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Retratos da Epidemia do Crack

Enviado: 09 Jul 2008, 22:54
por Apo
08 de julho de 2008

Assassino aos 11 anos

O menino da zona norte de Porto Alegre tinha 11 anos na noite em que matou seu amigo por causa de uma pedra de crack. Eles estavam a caminho de um semáforo para assaltar motoristas e arranjar dinheiro para a droga. Dominado pela fissura, o amigo tentou tomar à força a pedra do menino.

- Tenta a sorte! - exclamou a criança de 11 anos, puxando o revólver calibre 38.

- Calma, não vou tirar tua grama - recuou.


Quando o mais novo devolveu a arma à cintura, o companheiro pulou sobre ele e arrancou a pedra de suas mãos. Foi na voz aguda de uma criança a caminho da puberdade que ele, agora com 12 anos, relatou, dias atrás, em uma instituição para tratamento de dependentes, o episódio que teria ocorrido há um ano:

- Bati na cabeça dele com um tijolo grande de cimento e com uma garrafa. Estava chapado. Deixei a pedra (de crack) do lado do corpo para a polícia pensar que ele estava usando e que o mataram por isso.

A transformação de uma criança do Cristo Redentor, um bairro de classe média, em um menino de rua que vara as madrugadas consumindo crack e apontando um revólver para a cabeça de motoristas é uma das faces assombrosas da epidemia de crack vivida pelo Estado. O menino usou a droga pela primeira vez dois anos atrás, oferecida por colegas da sua turma de 3ª série, em um colégio estadual.

A pedra de R$ 5 usada em uma praça convulsionou a vida do garoto, então com 10 anos. Largou primeiro a escola, onde tinha boas notas, depois a casa em que vivia com a mãe e o padrasto. Rodava dia e noite pelas ruas, pedindo dinheiro e furtando bolsas ou bicicletas para adquirir a droga.

Foi então que conseguiu ficar pela primeira vez sem o crack, mas só porque a motivação era o crack: ele e os amigos suportaram três dias de abstinência, acumularam R$ 1 mil em furtos e usaram o dinheiro para comprar revólveres e tornar os assaltos mais lucrativos.

- Assaltei muito com o oitão (revólver). Chegava nos carros e mandava o motorista passar tudo. Largava correndo, comprava o bagulho e ia para baixo de um orelhão fumar. Depois voltava para outro assalto. Uma vez assaltei um brigadiano. Ele implorou para não o matarmos. Dei um chute nele e deixei que fosse.

Hoje, o menino que matou o amigo é assombrado por ele em alucinações e pesadelos. No primeiro semestre deste ano, internou-se.

- Vi que não ia conseguir e disse: "Pai, me interna de novo". A vida que eu passei ninguém teve igual. Não quero voltar para a pedra.


Opinião

Christian Nedel, delegado do Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (Deca)

"Nossas ocorrências mais típicas envolvem o crack, que já é usado por crianças de nove, 10 anos. É o que os adolescentes que apanhamos em flagrante por algum delito usam hoje. Cocaína e maconha caíram bastante. De três anos para cá, é uma droga que está muito associada a casos de crime patrimonial e a situações de exploração sexual."

zerohora.com

Re: Retratos da Epidemia do Crack

Enviado: 09 Jul 2008, 23:00
por Apo
Menina virou avião aos nove anos


Uma criança de nove anos percorre Eldorado do Sul para entregar cosméticos.

A cena é um disfarce. As embalagens da Avon estão cheias de crack. A artimanha dos traficantes para distribuir a droga ainda atormenta a garota, hoje com 15 anos. Ela sofre de esquizofrenia, fruto do trauma, e enfrenta internações por causa da fissura. Na infância, era drogada para agir conforme a vontade dos criminosos.

- Eu ficava loucona e só pensava em sair para a rua e fazer besteira - conta.

A menina caiu nas garras dos traficantes depois de perder a mãe e de o pai ser preso por matar o filho. Libertou-se aos 12 anos, no dia em que as caixas da Avon caíram num riacho. Ameaçada, procurou socorro no colégio.

Re: Retratos da Epidemia do Crack

Enviado: 09 Jul 2008, 23:03
por Apo
O corpo e a vida por uma pedra

A primeira vez da adolescente da Vila Elizabeth, na zona norte de Porto Alegre, foi com um traficante. O segundo homem era quatro décadas mais velho e pagou R$ 40 pelo sexo feito dentro do carro em uma rua da Capital. Nas duas ocasiões, a menina de classe média cedeu o corpo, o único bem que ainda restava, para saciar o desejo por crack.

Enquanto os garotos encontram no crime a saída para sustentar o vício, meninas como ela, que hoje têm 15 anos, estão buscando no sexo os meios para comprar as pedras que lhes oferecem um instante de alívio. O resultado é a multiplicação das zonas de prostituição nas maiores cidades do Estado. Profissionais engajados no atendimento das usuárias de crack afirmam que já escasseiam as que nunca fizeram programa. Na fissura, aceitam droga como pagamento e se arriscam sem preservativo.

A Casa Marta e Maria, da Capital, que trata dependentes químicos do sexo feminino, é um bom local para avaliar a expansão do problema: o crack virou onipresente. As 20 internas, com idades de 12 a 25 anos, já usaram a pedra.

- A maioria admite ter passado pela exploração sexual - revela a irmã Genési Guedes, coordenadora da casa.

A adolescente de 15 anos da Zona Norte estava até duas semanas atrás na instituição, mas foi excluída por problemas de comportamento. Sua trajetória ilustra a derrocada pessoal que leva do crack à degradação. Enquanto a mãe e o padrasto trabalhavam, ela permanecia em casa, usando maconha. Um dia, aos 12 anos, o vizinho e melhor amigo ofereceu crack.

- Dei um pega e enlouqueci. É uma pedra deste tamanhinho, mas te domina - conta.

Com 13 anos e um histórico de abandono da escola, alucinações, furtos e venda de suas roupas, foi internada pela mãe. Conseguiu fugir, louca por crack e sem dinheiro. Foi parar na casa do traficante, com quem se iniciou sexualmente:

- Fiquei duas semanas lá, por causa da droga. Passava o tempo todo só usando, sem dormir. No final, a gente nem tinha tanta relação.

Depois de fugir da boca-de-fumo e de ser perseguida e ameaçada pelo traficante até ele ser assassinado com sete tiros e uma pedrada na cabeça, há cerca de um ano, a adolescente encontrou abrigo na residência de uma amiga que se prostituía pelo crack. Sem dinheiro para a droga e estimulada pela outra, vestiu roupas curtas e seguiu para a Rua Voluntários da Pátria em uma noite de chuva. Embarcou no carro de um homem de mais de 50 anos.

- Odeio contar essa parte. Eu tinha 13 anos. Foi dentro do carro, em um lugar escuro. Eu não sabia como fazer e fiquei encabulada. Caí no choro e disse que não conseguia fazer. Ele gritou comigo. Tive muito nojo. Mas peguei os R$ 40 e fui comprar a droga.

O aparecimento de um exército de meninas como a adolescente de 15 anos provocou uma reviravolta nos pontos de prostituição. As novatas, chamadas de "pedreiras" pelas mais antigas, circulam como zumbis nos arredores da Rua Voluntários da Pátria, na Capital, às vezes fumando a pedra entre um programa e outro. Para as que não se drogam e estão no ofício há mais tempo, a invasão das meninas do crack significou declínio no número de clientes e no preço. As pedreiras topam sexo sem camisinha por R$ 5 ou R$ 10. Ou por uma pedra.

- Os clientes querem a mesma coisa, mas a gente está aqui para ganhar a vida - reclama uma prostituta de 23 anos.

Outra novidade trazida pelas pedreiras foi a violência. Viraram rotina meninas chapadas se arrastando no chão ou chorando por terem sido agredidas por um cliente. No dia 10 de maio, uma pedreira de 23 anos foi baleada nas costas por um cliente, depois de uma discussão sobre o local do programa. Ela estava havia 72 horas sob efeito do crack. No Hospital de Pronto Socorro, uma semana depois, prometeu em entrevista a Zero Hora deixar o vício e a prostituição para trás.

- Esse tiro estragou um pouco a minha vida, mas veio para me ajudar a ter vergonha na cara. Daqui, vou direto para a casa da minha mãe - planejou.

A garota morreu no dia 12 de junho, no hospital.


http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/

Re: Retratos da Epidemia do Crack

Enviado: 09 Jul 2008, 23:06
por Apo
A epidemia do crack: Droga responde por 60% das internações de crianças no São Pedro

* Há dois anos, índice era seis vezes menor
Itamar Melo e Patrícia Rocha


O crack se aninhou entre os brinquedos e os personagens de desenho animado que enfeitam a ala infantil do Hospital Psiquiátrico São Pedro, na Capital. A maioria das crianças internadas nos 10 leitos do serviço, especializado em menores de 12 anos, é de viciados na pedra. Há dois anos, a droga respondia por 10% das internações infantis. O índice já passa de 60% - o equivalente a mais de 70 crianças atendidas ao ano.

O São Pedro virou termômetro do avanço do crack sobre a infância gaúcha. Na semana passada, a instituição recebia pela segunda vez um dependente de oito anos, que costumava ganhar droga da mãe quando reclamava de fome. A primeira internação dele havia sido aos sete. Outro paciente, de 11 anos, estava na quinta internação desde 2005 e exibia um histórico de roubos e fugas de albergues para perseguir a pedra. O processo acelerado de infantilização do crack assombra conselheiros tutelares, profissionais da saúde e autoridades da segurança pública.

- O crack tem uma capacidade destruidora enorme em qualquer pessoa, mas em uma criança ele é uma catástrofe. O que testemunhamos me faz temer pelo futuro dessa geração - alerta Jacinto Saint Pastous Godoy, diretor da Clínica São José.

Os danos neurológicos são severos quando o crack age sobre um organismo em formação. No caso de um morador de Bento Gonçalves que começou a fumar aos oito anos e hoje tem 17, os efeitos se traduziram na perda da capacidade de articular palavras e na lentidão extrema da fala.

- Fiquei muito seqüelado. Tenho um problema na cabeça que não me deixa aprender. Nem ler eu sei - conta, sílaba por sílaba.

A queda no vício arrasa com a infância. No São Pedro, no quarto guarnecido por uma cortina enfeitada com cães, uma menina de 11 anos da zona sul da Capital precisa esconder o rosto na blusa para encontrar coragem de falar sobre a droga.

- Um amigo ofereceu, e fumei com 10 anos. Quem usa não pensa em outra coisa. Vendi roupa minha para comprar - diz ela, filha de papeleiros, com sete irmãos e três internações num ano.

Em uma sala ao lado, excitado com os brinquedos na estante, do qual não afasta os olhos, um menino de sete anos garante que nunca fumou, depois que foi só uma vez e afinal reconhece o uso:

- Não gosto de pedra, porque morre na hora.

Ele vivia na rua com a mãe, também usuária e procurada por tráfico, segundo os registros do hospital. Contou que experimentou a pedra pelas mãos de um amigo de 11 anos que conheceu na rua e a quem acabou reencontrando na ala infantil do São Pedro. O mais velho foi internado por ter sido apanhado usando e vendendo crack. Estava habituado a presenciar a mãe fumando.

- Depois que a pessoa usa crack pela primeira vez, tenta parar, mas não consegue. Ele vai direto para o cérebro - relata a criança de 11 anos.

Famílias esfareladas como a dos dois amigos são a rotina no setor infantil do São Pedro. A técnica em enfermagem Patrícia Barata Moraes conta que os pequenos dependentes chegam agressivos e desnutridos, mas mudam rápido:

- Depois de duas semanas, viram crianças de novo. Não querem mais ir embora. Aqui tem comida, carinho, adulto cuidando deles e limites, coisas que eles nunca tiveram em casa.

É nos bairros de periferia que as crianças do crack estão sendo produzidas em série. A pedra é o motor que, aos 10 anos, pôs fim antecipado à infância de um menino de uma vila miserável da zona norte da Capital e transformou-o em um problema social de perspectivas sombrias. Ele vem de uma família de 10 irmãos. A mãe é papeleira. O pai está preso por tentar estuprar uma das filhas.

- Dei um pega só e não consegui mais parar. Comecei a roubar, mas só de burguês. Entrava nas casas e levava tudo. Enriqueci o patrão (o traficante) enquanto me afundava - constata.

O menino tem o rosto deformado por uma surra. Em três anos sob o domínio do crack, varou semanas na rua, deixou a escola, foi pedinte, furtou e viu um amigo dependente ser morto a tiros. Saiu das ruas três meses atrás, quando furtou uma máquina de lavagem de carros. Na loucura da necessidade, voltou horas depois ao lava-jato. Foi apreendido pela polícia e internado. Agora, sonha:

- Quero fazer tratamento, chegar à minha casa, sentar e conversar direitinho com a minha família.

http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora ... 030872.htm