"casar virgem"
Enviado: 19 Jun 2008, 07:43
França discute o paradoxo do "casar virgem" em um país que se assume laico
De Octavi Martí
Em Paris
O imbróglio jurídico é de bom tamanho. Primeiro, uma magistrada de Lille (norte da França) aceitou anular, no dia 1º de abril de 2008, o casamento do engenheiro X, de 30 anos, com a enfermeira Y, de 20, em uma cerimônia que havia sido celebrada no dia 26 de julho de 2006. Por que a anulação? Porque "a vida matrimonial tinha começado com uma mentira", uma vez que ela havia ocultado que não era virgem, algo que o esposo considerou "um engano quanto às qualidades essenciais da pessoa." Os noivos eram franceses de religião muçulmana.
As primeiras reações indignadas falaram em "fatwa contra a emancipação das mulheres." Foi o que disse Fadela Amara, a secretária de Estado responsável pela política urbana. A candidata socialista na eleição presidencial de 2007, Ségolène Royal, falou em "humilhação pública de uma mulher", enquanto o defensor público, Jean-Paul Delavoye, considerou a medica "contrária ao laicismo" da república francesa.
Diante disso, a ministra da Justiça, Rachida Dati, optou pela defesa da sentença judicial: "Serve para proteger a pessoa mais necessitada", ou seja, a mulher. E Dati sabe do que está falando, pois ela também recorreu ao artigo 180 do Código Civil -aquele que se refere, genericamente, ao "engano quanto às qualidades essenciais da pessoa"- para anular sua união "com um homem com o qual não tinha nada em comum".
A virgindade é uma "qualidade essencial"? Apenas para os muçulmanos? Para a escritora Fawzia Zouari "pode-se ser ateu ou mórmon e exigir a virgindade", Além disso, ela se pergunta: "E se a noiva não fosse muçulmana? Os jornais teriam dedicado as primeiras páginas ao assunto?" Para o advogado do engenheiro, Xavier Labbée, "O que o meu cliente não perdoa não é que ela não fosse virgem, mas sim a mentira".
Essa é uma das formas de explicar as coisas. Pois o engenheiro X, na noite do casamento, às quatro da manhã, circulou por sua casa, brandindo os lençóis imaculados diante de seus familiares, como prova de que Y não era virgem. E o pai de X devolveu a moça aos seus familiares. Como uma mercadoria avariada, como objeto de desonra. Repudiada.
E num horário mais civilizado, chamou o advogado.
A anulação judicial do casamento desatou uma grande polêmica. Na Assembléia Nacional (a câmara baixa do parlamento francês), a ministra da Justiça foi atacada pela oposição. E Rachida Dati, agressivamente, respondeu aos socialistas, acusando-os de "ter implantado a política dos 'grands frères' ('grandes irmãos', referindo-se a jovens chefes de clãs), que desembocou em guetos e comunitarismo". "Portanto, vocês não podem nos dar lições", acrescentou.
A história não é bem como a ministra a conta: a delegação de controle sobre os bairros problemáticos aos jovens chefes de clãs foi uma iniciativa de Charles Pasqua, ministro do Interior da direita, em meados dos anos 1980 e durante a primeira metade da década de 1990. Mas os resultados estão aí: por exemplo, municípios como os de Lille e Sarcelles aceitaram que suas piscinas tivessem horários reservados "apenas para mulheres". Alguns hospitais, situados em áreas com até 80% de população formada por imigrantes, viram-se obrigados a garantir que apenas médicas tratassem das mulheres. Na cidade de Lyon, dia 9 de setembro de 2006, um muçulmano agrediu fisicamente o ginecologista que atendia à sua esposa grávida. Mas a justiça interveio e Fouad Bem Moussa foi condenado a seis meses de prisão.
A ministra Rachida Dati, apesar das fortes declarações no parlamento, aceitou recuar. A promotoria recorreu da sentença de Lille "porque esse assunto privado entre duas pessoas interessa ao conjunto de cidadãos do país, em especial às mulheres." Sua argumentação poderia ter sido outra sem recorrer a um "alarme social" que ela, com sua virulenta intervenção parlamentar, contribuiu para promover.
Para Sahra Mekboul, criminalista entrevistada pelo jornal "La Croix", "pode-se considerar que o problema da virgindade revela a presença de um outro, o da igualdade entre os sexos. E considerar que, vista a evolução dos costumes, (a virgindade) é uma qualidade obsoleta e discriminatória para as mulheres." O paradoxal é que a sentença de Lille, ao mesmo tempo em que relega a mulher a uma condição inferior à do homem, lhe permite livrar-se dele. Mas é uma possibilidade ou proteção que beneficia muito poucas.
Uma mulher sem estudos, sem patrimônio e com reduzidas expectativas no mercado de trabalho dificilmente poderá repudiar um marido que lhe foi imposto.
O islamismo seja ele mais ou menos radical, mais ou menos retrógrado, explora as brechas da legislação democrática. E em nome da democracia -do direito à diferença se passa à diferença de direitos- exige-se que as meninas muçulmanas não façam ginástica, que não usem o véu, que não saiam sozinhas de casa ou que sua sexualidade fique sob o controle masculino. O juiz de Lille aceitou o pedido de anulação porque X e Y eram muçulmanos. Ele teria levado em conta o fato de pertencerem a uma comunidade diferente da francesa. Uma porta aberta, embora com a melhor das intenções, para a justiça religiosa?
A esposa repudiada
A enfermeira Y é hoje a única vítima da justiça protetora, do esposo integrista e da família convencional. "Primeiro, eu não queria anular o casamento. Depois, aceitei que era a melhor solução, para começar tudo de novo. Agora, todos falam de mim e, além disso, sem que eu peça, recorrem da sentença. Estou indignada", declarou Y a um semanário. Seu advogado manifesta a mesma contrariedade, pois "o divórcio por consentimento mútuo poderia ter sido conseguido em dois meses, mas meu colega preferiu essa encenação degradante".
Todos os anos, na França, são aceitas 700 anulações de casamento, por diversas razões: bigamia, um passado criminoso oculto, impotência sexual e outras. O número de divórcios supera os 150.000. Em nenhum caso a lei contempla a vinculação a uma outra religião -ou a nenhuma- como causa que justifique a modificação do relacionamento entre um casal.
Para o judaísmo as relações íntimas antes do casamento estão proibidas pela halakha (lei judaica) porque o sexo não pode ter outro objetivo além da procriação. O catolicismo não é mais aberto e critica inclusive a "castidade conjugal". O islamismo também exige a "pureza" mas admite o arrependimento quanto aos "deslizes" anteriores ao casamento, se houver a intenção de uma reparação. O integrismo força a interpretação das coisas.
Tradução: Claudia Dall'Antonia
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/ ... u2639.jhtm
De Octavi Martí
Em Paris
O imbróglio jurídico é de bom tamanho. Primeiro, uma magistrada de Lille (norte da França) aceitou anular, no dia 1º de abril de 2008, o casamento do engenheiro X, de 30 anos, com a enfermeira Y, de 20, em uma cerimônia que havia sido celebrada no dia 26 de julho de 2006. Por que a anulação? Porque "a vida matrimonial tinha começado com uma mentira", uma vez que ela havia ocultado que não era virgem, algo que o esposo considerou "um engano quanto às qualidades essenciais da pessoa." Os noivos eram franceses de religião muçulmana.
As primeiras reações indignadas falaram em "fatwa contra a emancipação das mulheres." Foi o que disse Fadela Amara, a secretária de Estado responsável pela política urbana. A candidata socialista na eleição presidencial de 2007, Ségolène Royal, falou em "humilhação pública de uma mulher", enquanto o defensor público, Jean-Paul Delavoye, considerou a medica "contrária ao laicismo" da república francesa.
Diante disso, a ministra da Justiça, Rachida Dati, optou pela defesa da sentença judicial: "Serve para proteger a pessoa mais necessitada", ou seja, a mulher. E Dati sabe do que está falando, pois ela também recorreu ao artigo 180 do Código Civil -aquele que se refere, genericamente, ao "engano quanto às qualidades essenciais da pessoa"- para anular sua união "com um homem com o qual não tinha nada em comum".
A virgindade é uma "qualidade essencial"? Apenas para os muçulmanos? Para a escritora Fawzia Zouari "pode-se ser ateu ou mórmon e exigir a virgindade", Além disso, ela se pergunta: "E se a noiva não fosse muçulmana? Os jornais teriam dedicado as primeiras páginas ao assunto?" Para o advogado do engenheiro, Xavier Labbée, "O que o meu cliente não perdoa não é que ela não fosse virgem, mas sim a mentira".
Essa é uma das formas de explicar as coisas. Pois o engenheiro X, na noite do casamento, às quatro da manhã, circulou por sua casa, brandindo os lençóis imaculados diante de seus familiares, como prova de que Y não era virgem. E o pai de X devolveu a moça aos seus familiares. Como uma mercadoria avariada, como objeto de desonra. Repudiada.
E num horário mais civilizado, chamou o advogado.
A anulação judicial do casamento desatou uma grande polêmica. Na Assembléia Nacional (a câmara baixa do parlamento francês), a ministra da Justiça foi atacada pela oposição. E Rachida Dati, agressivamente, respondeu aos socialistas, acusando-os de "ter implantado a política dos 'grands frères' ('grandes irmãos', referindo-se a jovens chefes de clãs), que desembocou em guetos e comunitarismo". "Portanto, vocês não podem nos dar lições", acrescentou.
A história não é bem como a ministra a conta: a delegação de controle sobre os bairros problemáticos aos jovens chefes de clãs foi uma iniciativa de Charles Pasqua, ministro do Interior da direita, em meados dos anos 1980 e durante a primeira metade da década de 1990. Mas os resultados estão aí: por exemplo, municípios como os de Lille e Sarcelles aceitaram que suas piscinas tivessem horários reservados "apenas para mulheres". Alguns hospitais, situados em áreas com até 80% de população formada por imigrantes, viram-se obrigados a garantir que apenas médicas tratassem das mulheres. Na cidade de Lyon, dia 9 de setembro de 2006, um muçulmano agrediu fisicamente o ginecologista que atendia à sua esposa grávida. Mas a justiça interveio e Fouad Bem Moussa foi condenado a seis meses de prisão.
A ministra Rachida Dati, apesar das fortes declarações no parlamento, aceitou recuar. A promotoria recorreu da sentença de Lille "porque esse assunto privado entre duas pessoas interessa ao conjunto de cidadãos do país, em especial às mulheres." Sua argumentação poderia ter sido outra sem recorrer a um "alarme social" que ela, com sua virulenta intervenção parlamentar, contribuiu para promover.
Para Sahra Mekboul, criminalista entrevistada pelo jornal "La Croix", "pode-se considerar que o problema da virgindade revela a presença de um outro, o da igualdade entre os sexos. E considerar que, vista a evolução dos costumes, (a virgindade) é uma qualidade obsoleta e discriminatória para as mulheres." O paradoxal é que a sentença de Lille, ao mesmo tempo em que relega a mulher a uma condição inferior à do homem, lhe permite livrar-se dele. Mas é uma possibilidade ou proteção que beneficia muito poucas.
Uma mulher sem estudos, sem patrimônio e com reduzidas expectativas no mercado de trabalho dificilmente poderá repudiar um marido que lhe foi imposto.
O islamismo seja ele mais ou menos radical, mais ou menos retrógrado, explora as brechas da legislação democrática. E em nome da democracia -do direito à diferença se passa à diferença de direitos- exige-se que as meninas muçulmanas não façam ginástica, que não usem o véu, que não saiam sozinhas de casa ou que sua sexualidade fique sob o controle masculino. O juiz de Lille aceitou o pedido de anulação porque X e Y eram muçulmanos. Ele teria levado em conta o fato de pertencerem a uma comunidade diferente da francesa. Uma porta aberta, embora com a melhor das intenções, para a justiça religiosa?
A esposa repudiada
A enfermeira Y é hoje a única vítima da justiça protetora, do esposo integrista e da família convencional. "Primeiro, eu não queria anular o casamento. Depois, aceitei que era a melhor solução, para começar tudo de novo. Agora, todos falam de mim e, além disso, sem que eu peça, recorrem da sentença. Estou indignada", declarou Y a um semanário. Seu advogado manifesta a mesma contrariedade, pois "o divórcio por consentimento mútuo poderia ter sido conseguido em dois meses, mas meu colega preferiu essa encenação degradante".
Todos os anos, na França, são aceitas 700 anulações de casamento, por diversas razões: bigamia, um passado criminoso oculto, impotência sexual e outras. O número de divórcios supera os 150.000. Em nenhum caso a lei contempla a vinculação a uma outra religião -ou a nenhuma- como causa que justifique a modificação do relacionamento entre um casal.
Para o judaísmo as relações íntimas antes do casamento estão proibidas pela halakha (lei judaica) porque o sexo não pode ter outro objetivo além da procriação. O catolicismo não é mais aberto e critica inclusive a "castidade conjugal". O islamismo também exige a "pureza" mas admite o arrependimento quanto aos "deslizes" anteriores ao casamento, se houver a intenção de uma reparação. O integrismo força a interpretação das coisas.
Tradução: Claudia Dall'Antonia
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/ ... u2639.jhtm