia do século XVIII, com uma reação ao mercantilismo expresso nos escritos de David Hume, através dos livros A Teoria dos Sentimentos Morais e, principalmente, A Riqueza das Nações (1776), ambos de Adam Smith. No outro lado do Atlântico, o ano de 1776 também viu a proclamação da Declaração de Independência, que era, de várias formas, gêmea política da Ciência Econômica de Smith. O trabalho de Smith rapidamente se tornou comum entre os fundadores dos Estados Unidos. No início do século XIX as idéias de laissez-faire, da operação da mão invisível, da indesejabilidade da intervenção governamental nas questões econômicas, haviam sido arrastadas, primeiramente para o mundo intelectual, para chegarem a seguir às políticas públicas.

A revogação das mercantilistas Leis do Trigo (Corn Laws), em 1846, é, em geral, considerada o triunfo final de Adam Smith, com um atraso de 70 anos. Na verdade, algumas reduções nas tarifas alfandegárias começaram bem antes e muitos itens não agrícolas continuaram a ser protegidos por tarifas até 1874. Assim, levou-se quase um século até o término de uma resposta a Adam Smith.

A Experiência Americana

Os outros países da Europa e os Estados Unidos não seguiram a liderança britânica em estabelecer um mercado completamente livre. Entretanto, durante a maior parte do século XIX, os impostos sobre a importação eram, em primeiro lugar, para geração de receita (não para proteção). Exceto por alguns anos após a guerra de 1812, a alfândega provia a metade ou mais da metade da receita federal. Foi assim até a Guerra Hispano-Americana no fim do século. Barreiras não-tarifárias, como cotas, não existiam e o movimento de capital e pessoas estava longe de ser impedido.

Medir o papel do governo em uma economia não é fácil. Uma forma disponível, embora reconhecidamente imperfeita, é a proporção do gasto governamental em relação à renda nacional. No auge do laissez-faire, o gasto governamental em tempos de paz correspondia a menos de 10 por centro do PIB nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. O gasto federal era, em geral, menor que 3 por cento, com metade indo para os militares.

Em uma escala maior, a tendência que invadiu o século XIX trouxe uma liberdade econômica e política ainda maior. Apesar de ocasionais crises e pânicos financeiros, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos experimentaram um crescimento econômico memorável. Os Estados Unidos, em particular, se tornaram a Meca para os pobres de todos os países. Isso foi um resultado da adoção crescente do laissez-faire como um princípio guia da política governamental.

A Ascensão do Estado do Bem-Estar Social

Esse progresso incrível não evitou que a maré intelectual refluísse do individualismo em direção ao coletivismo. Como podemos explicar essa mudança na tendência intelectual, quando as dores do crescimento das políticas do laissez-faire já haviam sido vencidas há tempos e ganhos positivos impressionantes haviam sido atingidos?

Dois efeitos do sucesso do laissez-faire encorajaram uma reação:
• Em primeiro lugar, o sucesso fez problemas residuais aparecerem com mais destaque, encorajando reformadores a pressionar por soluções governamentais e fazendo o público simpatizar com seus apelos.

• Em segundo lugar, parecia mais razoável prever que o governo seria eficiente ao atacar esses problemas. Um governo severamente limitado pode fazer menos favores. Assim, há pouco incentivo para a corrupção de funcionários públicos e o serviço público oferece poucos atrativos àqueles que visam o enriquecimento pessoal.

O governo se engajava, primeiramente, em aplicar as leis contra assassinato, roubos e afins, e em prover serviços municipais, como uma polícia local e o serviço de proteção contra o fogo – atividades que engendravam um apoio quase unânime dos cidadãos. A Grã-Bretanha foi ainda mais longe em direção ao completo laissez-faire, se tornando lendária no fim do século XIX e no início do século XX por seu funcionalismo público incorruptível e seus cidadãos cumpridores da lei – precisamente o oposto de sua reputação um século antes.

Porém, em torno de 1900, a doutrina do laissez-faire tinha, de certa forma, perdido sua influência sobre o povo inglês. Nos Estados Unidos, o desenvolvimento foi similar, embora atrasado. Em 1929, os gastos federais totalizavam apenas 3.2 por cento do PIB; metade disso era gasto com os militares, mais os juros do défice público. Os gastos dos governos federal, estadual e local no que hoje é conhecido como renda mínima, previdência e assistência social somavam menos de 1 por cento da renda nacional.

O mundo das idéias, entretanto, era diferente. Em 1929, o socialismo se tornou a ideologia dominante nos campi do país. New Republic e The Nation eram as revistas preferidas dos intelectuais e [o socialista] Norman Thomas era seu herói político. Claro que o grande catalisador dessa grande mudança foi a Grande Depressão, que demoliu a confiança nos empreendimentos privados por parte da população, que passou a considerar o envolvimento governamental como sendo o único recurso eficiente em tempos de crise e a tratar o governo como um potencial benfeitor, ao invés de simplesmente um policial ou um juiz.

A Ressurreição do Livre Mercado: A Tendência de Hayek

Durante o predomínio da idéias socialistas houve, claro, contracorrentes – mantidas vivas por Friedrich Hayek e alguns de seus colegas na Grã-Bretanha; por Ludwig Von Mises e seus discípulos na Áustria; e por Albert Jay Nock, H. L. Mencken, e outros nos Estados Unidos.

Provavelmente, O Caminho da Servidão, de Hayek, em 1944, foi a primeira invasão sobre a visão intelectual dominante. Ainda assim, no início, o impacto do livre mercado sobre a tendência dominante na opinião intelectual foi pequeno. Mesmo para aqueles que, como nós, estavam promovendo ativamente o livre mercado nos anos 1950 e 1960, é difícil lembrar o quanto o clima intelectual daquele tempo estava forte e penetrante.

A história de dois livros escritos por nós, ambos direcionados para o público comum e promovendo as mesmas políticas, mostra uma evidência impressionante na mudança no clima das opiniões. O primeiro, Capitalismo e Liberdade, publicado em 1962, e que venderia mais de 400.000 exemplares nos dezoito anos seguintes, não recebeu resenha em nenhum periódico popular americano da época. O segundo, Free to Choose [Livre para Escolher], publicado em 1980, foi resenhado por todas as grandes publicações e se tornou o livro de não-ficção mais vendido dos Estados Unidos, atraindo atenção mundial.

Maiores evidências das mudanças no clima intelectual são percebidas pela proliferação de Think Tanks que promovem as idéias de governos limitados e confiança no livre mercado.

Traduzindo Idéias em Ações

O mesmo contraste é verdadeiro em relação às publicações. A The Freeman, da FEE, é a única que consigo me lembrar, que promova as idéias da liberdade há 30 ou 40 anos. Hoje, várias publicações promovem essas idéias, embora com grandes diferenças em áreas específicas: The Freeman, National Review, Human Events, The American Spectator, Policy Review e Reason. Mesmo The Nation e New Republic não são mais os constantes proponentes da ortodoxia socialista que eram há três décadas.

Por que houve essa grande mudança na postura do público? A força persuasiva de livros como O Caminho da Servidão, de Hayek, A Nascente e Quem é John Galt?, de Ayn Rand e o nosso Capitalismo e Liberdade, entre vários outros levaram as pessoas a pensar sobre o mesmo problema de uma forma diferente e a se tornarem conscientes de que o fracasso governamental era real.

A experiência transformou em cinzas as grandes esperanças que os coletivistas e socialistas depositaram na Rússia e na China. Na verdade, a única esperança desses países vem de seus movimentos recentes em direção ao livre mercado. Da mesma forma, a experiência, digamos, enfraqueceu as esperanças extravagantes colocadas no socialismo fabiano e no Estado do Bem-Estar Social na Grã-Bretanha e no New Deal, nos Estados Unidos. Um grande projeto governamental após o outro, todos iniciados com as melhores intenções, resultaram em mais problemas que soluções.

Poucos, hoje em dia, consideram que a estatização de empreendimentos é um meio de se promover uma produção mais eficiente. Poucos ainda acreditam que todo problema social pode ser solucionado pelo aporte de dinheiro do governo (ou seja, dos contribuintes). Nessas áreas, as idéias liberais – no sentido original da palavra “liberal”, do século XIX – venceu a guerra. O crescente fardo da tributação levou a população em geral a reagir contra o crescimento do governo e de sua ampla influência.

As idéias desempenharam um papel fundamental, como nos episódios anteriores, por manterem as opções abertas e por fornecerem políticas alternativas a serem adotadas quando há necessidade de mudanças.

Como nas duas ondas anteriores, a prática deixou as idéias para trás. Assim, tanto a Grã-Bretanha quanto os Estados Unidos estão mais longe do ideal de uma sociedade livre do que estavam há 30 ou 40 anos, em quase todas as dimensões. Em 1950, o gasto pelos governos federal, estadual e municipal, nos Estados Unidos era de 25 por cento da renda nacional; em 1985, era 44 por cento. Nos últimos 30 anos várias agências governamentais foram criadas: um Departamento de Educação, um Fundo Nacional para as Artes e outro para as humanidades, EPA, OSHA, e daí por diante. Funcionários públicos, nessas e em outras agências decidem por nós qual são os nossos interesses.

Tanto nos Estados Unidos, quanto na Grã-Bretanha, o respeito à lei declinou no século XX, sob o impacto do aumento da esfera de ação do governo, fortemente reforçada nos Estados Unidos através da Lei Seca. O aumento da variedade de favores que os governos poderiam fazer, leva a um firme aumento daquilo que os economistas chamam de rent-seeking e o público chama de lobby de interesses especiais. A Grã-Bretanha foi ainda mais longe em direção ao coletivismo do que foram os Estados Unidos, e ainda permanece mais coletivista – com uma alta taxa de gastos governamentais em relação à renda nacional e uma estatização da indústria muito mais extensa.

Apesar de tudo, a prática começou a mudar. Acreditamos que a crise catalítica que ativou a mudança foi a onda mundial de inflação durante os anos 1970, originada pelo crescimento monetário excessivamente amplo nos Estados Unidos dos anos 1960.

O episódio foi catalítico em dois respeitos:

• Primeiro, a estagflação destruiu a credibilidade da política monetária e fiscal keynesiana e, a partir daí, a capacidade governamental de ajustar a economia;
• E segundo, trouxe para a disputa o “peso da tributação”, através da indexação dos reajustes dos impostos aos aumentos de salários em conseqüência da inflação e o repúdio implícito à dívida governamental.

Já nos anos 1970, o serviço militar obrigatório havia sido encerrado, as linhas aéreas foram desregulamentadas e a regulação Q, que limitou as taxas de juros que os bancos podiam pagar sobre os depósitos, eliminada. Em 1982, o Conselho de Aeronáutica Civil, que regulava as linhas aéreas, foi extinto.

Como nas ondas anteriores, as tendências de opinião e prática tinham varrido o mundo. O contraste entre a estagnação daqueles países mais pobres, que se engajaram no planejamento central (Índia, as ex-colônias africanas, países da América Central) e o rápido progresso dos poucos que seguiram uma política de livre mercado (notadamente os quatro Tigres Asiáticos: Hong Kong, Singapura, Taiwan e Coréia do Sul) reafirmaram, com vigor, a experiência dos países ocidentais desenvolvidos.

No fim das contas, a força das idéias, empurrada pela pressão dos acontecimentos, claramente não respeita a geografia, a ideologia ou o nome dos partidos.

Conclusão

Dois novos pares de marés estão subindo nesse momento na opinião pública, uma em direção à confiança renovada nos mercados, e outra em direção a um governo mais limitado. Se as marés já completas servirem como referência, a atual onda na opinião está se aproximando da meia idade e nas políticas públicas está em sua infância. Assim, ambas estão, ainda, subindo e o estado de inundação, certamente nos negócios, ainda está por vir.

Para aqueles que acreditam em uma sociedade e em uma atividade governamental estritamente limitada, essa é uma razão para otimismo, mas não uma razão para complacência. Nada é inevitável sobre o curso da história – por mais que, em retrospecto, isso possa parecer. Porque vivemos em uma sociedade amplamente livre, tendemos a esquecer quão limitados são os período de tempo e as partes do globo em que já houve algo parecido com liberdade política. O estado comum para a humanidade é a tirania, a servidão e a miséria.

Uma vez que uma tendência de opiniões ou de negócios está fortemente estabelecida, ela tende a subjugar contracorrentes e permanecer por muito tempo rumo à mesma direção. As tendências são capazes de ignorar geografias, rótulos políticos e outros obstáculos à sua continuidade.

Apesar disso, também é válido lembrar que seu sucesso tende a criar condições que podem, no fim das contas, revertê-las. A maré encorajadora nas questões que estão na infância também pode ser subjugada por uma maré renovada de coletivismo. O papel expandido do governo, mesmo nas sociedades ocidentais que se orgulham de serem parte do mundo livre, criou muitos grupos de interesse, que resistirão ferozmente à perda dos privilégios que passaram a considerar seus direitos.

http://www.ordemlivre.org/?q=node/125
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Trancado