Os heróis imaculados de 68
Enviado: 27 Mai 2008, 07:41
"O Globo" 26/05/08
História
Joaquim Ferreira dos Santos
Ah, como eram conscientes esses entrevistados que os jornais exibem todos os dias falando de 1968, de como enfrentaram a ditadura na Passeata dos Cem Mil ou como arremessaram bola de gude na cavalaria da PM na Rio Branco. Nunca mais nasceu uma multidão daquelas. Todos íntegros, escorreitos.
Se não venceram a guerra na hora, é detalhe.
Os cadernos especiais de hoje lhes fazem justiça, um ministério do Lula também, e a medalha Pedro Ernesto logo será cravada no peito de cada um. Bravíssimos, que até a próxima temporada de elogios em 2018 os arquivos os mantenham assim. Altivos, coerentes e com cada minuto recheado de algum novo feito épico para contar. Percebe-se agora, 40 anos depois, que foi um ano inteiro de atitudes válidas e inseridas no contexto. Ninguém vil, muito menos torpe ou acovardado. Príncipes guerreiros. Nenhum deles vaiou o “Sabiá” de Chico e Tom no Maracanãzinho.
Ítala Nandi tirou a roupa no “Rei da vela” e não a chamaram de “galinha”. Também não era com algum deles que Caetano estava falando quando começou a arengar, debaixo de tomate e ovo podre, se era aquela a juventude que queria tomar o poder, planejando matar amanhã o velhinho doente que morreu ontem. Todos aplicados, empenhados no único projeto possível. O povo unido jamais seria vencido.
A indústria lançou a vitrola estereofônica.
Não ouviram. As mulheres inventaram o maiô-engana-mamãe. Nem perceberam. Investidos que estavam na produção de coquetéis molotov para jogar no lombo dos gorilas, os homens sérios a quem agora os cadernos especiais dedicam a manutenção da pátria livre não devem ter tido tempo sequer de piscar os olhos sobre as fotos de Jacqueline Kennedy nua numa ilha grega. Se um intervalo houvesse, também passariam ao largo com um solene muxoxo, pois estavam pegados na leitura de “Um projeto para o Brasil”, de Celso Furtado.
O bumbum da Jackie O, os cabelos da Duda Cavalcanti e o narigão da Veruschka, assuntos que se revezavam na capa da “Manchete”, assim como o desenho do Corcel do Vigilante Rodoviário — tudo isso era indiferente ao jovem universitário que chega ao noticiário quatro décadas depois com a lembrança da polícia batendo na porta e ele, longe, já na poltrona do Paissandu.
Eles não viram “O casamento na TV” do Raul Longras, não leram “O aeroporto”, do Arthur Hayley e, quando Lennon e Yoko ficaram nus na capa do LP, fizeram tsk, tsk, certos de que aquilo só desviava o foco da revolução que estava por vir. O proletariado no poder, abaixo o MECUSAID e outras mumunhas mais.
Era um país, percebe-se agora, de jovens sabendo a hora, não esperando acontecer. Fizeram a revolução que hoje tornou o país mais forte.
Nunca mais uma juventude tão consciente. Os engajados queriam o povo livre. Os alienados queriam as mulheres livres. Os engajados queriam transformar isso aqui numa Cuba enorme, os alienados preferiam que fosse uma festa interminável.
Os dois grupos menosprezavam-se, o que não vem mais ao caso. Todos heróis da pátria, merecedores do busto apropriado na pracinha mais próxima de seus condomínios ou um plástico maneiro no carro: “Eu estive em 68”. A todos o nosso muito obrigado e inveja branca.
Que geração raçuda! Que o National Kid e a Gata de Vison abram suas capas e para todo o sempre os protejam da contaminação dos maus. O nordestino pode ter sido um forte, mas ninguém superou a geração 68 em tutano e presença histórica.
Foi o ano de o “bip” começar a dar recados, o dia em que McLuhan começou com o papo de que o meio era a mensagem. Mas não para o homem sério engajado nas trincheiras. Ele desprezava as tecnologias. Lutava pela justiça nossa de cada dia, para nos salvar — e nada mais jornalisticamente correto que agora receba a salva de palmas no auditório dos cadernos especiais.
Que o Estado faça a sua parte e lhe dê todas as estátuas, pensões e uma coleção de Mug, aquele bonequinho que o Simonal vendia na TV.
Grandes homens para os almanaques do pantheon nacional, os revolucionários de 1968 — ou seja, toda a população, noves fora os milicos de verde-oliva — deixaram de fazer filmes geniais para esconder Marta Saré no sótão. Alguns até hoje carregam uma bruta rinite alérgica adquirida naqueles cobertores das Casas Pernambucanas com que posaram, presos, após o Congresso da UNE em Ibiúna.
Viram “A chinesa” e entenderam tudo. Merecem todos os beijos no coração que agora recebem nos jornais. Eles não dançaram o let kiss, porque estavam lendo “Eros e Civilização”, do Marcuse; eles não transaram com a Barbarella, pois estavam velando o corpo de Edson Luís no Calabouço; eles não curtiram a moda cigana do Denner, porque estavam debatendo o marxismo no campus da Praia Vermelha.
Houve a geração de craques do futebol de 1970, os garotos antenados da Geração Mimeógrafo e os modernistas de 22. Todos deram sua contribuição, aqui e ali, para colocar esta taba em pé e fixar na porta a placa afirmando que “Isto é um país”. Gerações de bravos, sem dúvida.
Mas lê-se agora nos cadernos especiais dos jornais que todos fizeram muito pouco diante dos que estiveram em 1968, bateram na cara dos estudantes de direita da Rua Maria Antônia e foram presos com a turma do “Pasquim” na Vila Militar. 1968 foi o ano, percebe-se finalmente, visto assim do alto de 2008, em que o heroísmo grassou.
Ninguém perdeu tempo lendo “Meu pé de laranja lima”, ninguém reclamou se Leila Diniz não estava na última lista que Sérgio Porto faria das certinhas do Lalau. Foi o ano em que o país inteiro a-mou de primeira a distorção da guitarra de Hendrix e repetiu no ouvido da namorada não o “Eu te amo, te amo, te amo”, do Roberto, o grande sucesso da temporada, mas as palavras de ordem política do jornalista visionário de “Terra em transe”.
Aos heróis semideuses de 1968, mais esta meia página de eterna gratidão.
História
Joaquim Ferreira dos Santos
Ah, como eram conscientes esses entrevistados que os jornais exibem todos os dias falando de 1968, de como enfrentaram a ditadura na Passeata dos Cem Mil ou como arremessaram bola de gude na cavalaria da PM na Rio Branco. Nunca mais nasceu uma multidão daquelas. Todos íntegros, escorreitos.
Se não venceram a guerra na hora, é detalhe.
Os cadernos especiais de hoje lhes fazem justiça, um ministério do Lula também, e a medalha Pedro Ernesto logo será cravada no peito de cada um. Bravíssimos, que até a próxima temporada de elogios em 2018 os arquivos os mantenham assim. Altivos, coerentes e com cada minuto recheado de algum novo feito épico para contar. Percebe-se agora, 40 anos depois, que foi um ano inteiro de atitudes válidas e inseridas no contexto. Ninguém vil, muito menos torpe ou acovardado. Príncipes guerreiros. Nenhum deles vaiou o “Sabiá” de Chico e Tom no Maracanãzinho.
Ítala Nandi tirou a roupa no “Rei da vela” e não a chamaram de “galinha”. Também não era com algum deles que Caetano estava falando quando começou a arengar, debaixo de tomate e ovo podre, se era aquela a juventude que queria tomar o poder, planejando matar amanhã o velhinho doente que morreu ontem. Todos aplicados, empenhados no único projeto possível. O povo unido jamais seria vencido.
A indústria lançou a vitrola estereofônica.
Não ouviram. As mulheres inventaram o maiô-engana-mamãe. Nem perceberam. Investidos que estavam na produção de coquetéis molotov para jogar no lombo dos gorilas, os homens sérios a quem agora os cadernos especiais dedicam a manutenção da pátria livre não devem ter tido tempo sequer de piscar os olhos sobre as fotos de Jacqueline Kennedy nua numa ilha grega. Se um intervalo houvesse, também passariam ao largo com um solene muxoxo, pois estavam pegados na leitura de “Um projeto para o Brasil”, de Celso Furtado.
O bumbum da Jackie O, os cabelos da Duda Cavalcanti e o narigão da Veruschka, assuntos que se revezavam na capa da “Manchete”, assim como o desenho do Corcel do Vigilante Rodoviário — tudo isso era indiferente ao jovem universitário que chega ao noticiário quatro décadas depois com a lembrança da polícia batendo na porta e ele, longe, já na poltrona do Paissandu.
Eles não viram “O casamento na TV” do Raul Longras, não leram “O aeroporto”, do Arthur Hayley e, quando Lennon e Yoko ficaram nus na capa do LP, fizeram tsk, tsk, certos de que aquilo só desviava o foco da revolução que estava por vir. O proletariado no poder, abaixo o MECUSAID e outras mumunhas mais.
Era um país, percebe-se agora, de jovens sabendo a hora, não esperando acontecer. Fizeram a revolução que hoje tornou o país mais forte.
Nunca mais uma juventude tão consciente. Os engajados queriam o povo livre. Os alienados queriam as mulheres livres. Os engajados queriam transformar isso aqui numa Cuba enorme, os alienados preferiam que fosse uma festa interminável.
Os dois grupos menosprezavam-se, o que não vem mais ao caso. Todos heróis da pátria, merecedores do busto apropriado na pracinha mais próxima de seus condomínios ou um plástico maneiro no carro: “Eu estive em 68”. A todos o nosso muito obrigado e inveja branca.
Que geração raçuda! Que o National Kid e a Gata de Vison abram suas capas e para todo o sempre os protejam da contaminação dos maus. O nordestino pode ter sido um forte, mas ninguém superou a geração 68 em tutano e presença histórica.
Foi o ano de o “bip” começar a dar recados, o dia em que McLuhan começou com o papo de que o meio era a mensagem. Mas não para o homem sério engajado nas trincheiras. Ele desprezava as tecnologias. Lutava pela justiça nossa de cada dia, para nos salvar — e nada mais jornalisticamente correto que agora receba a salva de palmas no auditório dos cadernos especiais.
Que o Estado faça a sua parte e lhe dê todas as estátuas, pensões e uma coleção de Mug, aquele bonequinho que o Simonal vendia na TV.
Grandes homens para os almanaques do pantheon nacional, os revolucionários de 1968 — ou seja, toda a população, noves fora os milicos de verde-oliva — deixaram de fazer filmes geniais para esconder Marta Saré no sótão. Alguns até hoje carregam uma bruta rinite alérgica adquirida naqueles cobertores das Casas Pernambucanas com que posaram, presos, após o Congresso da UNE em Ibiúna.
Viram “A chinesa” e entenderam tudo. Merecem todos os beijos no coração que agora recebem nos jornais. Eles não dançaram o let kiss, porque estavam lendo “Eros e Civilização”, do Marcuse; eles não transaram com a Barbarella, pois estavam velando o corpo de Edson Luís no Calabouço; eles não curtiram a moda cigana do Denner, porque estavam debatendo o marxismo no campus da Praia Vermelha.
Houve a geração de craques do futebol de 1970, os garotos antenados da Geração Mimeógrafo e os modernistas de 22. Todos deram sua contribuição, aqui e ali, para colocar esta taba em pé e fixar na porta a placa afirmando que “Isto é um país”. Gerações de bravos, sem dúvida.
Mas lê-se agora nos cadernos especiais dos jornais que todos fizeram muito pouco diante dos que estiveram em 1968, bateram na cara dos estudantes de direita da Rua Maria Antônia e foram presos com a turma do “Pasquim” na Vila Militar. 1968 foi o ano, percebe-se finalmente, visto assim do alto de 2008, em que o heroísmo grassou.
Ninguém perdeu tempo lendo “Meu pé de laranja lima”, ninguém reclamou se Leila Diniz não estava na última lista que Sérgio Porto faria das certinhas do Lalau. Foi o ano em que o país inteiro a-mou de primeira a distorção da guitarra de Hendrix e repetiu no ouvido da namorada não o “Eu te amo, te amo, te amo”, do Roberto, o grande sucesso da temporada, mas as palavras de ordem política do jornalista visionário de “Terra em transe”.
Aos heróis semideuses de 1968, mais esta meia página de eterna gratidão.