Parecer jurídico sobre pastores que prometem curas: fraude

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Fernando Silva
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Parecer jurídico sobre pastores que prometem curas: fraude

Mensagem por Fernando Silva »

http://ceticismo.net/2008/07/21/jesus-faz-tudo/
Jesus ‘faz-tudo’

Caríssimos leitores!

Pouco entendo de ‘regionalismos’, mas aqui, em Sampa, ‘Faz-Tudo’ é aquela pessoa que, estando desempregada ou não tendo profissão, vive de ‘bicos’ (pequenos trabalhos de consertos, como trocar o chuveiro, arrumar encanamentos, et e all). Pois parece que surgiu uma ‘variação do tema’, made in Igreja “Deus é Amor”, apresento aos senhores, o inédito ‘JESUS FAZ-TUDO’.

Como diria a Chiquinha: ‘Pois sim, pois sim, pois sim!’. Recebi, nas dependências de uma unidade da Secretaria do Tribunal de Justiça, um panfleto (clique nas imagens para vê-las em tamanho maior) que anuncia a nova função do Sinhô G-zuis.

O que achei curioso no panfleto é que ele seguiu a mesma linha da IURD, coisa que não havia observado anteriormente (ao menos aqui em Sampa). Isso me fez pensar que Davi Miranda resolveu ‘jogar pesado’ e torpedear os fiéis com as mesmas armas do cunhadinho ‘Pedágio’ (não conhecem a piada? ‘G-zuis é o caminho, Edir Macedo é o pedágio).

Se não bastasse a ‘teologia da prosperidade’, que leva muitos vendidos fiéis a ingressarem nas Igrejas em busca de coisas materiais (ué…não são os ricos que NÃO irão para o céu?), Davi Miranda resolveu agora aderir ao charlatanismo! É o fim do picadinho!

Vejamos o que diz o panfleto:
Incrível ele faz tudo: ele faz paralítico andar, mudo falar e todo tipo de milagre! Ele é Jesus.Estas são algumas das milhares de muletas, cadeiras de rodas, e aparelhos ortopédicos de pessoas que foram curadas por Jesus, através do Missionário David Miranda’

Esse texto, da forma como elaborado, induz os leitores a crerem que serão curados pela intervenção do Missionário, que intervém perante Jesus, que….ah…sei lá onde isso vai dar!
Isso é charlatanismo, que significa:

Charlatanismo é a prática do charlatão, palavra que deriva do italiano ciarlatano, que seria, segundo alguns, corruptela de cerretano (ou seja, natural de ou oriundo de Cerreto, vila situada na Umbria, Itália), e segundo a maioria, derivada de ciarla, ciarlare (de “falar”, “conversar”, neste caso seria equivalente, em português, a “parlapatão” – pois denota o uso da palavra para ludibriar outrem. Em outros idiomas o charlatanismo adquire a acepção de exercício ilegal da medicina, ao passo que em português tem significado comum de vendedor de substâncias pretensamente medicinais, curativas, que apregoa com vantagens. Em sentido geral e vulgar, portanto, o charlatanismo pode ser definido como toda prática pseudo-científica, apregoada por alguém com vantagens para si, pecuniárias ou não, ludibriando a outros.

Traduzindo para o juridiquês:
Estelionato. Artigo 171 CPenal: Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento. Pena, reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.Parágrafo 1º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor o prejuízo, o juiz pode aplicar a pena conforme o disposto no artigo 155, parágrafo 2º….
Charlatanismo Artigo 283 do CPenal.Inculcar ou anunciar cura por eio secreto e infalível. Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.

Exercício Ilegal de Profissão ou Atividade Art. 47 das Leis das Contravenções Penais: Exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício.Pena. prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses, ou multa.

A conduta do agente (David Miranda) encaixa-se no tipo legal? Sim, pois ele promete a cura de pessoas doentes e essa atividade é inerente ao exercício da medicina. E promete isso com o intuito de obter as vantagens que virão do ingresso de dita pessoa no rol de contribuintes do dízimo. Salientando que o crime previsto no 283 é crime de mera conduta (similar à invasão de propriedade, que se consuma com a invasão, o crime de charlatanismo se consuma somente com o anúncio de cura, não é preciso que alguém use os serviços do charlatão).

Só uma informação complementar: as penas não se somariam. Em Direito Penal há um ditadinho ‘peixe maior engole o peixe menor’, usado para explicar como uma conduta penal (crime), se usado para a persecução de outra conduta (também tipificada como crime), prevalece a de pena maior (neste caso específico, o de estelionato)¹.
Como diria meu Amigo Capitão Nascimento do Ceticismo (André): safadeza da grossa!

Ou não? Até hoje não vi uma única prova (e olha que eles dizem que os milagres se somam às centenas) de uma genuína cura pela fé: nunca vi nenhum periódico científico que publicasse tal feito (que seria mui digno de nota).

Mas certamente ainda haverão aqueles que dirão que a religião está fora do alcance da punição, a estes eu colaciono, como resposta, uma jurisprudência contrária. Ei-la:

…Previstos nos artigos 283 e 284 do Código Penal, o charlatanismo e o curandeirismo, punidos pelo só fato de o agente anunciar curas ou prescrever substâncias – independentemente de ‘morder’ dinheiro – atuam como verdadeiros crimes-meios, através dele (posicionando-se pois, como verdadeiro ardil tipificador de ilícito mais grave) se chegando ao delito-fim do artigo 171, configurado pela ‘mordida’ efetivamente havida. Havendo delito mais grave, nele ficarão absorvidos” (RT 698/357).

…Responde por estelionato o agente que, mediante remuneração, se propõe a ‘tirar mal do corpo’, valendo-se de passes, gestos cabalísticos e palavras rituais. Eventual curandeirismo decorrente é de se ter, na espécie, por absorvido pelo delito contra o patrimônio” (JTACRIM 44/359).

…Curandeirismo. Delito caracterizado. Acusados que prescreviam medicamentos e passes aos que os procuravam em seu centro espírita para consultas. Recebimento de dinheiro em pagamento destas. Defesa consistente em caráter religioso de tais atos, essenciais ao culto que exerciam. Improcedência. Condenação mantida. Inteligência do art.284 do Código Penal. A ratio essendi da punição dos curandeiros está justamente na repressão ao perigo que representa o desvio, por eles propiciado, daqueles que deveriam buscar um médico, para uma consulta regular, entravando o processo de cura, pelo retardamento e tornando impossível, às vezes, a recuperação da saúde” (RT 368/354).

….Fraude no recebimento de vantagem indevida por atividades místicas. JTACRIM: Tipifica estelionato pedido e recebimento de vantagem como contraprestação de serviços de macumba para neutralizar trabalho que teria sido providenciado por desafeto com o objetivo de ser a vítima atropelada ” (JTACRIM 56/339)
Considerando que o Ceticismo.net prima pela acuária, informamos que existem posições contrárias: RT 534/405, JTACrim 54/312 JTACrim 2/48, entre outras.

Neste ponto tenho de concordar com Richard Dawkins que em seu livro “Deus, um delírio” questiona quais os motivos a religião possui tamanho respeito por nossa Sociedade. Parafraseando-o, pergunto quais seriam os motivos que levam uma conduta típica como essa sujeitar todas as pessoas à pena, exceto os religiosos?

Estamos ou não num Estado laico? Um exemplo disso foi o que ocorreu num caso aqui também relatado, das meninas que eram mantidas em cárcere privado para fins libidinosos por uma denominação religiosa.

Oras! No momento daquela postagem pensei: se a poligamia nos EUA é prática proibida por lei, porquê então basta que o cara faça parte de uma religião (que pregue a poligamina) e está ele isento de pena? Se isso for correto, então se alguém desejar cometer um crime, basta que antes crie uma religião, estabeleça o comportamento (tipificado como crime pela lei) como dogma e pronto! Estará autorizado à praticar a conduta à vontade! Absurdo! Como entendo absurdos os argumentos de ‘objeção de consciência’ quando utilizados para escapar ao cumprimento da lei!

Só para finalizar: os panfletos foram colocados num balcão de atendimento de uma unidade da Secretaria do Tribunal de Justiça, sendo certo que quaisquer manifestações religiosas e/ou políticas nestes recintos são proibidas.

Claro que os seguranças não perceberam quem foi o ‘pai’ da proeza (se o público ou se algum funcionário) e a conduta não surtirá quaisquer efeitos para o ‘delinqüente’. Enfim, como diz um amigo: nosso Estado não é laico, é laika.

Trancado