Roma, a Religião da República Sagrada

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Acauan
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Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Acauan »

Roma, a Religião da República Sagrada
Comentários sobre a série da HBO

Por Acauan

A série televisa Roma (EUA, 2005, co-produzida pela HBO e BBC) é um primor de reconstituição histórica, que mostra a vida na capital do Império no tumultuado período desde a conquista da Gália por Caio Julio César em 52 A.C. até seu assassinato em 44 A.C., levado a cabo por uma conspiração de senadores.
Neste período, da narrativa principal, que conta como César subjugou o senado e conquistou o poder absoluto, derivam outras secundárias que retratam o cotidiano da aristocracia e da gente comum da Roma de então.

A perspectiva dos comuns é abordada do ponto de vista de dois fictícios personagens, o legionário Tito Pullo (Interpretado por Ray Stevenson) e o centurião Lúcio Voreno (Interpretado por Kevin McKidd), este um guerreiro totalmente dedicado à sua corporação, a décima terceira Legião, com a qual César bateu Vercingétorix (é, aquele do Asterix) e tomou o rumo do Rubicão.

Voreno, na série, é descrito por Marco Antonio como um muro de pedra catoniano, uma referência aos romanos que seguiam o modelo de conduta e vida de Catão, o censor que encarnava o espírito de austeridade, severidade e honra da antiga República.

A religião de Voreno e de Roma era essencialmente uma religião cívica, na qual não havia diferença entre pecado e não cumprimento dos deveres de cidadão, entre confrontar as instituições e sacrilégio ou entre ofender a República e ofender os deuses.

A República Romana, para os cidadãos que guardavam seus antigos valores, era mais do que uma entidade política, era um intermediário entre os deuses e os homens. Uma entidade erigida por estes, mas imortal como aqueles.
Este amálgama entre o civil e o sacro na consciência religiosa romana é abordado no conflito íntimo que se instala em Lúcio Voreno quando César convoca suas tropas para marchar a Roma, contra as ordens do senado.
Para o centurião o ato de César é um sacrilégio, cujo destino final teme ser a destruição da República e a instalação da tirania. Mas os mesmos valores e princípios que o fazem se opor às decisões de seu comandante o obrigam a obedecê-las.

O paganismo de Estado dos romanos se mostra em Voreno nas suas diversas facetas.
Em uma cena cheia de compenetração sensível o catoniano oferece seu sangue a Vênus, pedindo à deusa que sua esposa o ame tanto quanto ele a ama, uma vez que sua dureza de soldado o impede de expressar seus sentimentos diretamente a ela.
Em outra, quando indagado sobre o número de homens que matou, o centurião fornece com frieza uma contagem precisa dos guerreiros mortos (os civis ele não contava), cujo número era oferecido como tributo a Marte, deus da guerra.
Voreno também protagoniza alguns rituais específicos, como o banquete oferecido a Janus, o deus das portas, para que este favoreça uma iniciativa comercial, e o ritual de fertilidade, no qual ele e a esposa simulam um ato sexual em meio às terras de sua propriedade, visando torna-las fecundas.

Um contraponto interessante à religiosidade cívica rígida e sincera dos catonianos é apresentada na série no episódio 4, Stealing from Saturn, na qual César, para legitimar seu poder, precisa de um sinal de bons auspícios que deixasse claro que os deuses apoiavam sua tomada do poder absoluto.
Ele consegue isto subornando os sacerdotes do Collegium Pontificum, que por uma vultosa quantia aceitam providenciar a aprovação divina durante a sagração de César como ditador romano.

É também através de Lucio Voreno que podemos observar o modo sutil, mas muito minucioso, como a série nos apresenta a desconfortável crueldade reinante na ausência dos valores cristãos que só conquistariam o Ocidente alguns séculos depois.

Em uma cena particularmente chocante, o centurião vai tratar a venda dos escravos que recebera como espólio na campanha da Gália, deixados sob a guarda de um mercador que deveria engordá-los visando melhorar seu preço.
Quando pergunta pelo estado de suas mercadorias, é conduzido pelo mercador à jaula minúscula onde estão os corpos putrefatos dos prisioneiros, que morreram de disenteria.
O único sobrevivente é um pequeno menino, mantido preso junto ao cadáver da mãe e dos demais para que o proprietário pudesse comprovar por si mesmo que seu patrimônio não fora roubado.

O centurião trava um desesperado diálogo com o mercador, no qual lamenta a dimensão de seu prejuízo.
Para o espectador estupefato fica a terrível dúvida de o porquê ninguém ligar a mínima para as pessoas mortas, principalmente, para a criança aprisionada junto aos restos apodrecidos de sua mãe e parentes.

Por que Lúcio Voreno, um homem íntegro e abnegado, se mostrava tão impiedoso?

A resposta simples é que a piedade cristã só seria divulgada quase um século depois do tempo daqueles eventos narrados.
Para os romanos, os vencidos escravizados eram apenas isto, vencidos escravizados. Suas vidas e mortes tinham o valor exato de seu preço de mercado ou de sua serventia para o trabalho.
Na ausência dos preceitos cristãos que viriam a criar o conceito de pessoa humana com valor em si mesma, os romanos avaliavam o quanto valia uma vida pela sua posição na hierarquia de sua sociedade.
Não havia como ou porque naquele sistema reconhecer qualquer tipo de igualdade entre um cidadão romano livre e quem não o era.

Apesar de toda identificação da República Romana e seus valores como a manifestação mais visível dos desígnios dos deuses, Roma não era uma teocracia, no sentido que atualmente se dá ao termo.
Na teocracia a religião incorpora o Estado enquanto em Roma o Estado incorporava a religião.
Esta simbiose construiu e consolidou o civismo dos romanos, base de sua têmpera guerreira que demarcou o Ocidente na ponta do gládio e na batida das cáligas.
Quando o poder e a riqueza corromperam esta simbiose, a República Sagrada desabou. O triunfo do Império continha em si o gérmen de sua própria decadência.

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Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Ateu Tímido »

Apenas uma pequena observação, por enquanto:
Seria a piedade um valor específica e necessariamente cristão?
A cena do centurião romano com o menino escravo e os cadáveres poderia perfeitamente ser feita substituindo-se o guerreiro de Roma por um cavaleiro cristão do começo da Idade Média.
Penso que somente com o desenvolvimento posterior da filosofia no crstianismo tal comportamento foi abrandado. Apenas abrandado e apenas em relação aos outros cristãos.
Ainda no século XV, uma bula papal autorizava a escravização de negros muçulmanos africanos, capturados em combate, o que logo foi estendido a outros pagãos africanos, com o "objetivo" declarado de "convertê-los" ao cristianismo.
Penso, então, que o conceito, relevante, sem dúvida, de piedade é mais o resultado de um "aperfeiçoamento moral", no qual as religiões modernas tiveram algum papel, do que uma conseqüência direta do estabelecimento do cristianismo no ocidente.

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Samael
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Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Samael »

A maldita HBO fez questão de passar apenas os dois primeiros capítulos por aqui e, como não tmeos o canal, vi só os dois primeiros capítulos.

Não sei se por algum problema de tradução, mas, em determinados momentos tanto Lúcio Voreno como Marco Antônio alcunham a população romana mais pobre como "proletários".

Fiquei frustrado com aquilo...

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Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Aurelio Moraes »

O engraçado é ver os cidadãos romanos rezando para os antigos deuses exatamente como os crentes fazem com jesuis e os católicos com os santos atualmente.

:emoticon12:

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Ateu Tímido
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Re: Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Ateu Tímido »

Samael escreveu:A maldita HBO fez questão de passar apenas os dois primeiros capítulos por aqui e, como não tmeos o canal, vi só os dois primeiros capítulos.

Não sei se por algum problema de tradução, mas, em determinados momentos tanto Lúcio Voreno como Marco Antônio alcunham a população romana mais pobre como "proletários".

Fiquei frustrado com aquilo...


O termo "proletário" foi cunhado exatamente pelos romanos, para se referir à camada baixa da população que vivia de trabalhos braçais ou manuais. Portanto, não está exatamente errado.

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Acauan
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Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Acauan »

Ateu Tímido escreveu:Apenas uma pequena observação, por enquanto:
Seria a piedade um valor específica e necessariamente cristão?


A piedade era preceito fundamental do Judaísmo muito antes do Cristianismo tomar forma. Nesta, como em outras culturas onde o conceito já existia, era uma piedade restrita, a ser praticada pelos judeus para os judeus.
A inovação da piedade cristã era a proposta de universalidade, uma piedade irrestrita a ser praticada por todos os homens entre si.


Ateu Tímido escreveu:A cena do centurião romano com o menino escravo e os cadáveres poderia perfeitamente ser feita substituindo-se o guerreiro de Roma por um cavaleiro cristão do começo da Idade Média.
Penso que somente com o desenvolvimento posterior da filosofia no crstianismo tal comportamento foi abrandado. Apenas abrandado e apenas em relação aos outros cristãos.
Ainda no século XV, uma bula papal autorizava a escravização de negros muçulmanos africanos, capturados em combate, o que logo foi estendido a outros pagãos africanos, com o "objetivo" declarado de "convertê-los" ao cristianismo.
Penso, então, que o conceito, relevante, sem dúvida, de piedade é mais o resultado de um "aperfeiçoamento moral", no qual as religiões modernas tiveram algum papel, do que uma conseqüência direta do estabelecimento do cristianismo no ocidente.


Há uma diferença importantíssima no caso entre a inexistência do preceito e a desobediência a ele.
Piedade irrestrita e universal não era uma escolha possível para os romanos porque esta opção simplesmente não existia em sua cultura.
Já os cavaleiros medievais e o Papa escravista tinham a piedade universal como opção, mas renunciaram a ela por escolha própria.

A Filosofia Cristã seria importante para construir a cosmovisão centrada no Indivíduo só diante de Deus, respondendo diretamente por seus atos. Esta igualdade teológica dava sustentação filosófica à piedade universal, mas ela já era um dos fundamentos do Cristianismo primitivo muito antes disto.
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Ateu Tímido
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Re: Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Ateu Tímido »

Acauan escreveu:
Ateu Tímido escreveu:A cena do centurião romano com o menino escravo e os cadáveres poderia perfeitamente ser feita substituindo-se o guerreiro de Roma por um cavaleiro cristão do começo da Idade Média.
Penso que somente com o desenvolvimento posterior da filosofia no crstianismo tal comportamento foi abrandado. Apenas abrandado e apenas em relação aos outros cristãos.
Ainda no século XV, uma bula papal autorizava a escravização de negros muçulmanos africanos, capturados em combate, o que logo foi estendido a outros pagãos africanos, com o "objetivo" declarado de "convertê-los" ao cristianismo.
Penso, então, que o conceito, relevante, sem dúvida, de piedade é mais o resultado de um "aperfeiçoamento moral", no qual as religiões modernas tiveram algum papel, do que uma conseqüência direta do estabelecimento do cristianismo no ocidente.


Há uma diferença importantíssima no caso entre a inexistência do preceito e a desobediência a ele.
Piedade irrestrita e universal não era uma escolha possível para os romanos porque esta opção simplesmente não existia em sua cultura.
Já os cavaleiros medievais e o Papa escravista tinham a piedade universal como opção, mas renunciaram a ela por escolha própria.

A Filosofia Cristã seria importante para construir a cosmovisão centrada no Indivíduo só diante de Deus, respondendo diretamente por seus atos. Esta igualdade teológica dava sustentação filosófica à piedade universal, mas ela já era um dos fundamentos do Cristianismo primitivo muito antes disto.


Mesmo sendo um preceito do cristianismo primitivo, seita inicialmente de "oprimidos", inclusive escravos, a cristianização dos bárbaros e a generalização do poder cristão sobre a Europa devem ter trazido algum retrocesso.
Um caso interessante é o dos jesuítas nos séculos XVI e XVII. Eram inteiramente contrários à escravização dos índios, inclusive com justificação teológica, mas defenderam e chegaram a participar da escravização dos africanos. Do mesmo modo, os protestantes ingleses dos dois lados do Atlântico Norte participaram ativamente do negócio, até que setores religiosos e políticos começaram a pregar a imoralidade de tal comportamento. Luiz Felipe de Alencastro, no seu "Trato dos Viventes", sobre o comércio de escravos nesses dois séculos, chega a considerar compreensível a postura dos jesuítas no século XVI, quando a escravização de inimigos era prática generalizada, mas questiona essa postura, no final do século seguinte, em moralistas como o padre Antônio Vieira, que, contra a opinião de vozes cristãs influentes, dentro e fora do catolicismo, continuava a defender a visão tradicional da sua ordem.

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Fernando Silva
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Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Fernando Silva »

Acauan escreveu:Não havia como ou porque naquele sistema reconhecer qualquer tipo de igualdade entre um cidadão romano livre e quem não o era.

No livro "O processo civilizador", Norbert Elias descreve como esta desigualdade permaneceu durante boa parte da Idade Média.
Ao contrário da divisão entre nobreza, classe média e ralé que existiu mais tarde e, de certa forma, ainda existe, a desigualdade era quase uma questão de diferença de raça, e não de classe social.
Norbert descreve como os senhores feudais viviam misturados a seus servos, sem nenhuma preocupação em resguardar sua vida privada e sua nudez, por exemplo, da mesma forma que uma pessoa, hoje em dia, convive com seus animais de estimação.
A diferença era tão grande que os senhores nem se preocupavam em ser confundidos com um servo ou que estes tomassem seu lugar, assim como nós não nos preocupamos com nossos cães e gatos.

Nota: Eurípedes escreveu contra a escravidão por volta de 425 a.C. ("Hecuba"), o que mostra que o repúdio a ela não é uma idéia moderna.

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Re: Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Acauan »

Ateu Tímido escreveu: Mesmo sendo um preceito do cristianismo primitivo, seita inicialmente de "oprimidos", inclusive escravos, a cristianização dos bárbaros e a generalização do poder cristão sobre a Europa devem ter trazido algum retrocesso.
Um caso interessante é o dos jesuítas nos séculos XVI e XVII. Eram inteiramente contrários à escravização dos índios, inclusive com justificação teológica, mas defenderam e chegaram a participar da escravização dos africanos. Do mesmo modo, os protestantes ingleses dos dois lados do Atlântico Norte participaram ativamente do negócio, até que setores religiosos e políticos começaram a pregar a imoralidade de tal comportamento. Luiz Felipe de Alencastro, no seu "Trato dos Viventes", sobre o comércio de escravos nesses dois séculos, chega a considerar compreensível a postura dos jesuítas no século XVI, quando a escravização de inimigos era prática generalizada, mas questiona essa postura, no final do século seguinte, em moralistas como o padre Antônio Vieira, que, contra a opinião de vozes cristãs influentes, dentro e fora do catolicismo, continuava a defender a visão tradicional da sua ordem.


Há várias perspectivas para estas questões.
A primeira, talvez a mais importante, é que o cristianismo original dos Evangelhos é uma doutrina para a salvação da alma, que não tinha a intenção de se imiscuir no que era de César.
Quando o Império Romano acabou e a Igreja era a única instituição organizada e reconhecida por toda a Europa, terminou por assumir o vácuo deixado pela burocracia imperial, mas jamais conseguiu conciliar esta atividade com os preceitos do cristianismo, simplesmente porque tal atividade era contrária à essência da doutrina.
Os Jesuítas são um exemplo interessante de o quanto era difícil para a Igreja conciliar pregação e ação.
A Companhia de Jesus foi a mais poderosa tropa de evangelização que o mundo conheceu. Esqueçam as imagens românticas de José de Anchieta desenhando versos na areia. Os jesuítas eram preparados, disciplinados, duros, pragmáticos, frios, decididos, arrogantes, autoritários e, muitas vezes, brutais. Pode-se dizer que eram Franciscanos virados do avesso.
No Brasil eles se opuseram à escravidão dos Índios antes por acharem que era do interesse deles e da Igreja do que por qualquer sentimento de fraternidade que tivessem com a gente (estou falando da minha gente). Manoel da Nóbrega, o chefe do bonzinho do Anchieta, dizia que o único modo de converter os Índios era pela espada. Por ironia ouvi esta frase no Pátio do Colégio em São Paulo, lugar que até hoje tenho algum medo de visitar...
Portanto não é de estranhar que os jesuítas apoiassem a escravidão em alguns lugares enquanto a combatiam em outros, já que eles eram pragmáticos e decididos a cumprir sua missão. Antes mesmo da escalada do tráfico de escravos africanos eles já faziam vistas grossas, no mínimo, ao sistema de encomiendas vigente na América Espanhola, que nada mais era que a mesma escravidão indígena à qual eles se opuseram aqui.

No mais, se tem uma coisa que pisa nos calos das grandes religiões é a escravidão. Católicos, protestantes, judeus e muçulmanos tiveram cada um a seu tempo e modo papel influente na manutenção do tráfico.
A causa primária desta cumplicidade com o imperdoável é que seus livros sagrados não dizem uma única palavra proibindo ou mesmo criticando a escravidão em si.
É a tal da moral absoluta revelada por Deus...

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Re: Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Fernando Silva »

Acauan escreveu:A causa primária desta cumplicidade com o imperdoável é que seus livros sagrados não dizem uma única palavra proibindo ou mesmo criticando a escravidão em si.
É a tal da moral absoluta revelada por Deus...

O A.T. normatiza a escravidão e Jesus, no N.T., a menciona como se fosse uma coisa normal, um fato da vida.
Teve mil chances de criticá-la e não o fez.
E Paulo reforça a idéia ("Servos, obedeçam a seus senhores").

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Re: Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Acauan »

Fernando Silva escreveu:
Acauan escreveu:A causa primária desta cumplicidade com o imperdoável é que seus livros sagrados não dizem uma única palavra proibindo ou mesmo criticando a escravidão em si.
É a tal da moral absoluta revelada por Deus...

O A.T. normatiza a escravidão e Jesus, no N.T., a menciona como se fosse uma coisa normal, um fato da vida.
Teve mil chances de criticá-la e não o fez.
E Paulo reforça a idéia ("Servos, obedeçam a seus senhores").


Judeus, cristãos e muçulmanos, sempre que o assunto é trazido à baila, tentam minimizar esta questão, mas é simplesmente inconcebível que a um Deus que virava e mexia ditava regras rígidas quanto a vestuário, corte de cabelo ou olhar de soslaio para as mulheres nunca tenha ocorrido dizer uma palavrinha ou duas contra a escravidão.
Pelo contrário, quando a cita a complacência é óbvia...

Como disse, se isto é moral absoluta eu sou o general Custer.
Editado pela última vez por Acauan em 19 Jan 2006, 10:44, em um total de 1 vez.
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Re: Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Acauan »

Fernando Silva escreveu:Eurípedes escreveu contra a escravidão por volta de 425 a.C. ("Hecuba"), o que mostra que o repúdio a ela não é uma idéia moderna.


Fernando,

Posso estar errado, mas sempre me pareceu que a intenção de Eurípedes era mostrar o aspecto trágico da escravidão e não denunciar a imoralidade desta.

Você poderia ser mais específico a respeito de sua citação?
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Re: Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Fernando Silva »

Acauan escreveu:
Fernando Silva escreveu:Eurípedes escreveu contra a escravidão por volta de 425 a.C. ("Hecuba"), o que mostra que o repúdio a ela não é uma idéia moderna.


Fernando,

Posso estar errado, mas sempre me pareceu que a intenção de Eurípedes era mostrar o aspecto trágico da escravidão e não denunciar a imoralidade desta.

Você poderia ser mais específico a respeito de sua citação?


Tenho estes dois trechos da obra. Alguém poderia alegar que "homem", para ele, significa outro grego ou coisa assim, e não os homens em geral, mas não tenho como saber, só com este trecho.
Entendo que by its nature evil seja uma condenação moral, não um lamento por um acontecimento ruim (que seria o caso se ele lamentasse ter se tornado escravo em vez de ter feito outros escravos dele).

"Slavery... That thing of evil, by its nature evil, forcing
submission from a man what no man can yield to."
[Euripides, "Hecuba," 425 B.C.

"Do we, holding that the gods exist, deceive ourselves
with unsubstantial dreams and lies, while random
careless change and chance alone control the world?"
[Euripides, Athenian Dramatist, 484-406 BC, "Hecuba"]

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Re: Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Ateu Tímido »

Acauan escreveu:Há várias perspectivas para estas questões.
A primeira, talvez a mais importante, é que o cristianismo original dos Evangelhos é uma doutrina para a salvação da alma, que não tinha a intenção de se imiscuir no que era de César.
Quando o Império Romano acabou e a Igreja era a única instituição organizada e reconhecida por toda a Europa, terminou por assumir o vácuo deixado pela burocracia imperial, mas jamais conseguiu conciliar esta atividade com os preceitos do cristianismo, simplesmente porque tal atividade era contrária à essência da doutrina.
Os Jesuítas são um exemplo interessante de o quanto era difícil para a Igreja conciliar pregação e ação.
A Companhia de Jesus foi a mais poderosa tropa de evangelização que o mundo conheceu. Esqueçam as imagens românticas de José de Anchieta desenhando versos na areia. Os jesuítas eram preparados, disciplinados, duros, pragmáticos, frios, decididos, arrogantes, autoritários e, muitas vezes, brutais. Pode-se dizer que eram Franciscanos virados do avesso.
No Brasil eles se opuseram à escravidão dos Índios antes por acharem que era do interesse deles e da Igreja do que por qualquer sentimento de fraternidade que tivessem com a gente (estou falando da minha gente). Manoel da Nóbrega, o chefe do bonzinho do Anchieta, dizia que o único modo de converter os Índios era pela espada. Por ironia ouvi esta frase no Pátio do Colégio em São Paulo, lugar que até hoje tenho algum medo de visitar...
Portanto não é de estranhar que os jesuítas apoiassem a escravidão em alguns lugares enquanto a combatiam em outros, já que eles eram pragmáticos e decididos a cumprir sua missão. Antes mesmo da escalada do tráfico de escravos africanos eles já faziam vistas grossas, no mínimo, ao sistema de encomiendas vigente na América Espanhola, que nada mais era que a mesma escravidão indígena à qual eles se opuseram aqui.

No mais, se tem uma coisa que pisa nos calos das grandes religiões é a escravidão. Católicos, protestantes, judeus e muçulmanos tiveram cada um a seu tempo e modo papel influente na manutenção do tráfico.
A causa primária desta cumplicidade com o imperdoável é que seus livros sagrados não dizem uma única palavra proibindo ou mesmo criticando a escravidão em si.
É a tal da moral absoluta revelada por Deus...


Quanto à questão do cristianismo ser apenas uma doutrina para a salvação da alma, só podemos especular sobre as crenças originais dos cristãos na Roma decadente. Os evangelhos canônicos atuais foram adotados quando a igreja cristã já era apoio importante e "sócia" do poder de Roma. Assim, era conveniente uma doutrina que não interferisse com o poder.

Sobre os jesuítas, de fato eram uma tropa de elite fundada por um grupo peculiar de nobres que tinham, ao mesmo tempo, apurada formação acadêmica e experiência militar.
No caso das Américas, eles nada teriam a oferecer ao seu rebanho se este fosse escravizado em massa. Além disso, os índios cristianizados acabavam sendo obrigados a abandonar seu modo de vida tradicional e a realizar trabalhos agrícolas (desonrosos para guerreiros na maioria das tradições indígenas), para o proveito da Companhia de Jesus.
Com os negros, muçulmanos ou animistas, a coisa era diferente. os jesuítas não conseguiam estabelecer bases sólidas nos reinos africanos, mesmo quando conseguiam converter seus líderes. Assim, chegaram até mesmo a receber dízimo "em espécie", escravos, dos seus fiéis e servir em navios negreiros como capelães.

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Re: Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Acauan »

Fernando Silva escreveu:
Acauan escreveu:
Fernando Silva escreveu:Eurípedes escreveu contra a escravidão por volta de 425 a.C. ("Hecuba"), o que mostra que o repúdio a ela não é uma idéia moderna.


Fernando,

Posso estar errado, mas sempre me pareceu que a intenção de Eurípedes era mostrar o aspecto trágico da escravidão e não denunciar a imoralidade desta.

Você poderia ser mais específico a respeito de sua citação?


Tenho estes dois trechos da obra. Alguém poderia alegar que "homem", para ele, significa outro grego ou coisa assim, e não os homens em geral, mas não tenho como saber, só com este trecho.
Entendo que by its nature evil seja uma condenação moral, não um lamento por um acontecimento ruim (que seria o caso se ele lamentasse ter se tornado escravo em vez de ter feito outros escravos dele).

"Slavery... That thing of evil, by its nature evil, forcing
submission from a man what no man can yield to."
[Euripides, "Hecuba," 425 B.C.

"Do we, holding that the gods exist, deceive ourselves
with unsubstantial dreams and lies, while random
careless change and chance alone control the world?"
[Euripides, Athenian Dramatist, 484-406 BC, "Hecuba"]


Bem Fernando,

Me parece que Eurípides de fato quer antes mostrar a natureza trágica da escravidão do que criticar moralmente a prática.

Mesmo os filósofos socráticos, com toda a sua preocupação com o BEM e a justiça, não enxergavam na escravidão algo intrinsicamente mal e injusto.
Platão, em sua utopia A República, é taxativo ao dizer que "o grego ao bárbaro tem o direito de comandar", legitimando a escravidão, desde que não aplicada aos seus iguais, quando então o cativeiro passava a ser visto como a mais torpe de todas as condições humanas.
Em outra passagem de A República, Platão critica violentamente Homero, por conta do trecho de A Ilíada (acho que era) em que Aquiles volta dos mortos para dizer a Ulisses que preferia ser um escravo vivo a ser um homem morto.

Como os livros sagrados do judaísmo, cristianismo e Islã antes regulamentavam a escravidão do que a condenavam - o sétimo dia de descanso deveria ser concedido também aos servos dos judeus, Paulo diz que os cristãos donos de escravos devem tratá-los bem e Mohamed cita várias condições em que o muçulmano deve libertar um escravo como expiação.

No fim, o que toda esta condescendência religiosa com a escravidão produziu foi uma aceitação tácita do escravismo sempre que o ambiente econômico (num sentido não marxista) tendia para o estímulo ao tráfico de homens.
Assim, na Idade Média tem-se um declínio da escravidão de modelo romano, antes pelo fato de o sistema de servidão ser mais adequado à economia agrária feudal do que, necessariamente, como efeito taxativo da cristianização do Império.
Do mesmo modo, a Revolução Industrial fez muito mais pelo fim da escravatura no Ocidente do que a moral cristã, que teve papel importante, principalmente através de militantes abolicionistas cristãos abnegados como os Quakers, mas é fato que estes cristãos abolicionistas tiveram que se opor a outros cristãos e por vezes a várias Igrejas protestantes que defendiam a manutenção da escravatura, valendo-se justamente do argumento que a Bíblia assim o permitia. Nos Estados Unidos da América, após a abolição da escravidão, várias destas igrejas, principalmente do sul, apoiaram o regime de segregação dos negros até os anos 1960.
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Fernando Silva
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Re: Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Fernando Silva »

Acauan escreveu:Platão, em sua utopia A República, é taxativo ao dizer que "o grego ao bárbaro tem o direito de comandar", legitimando a escravidão, desde que não aplicada aos seus iguais, quando então o cativeiro passava a ser visto como a mais torpe de todas as condições humanas.

Assim como o "não matar" dos judeus só se aplicava entre eles.
Acauan escreveu:Nos Estados Unidos da América, após a abolição da escravidão, várias destas igrejas, principalmente do sul, apoiaram o regime de segregação dos negros até os anos 1960.

Na verdade, várias delas se dividiram em duas, a tradicional e a "do sul" (Igreja Batista do Sul, por exemplo).

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Mensagem por Acauan »

Ateu Tímido escreveu:Quanto à questão do cristianismo ser apenas uma doutrina para a salvação da alma, só podemos especular sobre as crenças originais dos cristãos na Roma decadente. Os evangelhos canônicos atuais foram adotados quando a igreja cristã já era apoio importante e "sócia" do poder de Roma. Assim, era conveniente uma doutrina que não interferisse com o poder.


Comentei que o cristianismo original dos Evangelhos era uma doutrina para a salvação da alma, o que pode ser entendido em vários sentidos, em contraposição com a doutrina de Paulo, que lhe dá um direcionamento pragmático visando difundir a nova Fé por todo o Império.

A primeira e mais óbvia diferença entre as duas abordagens é que Jesus de Nazaré converteu muito pouca gente, os judeus continuaram judeus e seus seguidores em vida eram meia dúzia (ou uma inteira) de gatos pingados.
Paulo transformou o cristianismo em uma religião de massas, adotando uma estratégia de divulgação que considerava de modo planejado a realidade política, social e cultural de então.

Como o cristianismo triunfante é o de Paulo, temos dele uma doutrina que contém em sua origem uma estratégia política de expansão, coisa que faltava à de Jesus de Nazaré, ou estava contida nela de modo apenas latente (como na ordenança do "Ide e pregai este Evangelho").
Só que mesmo a estratégia de expansão de Paulo evitava um confronto direto com o Estado Romano.

Quando a Igreja é chamada a ocupar funções burocráticas do Império extinto, apoiou-se no prestígio conquistado por uma organização que cresceu administrando a confiança que populações inteiras depositaram nela, mas ao mesmo tempo tem que encarar a realidade de que não há mais um poder temporal supremo e hostil do qual precaver-se. Este poder temporal lhe estava sendo oferecido de bandeja, por vacância, e é neste momento que a Igreja Cristã começou a acumular contradições que nunca resolveria, nem mesmo com os cismas e a Reforma Protestante.


Ateu Tímido escreveu:Sobre os jesuítas, de fato eram uma tropa de elite fundada por um grupo peculiar de nobres que tinham, ao mesmo tempo, apurada formação acadêmica e experiência militar.
No caso das Américas, eles nada teriam a oferecer ao seu rebanho se este fosse escravizado em massa. Além disso, os índios cristianizados acabavam sendo obrigados a abandonar seu modo de vida tradicional e a realizar trabalhos agrícolas (desonrosos para guerreiros na maioria das tradições indígenas), para o proveito da Companhia de Jesus.
Com os negros, muçulmanos ou animistas, a coisa era diferente. os jesuítas não conseguiam estabelecer bases sólidas nos reinos africanos, mesmo quando conseguiam converter seus líderes. Assim, chegaram até mesmo a receber dízimo "em espécie", escravos, dos seus fiéis e servir em navios negreiros como capelães.


Os Jesuítas chegaram mesmo a desenvolver projetos de engenharia social um tanto esquisitos, como as comunidades indígenas de Missões, que pareciam muito com um tipo de socialismo teocrático prá bugre, do qual felizmente eu fui poupado.
Falando em Missões, é muito significativo destacar as vezes, em várias partes do mundo, em que algum governante chegou à conclusão que a realização de seus projetos políticos devia começar pela expulsão dos Jesuítas dos territórios que comandavam.

Não sei como uma organização com esta História de meter medo em gente grande aceitou em seus quadros um certo padre Oscar González...
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Re: Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Acauan »

Fernando Silva escreveu:
Acauan escreveu:Nos Estados Unidos da América, após a abolição da escravidão, várias destas igrejas, principalmente do sul, apoiaram o regime de segregação dos negros até os anos 1960.

Na verdade, várias delas se dividiram em duas, a tradicional e a "do sul" (Igreja Batista do Sul, por exemplo).


O curioso é que várias denominações evangélicas brasileiras foram fundadas por missionários daquelas Igrejas americanas cujas filiais sulistas eram defensoras aguerridas da segregação racial.

Este passado de conluio das igrejas sulistas com o racismo nunca é citado pelos líderes e defensores destas igrejas no Brasil, que costumam retratar aqueles missionários como benções de Deus enviadas a este país apóstata para livrá-lo da idolatria romanista.
Se o grande número de fiéis brasileiros não brancos daquelas denominações soubesse a opinião que muitos daqueles missionários tinham sobre pessoas da cor delas, pensariam duas vezes antes de se converter.

É vero que o Dr. Martin Luther King Jr. era pastor batista. E do sul.
Mas o simples fato de ele originalmente pregar apenas para congregações exclusivamente negras mostra que o "amor ao próximo" praticado lá deveria ser obrigatoriamente monocromático.
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Mensagem por Ateu Tímido »

Acauan escreveu:Os Jesuítas chegaram mesmo a desenvolver projetos de engenharia social um tanto esquisitos, como as comunidades indígenas de Missões, que pareciam muito com um tipo de socialismo teocrático prá bugre, do qual felizmente eu fui poupado.
Falando em Missões, é muito significativo destacar as vezes, em várias partes do mundo, em que algum governante chegou à conclusão que a realização de seus projetos políticos devia começar pela expulsão dos Jesuítas dos territórios que comandavam.


Acho que ainda falta na historiografia algum estudo mais detalhado sobre as missões jesuítas, especialmente aquelas entre os guaranis. Nem sei se há fontes que permitam uma reconstituição da vida de do governo nesses lugares um tanto esquisitos...
Porém, não há dúvida de que, fossem inferno ou paraíso, as missões existiam principalmente em proveito da "Companhia". Era ela quem administrava a economia "socialista" e também quem usava as missões como "reservatório" de fiéis e até de novos membros.
Os jesuítas, penso, sempre assustaram o poder estabelecido, quando não estavam diretamente associados a ele, por constituírem um "poder paralelo", com organização e coesão internas e uma ampla rede de apoio em todas as sociedades onde atuavam.


Acauan escreveu:Não sei como uma organização com esta História de meter medo em gente grande aceitou em seus quadros um certo padre Oscar González...


No meu tempo de aluno de colégio católico, acho que chamavam isso de "a crise das vocações sacerdotais".
Parece que eles passaram a ficar com o que caísse na rede... :emoticon16:

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Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Ateu Tímido »

Nestes dias, até o dia 12, a HBO e a SKY criaram um canal especial onde estão reprisando todo o primeiro ano da série ROMA.
Achei que valia levantar o tópico!

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Najma
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Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Najma »

Excelente, Bruno! :emoticon7:
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Acauan
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Mensagem por Acauan »

A segunda temporada começou no domingo, 15 de abril, com a história retomada exatamente de onde parou, com o corpo ensanguentado de Caius Julius tombado no chão do senado.

A reconstituição histórica continua primorosa e os personagens cuidadosamente construídos.

Destaque para Brutus, sempre lembrado como um traidor vulgar, uma espécie de Judas pagão, o líder da conspiração contra César é mostrado como um aristocrata em conflito íntimo, pendendo entre sua lealdade moral à República e os interesses mesquinhos por riqueza e poder que o circundam.

Seu contraponto é Marco Antonio, a personificação do pragmatismo, que sem ligar a mínima para os dilemas cívicos que paralisavam Brutus, age pronta e astutamente e reverte a balança do poder que tendia para os conspiradores.

No intermezzo entre eles, Otávio, eleito herdeiro de Caius Julius e que será o futuro imperador Augustus. O menino revela precocemente suas aptidões para a política, estabelecendo o ponto de equilíbrio entre a energia de Marco Antonio e o tradicionalismo de Brutus, que aponta para a derrocada final da República.

Mas o melhor da série continua sendo os personagens populares, raramente detalhados em suas possíveis personalidades pelos livros de História.
Titus Pullo e Lucius Vorinus personificam o que deveria ser a vida do homem comum na capital do Império, ficando em aberto qual será o papel fictício dado aos dois na transição, já que na primeira temporada eles foram habilmente enxertados como protagonistas ocultos de alguns dos mais importantes acontecimentos da época.

Excelente programa, na HBO, domingo, 22h00min.
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Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Ateu Tímido »

Engraçado...
Não me agradou tanto a caracterização de Brutus, que eu sempre vi como um aristocrata orgulhoso, dividido entre a defesa dos seus privilégios de nascimento e a relação pessoal com César; muito embora a história registre também suas atividades ilícitas, descobertas por Cícero nas províncias onde representou Roma, na série, me parece caracterizado como uma espécie de "filhinho da mamãe", um riquinho um tanto frívolo, desde o início da série, até o momento em que, pressionado por Antônio, resolve aceitar um posto menor, fora de Roma.
Gostei também, no episódio inicial da nova temporada, embora pudesse ser mais detalhado, do paralelo entre o funeral de uma pessoa do povo (a mulher de Lúcio Vereno) e um funeral consular (o de César) apresentados ao mesmo tempo.
Continua valendo a pena assistir.

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Re: Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Acauan »

Ateu Tímido escreveu: Engraçado...
Não me agradou tanto a caracterização de Brutus, que eu sempre vi como um aristocrata orgulhoso, dividido entre a defesa dos seus privilégios de nascimento e a relação pessoal com César; muito embora a história registre também suas atividades ilícitas, descobertas por Cícero nas províncias onde representou Roma, na série, me parece caracterizado como uma espécie de "filhinho da mamãe", um riquinho um tanto frívolo, desde o início da série, até o momento em que, pressionado por Antônio, resolve aceitar um posto menor, fora de Roma.


O interessante na caracterização de Brutus é que não fica claro para o expectador se ele realmente acredita que liderou a derrubada de um tirano, se oscila entre se ver como um traidor e assassino ou como um patrício que cumpriu seu dever para com a República ou se simplesmente buscou seus interesses e fingiu tudo o mais.

A questão centra-se na última conversa entre Brutus e Caius Julius, quando este lhe propõe o governo da Macedônia e Brutus o rejeita, por entender a oferta como uma prova de que César não confia nele.
Alguém que fosse apenas corrupto aceitaria de pronto, já que um cargo de governador em uma região vasta como a Macedônia implicava em inúmeras oportunidades de enriquecimento ilícito.

Brutus, na série, tampouco parece querer o poder absoluto, já que em nenhum momento se oferece ou articula para assumir o lugar deixado vago por César.
Se não for ir longe demais, parece que o personagem é apresentado como uma metáfora do patriciado diante do fim iminente da República, quando sentem ruir o mundo que sempre lhes garantiu a segurança, riqueza e poder, sentem que devem fazer alguma coisa, mas ao mesmo tempo percebem que seja o que for que façam será inútil, pois o tempo deles passou.


Ateu Tímido escreveu:Gostei também, no episódio inicial da nova temporada, embora pudesse ser mais detalhado, do paralelo entre o funeral de uma pessoa do povo (a mulher de Lúcio Vereno) e um funeral consular (o de César) apresentados ao mesmo tempo.
Continua valendo a pena assistir.


Não sei sobre a correção histórica da abordagem, mas fica claro a diferença entre a religiosidade sincera com que Vorinus conduz o sepultamento da esposa, observando criteriosamente cada aspecto do ritual, enquanto no serviço fúnebre de Caius Julius a politicagem rola solta entre os poderosos e ninguém está nem aí para a religião.
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Apocaliptica

Re.: Roma, a Religião da República Sagrada

Mensagem por Apocaliptica »

:emoticon8: :emoticon8: :emoticon8: :emoticon8:

Perdi...tópico excelente e série excelente.

Continuo não entendendo porque o cristianismo seria responsável pelos valores aqui citados. Não existiam piedade, empatia, remorso e compaixão antes do cristianismo? E depois dele? Quem não é criado na moral e valores cristãos é incapaz de tais sentimentos? E o mundo não cristão? Também não entendo - e não concordo - com a "religiosidade sincera" se ela for baseada nestes preceitos que não sejam apenas o das perguntas e dores da perda da existência acerca de si mesmo e dos outros seres amados, mesmo aqueles que amamos por serem humanos, não apenas a esposa ou filho , enfim...

Bom, vou dar uma olhada no próximo domingo.

Trancado