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Como ler a bíblia. By O. de C., o filósofo.

Enviado: 06 Abr 2008, 18:21
por Márcio
Como ler a Bíblia

Olavo de Carvalho
Jornal do Brasil, 17 de janeiro de 2008



Quando você lê um romance ou peça de teatro, não tem como julgar a verossimilhança das situações e dos caracteres se antes não deixar que a trama o impressione e seja revivida interiormente como um sonho. Ficção é isso: um sonho acordado dirigido. Como os personagens não existem fisicamente (mesmo que porventura tenham existido historicamente no passado), você só pode encontrá-los na sua própria alma, como símbolos de possibilidades humanas que estão em você como estão em todo mundo, mas que eles encarnam de maneira mais límpida e exemplar, separada das contingências que podem tornar obscura a experiência de todos os dias. A leitura de ficção é um exercício de autoconhecimento antes de poder ser análise literária, atividade escolar ou mesmo diversão: não é divertido acompanhar uma história opaca, cujos lances não evocam as emoções correspondentes.

A mesma exigência vigora para os livros de História, com o atenuante de que em geral o historiador já processou intelectualmente os dados e nos fornece um princípio de compreensão em vez da trama bruta dos acontecimentos. Se você não apreende os atos dos personagens históricos como símbolos investidos de verossimilhança psicológica, não tem a menor condição de avaliar em seguida se são historicamente verdadeiros ou não. Um livro de História tem de ser lido primeiro como ficção, só depois como realidade.

O problema é que nem sempre as possibilidades que dormem no fundo da nossa alma nos são conhecidas -- e então não podemos reconhecê-las quando aparecem na ficção ou na História. O resultado é que a narrativa se torna opaca. Pior ainda, você pode se deixar enganar por falsas semelhanças, reduzindo os símbolos da narrativa a sinais convencionais das possibilidades já conhecidas, senão a estereótipos banais da atualidade. O reconhecimento interior não é só um exercício de memória, mas um esforço sério para ampliar a imaginação de modo que ela possa abarcar mesmo as possibilidades mais extremas e inusitadas. Você não pode fazer isso se não se dispõe a descobrir na sua alma monstros, heróis e santos que jamais suspeitaria encontrar lá.

Compreensivelmente, os monstros são mais fáceis de descobrir do que os heróis e santos. O medo, o nojo, a raiva e o desprezo são emoções corriqueiras, e eles bastam para tornar verossímil o que quer que nos pareça ser pior do que nós mesmos. Já aquilo que é nobre e elevado só transparece a quem o ama, e esse amor traz imediatamente consigo um sentimento de dever, de obrigação, como no célebre soneto de Rilke em que a perfeição de uma estátua de Apolo transcende a mera contemplação estética e convoca o observador a mudar de vida, a tornar-se melhor. A impressão humilhante de não estar à altura desse apelo produz quase automaticamente uma reação negativa -- o despeito. Negando a existência do melhor, reduzindo-o ao banal ou fazendo dele uma camuflagem enganosa do feio e do desprezível, a alma encontra um alívio momentâneo para o seu orgulho ferido, restaurando uma auto-imagem tranqüilizante à custa de encurtar miseravelmente a medida máxima das possibilidades humanas.

Se esse problema existe em qualquer livro de ficção ou de História, imaginem na Bíblia, onde o personagem central é o próprio Deus. Abrir-se ao chamado da perfeição divina é trabalho para uma vida inteira e mais uns dias, e vem entremeado de inumeráveis derrotas e humilhações -- mas sem isso você não compreenderá uma só palavra da Bíblia. Cem por cento do ateísmo militante consistem em despeito e incapacidade de leitura séria.


http://www.olavodecarvalho.org/semana/080117jb.html

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Re: Como ler a bíblia. By O. de C., o filósofo.

Enviado: 06 Abr 2008, 18:36
por Dick
Cem por cento da crendice religiosa militante reside na incapacidade para se discernir o lógico da encadeação pretensiosa de idéias. Lamentável para quem se diz um conhecedor de Aristóteles.

Re: Como ler a bíblia. By O. de C., o filósofo.

Enviado: 06 Abr 2008, 19:02
por Dick
Ia me esquecendo... percebam que esta argumentação toda precisa, por princípio, que a Bíblia seja realmente A palavra. Assim, todo o resto se desfaz. Nenhum estratagema novo em relação à literatura crentóide (ah, desculpem-me, Loredo e moderação. Não dá para evitar!).

Re: Como ler a bíblia. By O. de C., o filósofo.

Enviado: 06 Abr 2008, 22:20
por waldon
Ele fala bem da Bíblia, mas também fala bem da astrologia, mas a bíblia condena a astrologia.

Re: Como ler a bíblia. By O. de C., o filósofo.

Enviado: 07 Abr 2008, 18:36
por Lúcifer
CITAÇÃO:
Cem por cento do ateísmo militante consistem em despeito e incapacidade de leitura séria.

Desculpem a minha inhorância, mas desde quando a biblia é uma leitura séria??
Esse cara tá zoando, né??

Re: Como ler a bíblia. By O. de C., o filósofo.

Enviado: 08 Abr 2008, 14:49
por Orbe
Márcio escreveu:Como ler a Bíblia


Parei aqui.

Re: Como ler a bíblia. By O. de C., o filósofo.

Enviado: 11 Abr 2008, 00:03
por Fenrir
Márcio escreveu:...
Compreensivelmente, os monstros são mais fáceis de descobrir do que os heróis e santos. O medo, o nojo, a raiva e o desprezo são emoções corriqueiras, e eles bastam para tornar verossímil o que quer que nos pareça ser pior do que nós mesmos. Já aquilo que é nobre e elevado só transparece a quem o ama, e esse amor traz imediatamente consigo um sentimento de dever, de obrigação, como no célebre soneto de Rilke em que a perfeição de uma estátua de Apolo transcende a mera contemplação estética e convoca o observador a mudar de vida, a tornar-se melhor. A impressão humilhante de não estar à altura desse apelo produz quase automaticamente uma reação negativa -- o despeito. Negando a existência do melhor, reduzindo-o ao banal ou fazendo dele uma camuflagem enganosa do feio e do desprezível, a alma encontra um alívio momentâneo para o seu orgulho ferido, restaurando uma auto-imagem tranqüilizante à custa de encurtar miseravelmente a medida máxima das possibilidades humanas.


Acho que vou me suicidar. O que resta fazer alguém que nega a existência do melhor e encurta miseravelmente a medida máxima das possibilidades humanas? Oh dia, oh azar!

Usando algumas palavras do Fernando,
continuo a preferir a hipotética punição infinita por uma falta finita (negar a existência do melhor...) que amar por dever e obrigação aquele que dispõe punições infinitas a qualquer falta finita de um despeitado.

Re: Como ler a bíblia. By O. de C., o filósofo.

Enviado: 11 Abr 2008, 00:08
por Fenrir
duplicado