O cristianismo e o socialismo
Enviado: 21 Abr 2008, 14:00
O cristianismo e o socialismo
Por Lindoberto Pereira da Silva
O Papa Bento XVI elogiou Karl Marx em trecho do livro "Jesus de Nazaré", apresentado no último dia 13 e colocado à venda no dia 16 de abril, quando Ratzinger completou 80 anos de idade. Ao citar no livro a parábola do bom samaritano como exemplo de amor ao próximo, ele cita também o filósofo alemão - que era ateu e afirmava que a Igreja é "ó ópio do povo" - quando descreve o homem como vítima de exploração e opressão.
Essa afirmação de Ratzinger causou muita polêmica no mundo inteiro, mas não vejo motivo para tanto espanto. Tanto a doutrinação dogmática do marxismo quanto a evangelização dogmática do cristianismo caminham na mesma direção: privilegiar a história dos homens em seu compromisso pela transformação social em função do projeto de uma nova sociedade menos injusta e desigual. Ou seja, marxismo e cristianismo são faces da mesma moeda.
Tomemos como exemplo o clássico "A Utopia", de Tomás Morus (1478-1535), católico fervoroso decapitado sob a égide do rei Henrique VIII e canonizado pela Igreja Católica em 1935. Morus teve a particularidade de ser cultuado tanto pelos cristãos quanto pela Revolução Russa, que lhe erigiu uma estátua em homenagem às idéias socialistas de sua célebre "A Utopia", onde descreve um Estado imaginário sem propriedade privada nem dinheiro. Humanista e jurista, o ex-chanceler do Reino da Inglaterra mostrou nesta obra toda a sua preocupação com a felicidade coletiva e a organização da produção, mas de fundamento religioso. Lançou, assim, as bases do socialismo econômico, ao cunhar a palavra utopia, dando início a um gênero literário que faria fortuna nos séculos seguintes, desde "A Nova Atlântida", de Francis Bacon, e "A Cidade do Sol", de Companella, até os escritos dos socialistas do século XX, chamados utópicos.
Neste momento me vêm à memória também as palavras de Milan Kundera, proferidas através do seu personagem Kostka, do romance "A Brincadeira" (editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1967): "Antes de fevereiro de 1948, meu cristianismo agradava aos comunistas. Eles gostavam muito de me ouvir explicar o conteúdo social do Evangelho, esbravejar contra esse velho mundo carcomido que se demonstrava sob seus bens e suas guerras, e demonstrar a semelhança entre o cristianismo e o comunismo. Para eles, tratava-se de atrair para sua causa o maior número possível de pessoas e, portanto, também aqueles que tinham fé. Mas, depois de fevereiro, tudo começou a mudar. (...) Muitos cristãos, católicos e protestantes, não me perdoavam. Consideravam uma traição eu ter-me solidarizado com um movimento que tinha o ateísmo como bandeira. Por seu turno, vozes comunistas se elevaram para dizer que um homem com condições religiosas tão definidas não podia educar a juventude socialista".
O escritor tcheco, que publicou seu romance na Primavera de Praga, em 1967, sustenta que "as igrejas não compreenderam que o movimento operário era a escala dos humilhados e dos necessitados, famintos de justiça. Elas não se preocupavam em instaurar, com eles e para eles, o Reino de Deus sobre a Terra. Aliaram-se aos opressores, e assim tiraram Deus do movimento operário. E pretendem censurar o movimento por não ter um Deus! Que farisaísmo! E claro que o movimento socialista é ateu, só que eu vejo nisso uma reprovação divina, dirigida a nós! Reprovação pela dureza com que tratamos os miseráveis e os sofredores. É claro que as teses do marxismo têm uma origem profana, mas o alcance que os comunistas de primeira hora lhe atribuíam era comparável ao alcance do Evangelho e dos mandamentos bíblicos", diz Kostka.
Em nossos dias, a religião continua sendo um fator típico da inteligência humana. Mesmo os que se dizem ateus cultivavam o Absoluto sob formas leigas ou secularizadas. É o caso do comunismo, ao qual o judeu Karl Marx deu a estrutura de um messianismo em Deus; o proletariado sacrificado na luta de classes seria o Messias, que, morrendo, prepararia o surto de um homem novo, morigerado e pacífico. As categorias religiosas do judaísmo foram transpostas por Marx para o plano da sociologia e da política; sobrevivem, porém, no esquema do pensamento marxista - o marxismo cultua religiosamente certos valores meramente humanos ou profanos. Este esquema caricatural já não satisfaz a muitos comunistas de hoje e o senso religioso, inato em todo homem, vem de novo à tona apesar das tentativas de erradicação a que o marxismo o submeteu.
Ora, até nos desvios o cristianismo se assemelha ao comunismo. Assim como Stálin mandou fuzilar comunistas fiéis que criticaram seus atos sanguinários, também os cristãos mostraram sua faceta sangrenta em diversos momentos da História, como nas Cruzadas e durante a Inquisição. Ao se dividir em diversas denominações, o cristianismo deixou de olhar para o Evangelho e cada uma das várias igrejas passou a olhar para si própria, para o poder e para o ouro. O stalinismo, ao afastar-se dos princípios básicos do socialismo primitivo, colocou o Estado acima da coletividade. Os valores de justiça, paz, solidariedade, de uma sociedade igualitária deixados por Cristo foram esquecidos tanto pelo cristianismo como pelo comunismo, que deixaram de priorizar o ser humano. Do mesmo modo que a igreja prega que Deus é uno e trino, o Estado deveria reconhecer o homem enquanto indivíduo e coletivo, respeitando-o individual e coletivamente.
Não podemos nos esquecer também da aproximação que a Igreja Católica manteve com a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial, como nos mostra Costa Gavras em seu filme "Amém". "Amém" mostra a indignação de um físico alemão e de um jesuíta francês diante das câmaras de gás utilizadas como instrumento de extermínio em massa dos judeus. Durante a Segunda Guerra Mundial, Pio XII estava à frente da Santa Sé e não levantou a sua voz contra os fanáticos nazistas, mesmo dispondo, na época, da única rádio independente em toda a Europa ocupada. Sua indiferença ficou imortalizada livro "O papa de Hitler", de John Cornwell.
http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/200 ... 393092.asp
Por Lindoberto Pereira da Silva
O Papa Bento XVI elogiou Karl Marx em trecho do livro "Jesus de Nazaré", apresentado no último dia 13 e colocado à venda no dia 16 de abril, quando Ratzinger completou 80 anos de idade. Ao citar no livro a parábola do bom samaritano como exemplo de amor ao próximo, ele cita também o filósofo alemão - que era ateu e afirmava que a Igreja é "ó ópio do povo" - quando descreve o homem como vítima de exploração e opressão.
Essa afirmação de Ratzinger causou muita polêmica no mundo inteiro, mas não vejo motivo para tanto espanto. Tanto a doutrinação dogmática do marxismo quanto a evangelização dogmática do cristianismo caminham na mesma direção: privilegiar a história dos homens em seu compromisso pela transformação social em função do projeto de uma nova sociedade menos injusta e desigual. Ou seja, marxismo e cristianismo são faces da mesma moeda.
Tomemos como exemplo o clássico "A Utopia", de Tomás Morus (1478-1535), católico fervoroso decapitado sob a égide do rei Henrique VIII e canonizado pela Igreja Católica em 1935. Morus teve a particularidade de ser cultuado tanto pelos cristãos quanto pela Revolução Russa, que lhe erigiu uma estátua em homenagem às idéias socialistas de sua célebre "A Utopia", onde descreve um Estado imaginário sem propriedade privada nem dinheiro. Humanista e jurista, o ex-chanceler do Reino da Inglaterra mostrou nesta obra toda a sua preocupação com a felicidade coletiva e a organização da produção, mas de fundamento religioso. Lançou, assim, as bases do socialismo econômico, ao cunhar a palavra utopia, dando início a um gênero literário que faria fortuna nos séculos seguintes, desde "A Nova Atlântida", de Francis Bacon, e "A Cidade do Sol", de Companella, até os escritos dos socialistas do século XX, chamados utópicos.
Neste momento me vêm à memória também as palavras de Milan Kundera, proferidas através do seu personagem Kostka, do romance "A Brincadeira" (editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1967): "Antes de fevereiro de 1948, meu cristianismo agradava aos comunistas. Eles gostavam muito de me ouvir explicar o conteúdo social do Evangelho, esbravejar contra esse velho mundo carcomido que se demonstrava sob seus bens e suas guerras, e demonstrar a semelhança entre o cristianismo e o comunismo. Para eles, tratava-se de atrair para sua causa o maior número possível de pessoas e, portanto, também aqueles que tinham fé. Mas, depois de fevereiro, tudo começou a mudar. (...) Muitos cristãos, católicos e protestantes, não me perdoavam. Consideravam uma traição eu ter-me solidarizado com um movimento que tinha o ateísmo como bandeira. Por seu turno, vozes comunistas se elevaram para dizer que um homem com condições religiosas tão definidas não podia educar a juventude socialista".
O escritor tcheco, que publicou seu romance na Primavera de Praga, em 1967, sustenta que "as igrejas não compreenderam que o movimento operário era a escala dos humilhados e dos necessitados, famintos de justiça. Elas não se preocupavam em instaurar, com eles e para eles, o Reino de Deus sobre a Terra. Aliaram-se aos opressores, e assim tiraram Deus do movimento operário. E pretendem censurar o movimento por não ter um Deus! Que farisaísmo! E claro que o movimento socialista é ateu, só que eu vejo nisso uma reprovação divina, dirigida a nós! Reprovação pela dureza com que tratamos os miseráveis e os sofredores. É claro que as teses do marxismo têm uma origem profana, mas o alcance que os comunistas de primeira hora lhe atribuíam era comparável ao alcance do Evangelho e dos mandamentos bíblicos", diz Kostka.
Em nossos dias, a religião continua sendo um fator típico da inteligência humana. Mesmo os que se dizem ateus cultivavam o Absoluto sob formas leigas ou secularizadas. É o caso do comunismo, ao qual o judeu Karl Marx deu a estrutura de um messianismo em Deus; o proletariado sacrificado na luta de classes seria o Messias, que, morrendo, prepararia o surto de um homem novo, morigerado e pacífico. As categorias religiosas do judaísmo foram transpostas por Marx para o plano da sociologia e da política; sobrevivem, porém, no esquema do pensamento marxista - o marxismo cultua religiosamente certos valores meramente humanos ou profanos. Este esquema caricatural já não satisfaz a muitos comunistas de hoje e o senso religioso, inato em todo homem, vem de novo à tona apesar das tentativas de erradicação a que o marxismo o submeteu.
Ora, até nos desvios o cristianismo se assemelha ao comunismo. Assim como Stálin mandou fuzilar comunistas fiéis que criticaram seus atos sanguinários, também os cristãos mostraram sua faceta sangrenta em diversos momentos da História, como nas Cruzadas e durante a Inquisição. Ao se dividir em diversas denominações, o cristianismo deixou de olhar para o Evangelho e cada uma das várias igrejas passou a olhar para si própria, para o poder e para o ouro. O stalinismo, ao afastar-se dos princípios básicos do socialismo primitivo, colocou o Estado acima da coletividade. Os valores de justiça, paz, solidariedade, de uma sociedade igualitária deixados por Cristo foram esquecidos tanto pelo cristianismo como pelo comunismo, que deixaram de priorizar o ser humano. Do mesmo modo que a igreja prega que Deus é uno e trino, o Estado deveria reconhecer o homem enquanto indivíduo e coletivo, respeitando-o individual e coletivamente.
Não podemos nos esquecer também da aproximação que a Igreja Católica manteve com a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial, como nos mostra Costa Gavras em seu filme "Amém". "Amém" mostra a indignação de um físico alemão e de um jesuíta francês diante das câmaras de gás utilizadas como instrumento de extermínio em massa dos judeus. Durante a Segunda Guerra Mundial, Pio XII estava à frente da Santa Sé e não levantou a sua voz contra os fanáticos nazistas, mesmo dispondo, na época, da única rádio independente em toda a Europa ocupada. Sua indiferença ficou imortalizada livro "O papa de Hitler", de John Cornwell.
http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/200 ... 393092.asp