Os 113 anti-racistas contra as leis raciais

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DIG
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Os 113 anti-racistas contra as leis raciais

Mensagem por DIG »

O GLOBO - 01 de maio de 2008.
Leia os principais trechos do manifesto contra as cotas entregue ao Supremo Tribunal Federal: “Nós, intelectuais da sociedade civil, sindicalistas, empresários e ativistas dos movimentos negros e outros movimentos sociais, dirigimonos respeitosamente aos juízes da corte mais alta, que recebeu do povo constituinte a prerrogativa de guardiã da Constituição, para oferecer argumentos contrários à admissão de cotas raciais na ordem política e jurídica da República.

Na seara do que Vossas Excelências dominam, apontamos a Constituição Federal, no seu Artigo 19, que estabelece: ‘É vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si’. O Artigo 208 dispõe que: ‘O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um’. (...) As palavras da Lei emanam de uma tradição brasileira, que cumpre exatos 120 anos desde a Abolição da escravidão, de não dar amparo a leis e políticas raciais.

No intuito de justificar o rompimento dessa tradição, os proponentes das cotas raciais sustentam que o princípio da igualdade de todos perante a lei exige tratar desigualmente os desiguais. Ritualmente, eles citam a Oração aos Moços, na qual Rui Barbosa, inspirado em Aristóteles, explica que: ‘A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade’. O método de tratar desigualmente os desiguais, a que se refere, é aquele aplicado, com justiça, em campos tão distintos quanto o sistema tributário, por meio da tributação progressiva, e as políticas sociais de transferência de renda.

Mas a sua invocação para sustentar leis raciais não é mais que um sofisma.

Os concursos vestibulares, pelos quais se dá o ingresso no ensino superior de qualidade ‘segundo a capacidade de cada um’, não são promotores de desigualdades, mas se realizam no terreno semeado por desigualdades sociais prévias. A pobreza no Brasil tem todas as cores. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2006, entre 43 milhões de pessoas de 18 a 30 anos de idade, 12,9 milhões tinham renda familiar per capita de meio salário mínimo ou menos. Neste grupo mais pobre, 30% classificavamse a si mesmos como ‘brancos’, 9% como ‘pretos’, e 60% como ‘pardos’. Desses 12,9 milhões, apenas 21% dos ‘brancos’ e 16% dos ‘pretos’ e ‘pardos’ haviam completado o ensino médio, mas muito poucos, de qualquer cor, continuaram estudando depois disso. Basicamente, são diferenças de renda, com tudo que vem associado a elas, e não de cor, que limitam o acesso ao ensino superior.

Apresentadas como maneira de reduzir as desigualdades sociais, as cotas raciais não contribuem para isso, ocultam uma realidade trágica e desviam as atenções dos desafios imensos e das urgências, sociais e educacionais, com os quais se defronta a nação. E, contudo, mesmo no universo menor dos jovens que têm a oportunidade de almejar o ensino superior de qualidade, as cotas raciais não promovem a igualdade, mas apenas acentuam desigualdades prévias ou produzem novas desigualdades. (...) (...) A PNAD de 2006 informa que 9,41 milhões de estudantes cursavam o ensino médio, mas apenas 5,87 milhões freqüentavam o ensino superior, dos quais só uma minoria de 1,44 milhão estavam matriculados em instituições superiores públicas. As leis de cotas raciais não alteram em nada esse quadro e não proporcionam inclusão social.

Queremos um Brasil onde seus cidadãos possam celebrar suas múltiplas origens, que se plasmam na criação de uma cultura nacional aberta e tolerante, no lugar de sermos obrigados a escolher e valorizar uma única ancestralidade em detrimento das outras. O que nos mobiliza não é o combate à doutrina de ações afirmativas, quando entendidas como esforço para cumprir as Declarações Preambulares da Constituição, contribuindo na redução das desigualdades sociais, mas a manipulação dessa doutrina com o propósito de racializar a vida social no país.

Raças humanas não existem. A genética comprovou que as diferenças icônicas das chamadas ‘raças’ humanas são características físicas superficiais, que dependem de parcela ínfima dos 25 mil genes estimados do genoma humano.

Não foi a existência de raças que gerou o racismo, mas o racismo que fabricou a crença em raças. O ‘racismo científico’ do século XIX acompanhou a expansão imperial européia na África e na Ásia, erguendo um pilar ‘científico’de sustentação da ideologia da ‘missão civilizatória’ dos europeus, que foi expressa celebremente como o ‘fardo do homem branco’.

O racismo contamina profundamente as sociedades quando a lei sinaliza às pessoas que elas pertencem a determinado grupo racial e que seus direitos são afetados por esse critério de pertinência de raça. Nos Estados Unidos, modelo por excelência das políticas de cotas raciais, a abolição da escravidão foi seguida pela produção de leis raciais baseadas na regra da ‘gota de sangue única’. Essa regra, que é a negação da mestiçagem biológica e cultural, propiciou a divisão da sociedade em guetos legais, sociais, culturais e espaciais. De acordo com ela, as pessoas são, irrevogavelmente, ‘brancas’ ou ‘negras’. Eis aí a inspiração das leis de cotas raciais no Brasil.

(...) No Brasil, difunde-se a promessa sedutora de redução gratuita das desigualdades por meio de cotas raciais para ingresso nas universidades. Nada pode ser mais falso: as cotas raciais proporcionam privilégios a uma ínfima minoria de estudantes de classe média e conservam intacta, atrás de seu manto falsamente inclusivo, uma estrutura de ensino público arruinada. Há um programa inteiro de restauração da educação pública a se realizar, que exige políticas adequadas e vultosos investimentos. É preciso elevar o padrão geral do ensino mas, sobretudo, romper o abismo entre as escolas de qualidade, quase sempre situadas em bairros de classe média, e as escolas devastadas das periferias urbanas, das favelas e do meio rural. O direcionamento prioritário de novos recursos para esses espaços de pobreza beneficiaria jovens de baixa renda de todos os tons de pele — e, certamente, uma grande parcela daqueles que se declaram ‘pardos’ e ‘pretos’.

A meta nacional deveria ser proporcionar a todos ensino básico de qualidade e oportunidades verdadeiras de acesso à universidade. Mas há iniciativas a serem adotadas, imediatamente, em favor de jovens de baixa renda de todas as cores que chegam aos umbrais do ensino superior, como a oferta de cursos preparatórios gratuitos e a eliminação das taxas de inscrição nos exames vestibulares das universidades públicas.

Na Universidade Estadual Paulista, o Programa de Cursinhos Pré-Vestibulares Gratuitos, destinado a alunos egressos de escolas públicas, atendeu em 2007 a 3.714 jovens, dos quais 1.050 foram aprovados em concursos vestibulares, sendo 707 em universidades públicas. Medidas como essa, que não distinguem os indivíduos segundo critérios raciais abomináveis, têm endereço social certo e contribuem para a amenização das desigualdades.

A sociedade brasileira não está livre da chaga do racismo, algo evidente no cotidiano das pessoas com tom de pele menos claro, em especial entre os jovens de baixa renda. A cor conta, ilegal e desgraçadamente, em incontáveis processos de admissão de funcionários.

A discriminação se manifesta de múltiplas formas, como por exemplo na hora das incursões policiais em bairros periféricos.

Por certo existe preconceito racial e racismo no Brasil, mas o Brasil não é uma nação racista.

Depois da Abolição, no lugar da regra da ‘gota de sangue única’, a nação elaborou uma identidade amparada na idéia anti-racista de mestiçagem e produziu leis que criminalizam o racismo.

Há sete décadas, a República não conhece movimentos racistas organizados ou expressões significativa de ódio racial. O preconceito de raça, acuado, refugiou-se em expressões oblíquas envergonhadas, temendo assomar à superfície.

A condição subterrânea do preconceito é um atestado de que há algo de muito positivo na identidade nacional brasileira, não uma prova de nosso fracasso histórico.

A propaganda cerrada em favor das cotas raciais assegura-nos que os estudantes universitários cotistas exibem desempenho similar ao dos demais. Os dados concernentes ao tema são esparsos, contraditórios e pouco confiáveis. Mas isso é essencialmente irrelevante, pois a crítica informada dos sistemas de cotas nunca afirmou que estudantes cotistas seriam incapazes de acompanhar os cursos superiores ou que sua presença provocaria queda na qualidade das universidades. As cotas raciais não são um distúrbio no ensino superior, mas a face mais visível de uma racialização oficial das relações sociais que ameaça a coesão nacional.

A crença na raça é o artigo de fé do racismo.

A fabricação de ‘raças oficiais’ e a distribuição seletiva de privilégios segundo rótulos de raça inocula na circulação sanguínea da sociedade o veneno do racismo, com seu cortejo de rancores e ódios. No Brasil, representaria uma revisão radical de nossa identidade nacional e a renúncia à utopia possível da universalização da cidadania efetiva.

Ao julgar as cotas raciais, o STF não estará deliberando sobre um método de ingresso nas universidades, mas sobre o significado da nação e a natureza da Constituição. Leis raciais não ameaçam uma ‘elite branca’, conforme esbravejam os racialistas, mas passam uma fronteira brutal no meio da maioria absoluta dos brasileiros. Essa linha divisória atravessaria as salas de aula das escolas públicas, os ônibus, as ruas e as casas dos bairros pobres.

Neste início de terceiro milênio, um Estado racializado estaria dizendo aos cidadãos que a utopia da igualdade fracassou, e que, no seu lugar, o máximo que podemos almejar é uma trégua sempre provisória entre nações separadas pelo precipício intransponível das identidades raciais. É esse mesmo o futuro que queremos?”
Fonte: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/clipping/abr ... is-raciais

Trancado