A (primeira) descoberta do DNA

Fórum de discussão de assuntos relevantes para o ateísmo, agnosticismo, humanismo e ceticismo. Defesa da razão e do Método Científico. Combate ao fanatismo e ao fundamentalismo religioso.
Avatar do usuário
Apo
Mensagens: 25468
Registrado em: 27 Jul 2007, 00:00
Gênero: Feminino
Localização: Capital do Sul do Sul

A (primeira) descoberta do DNA

Mensagem por Apo »

A (primeira) descoberta do DNA

Alysson Muotri em 29 de Agosto de 2008 às 12:01

São realmente poucos os que lembram quem descobriu o DNA. Mesmo entre biólogos moleculares, é difícil encontrar um que saiba. Acho que a razão disso foi o tremendo impacto que a estrutura da molécula, revelada por Watson e Crick na década de 1950, trouxe para a biologia. O descobrimento da estrutura do DNA ocultou por completo a história de sua própria descoberta, 75 anos antes.

Foi em 26 de fevereiro de 1869 que o suíço Johann Friedrich Miescher escreveu uma carta para seu tio relatando sua nova descoberta, na Universidade de Tübingen, na Alemanha. Friedrich, como era conhecido, descobriu uma substância que estava presente no núcleo de todas as células, e que possuía uma característica química diferente das proteínas ou outro componente celular conhecido. Sem saber do valor desse achado, o jovem médico iniciou uma das maiores revoluções científicas, que, anos mais tarde, iria mudar completamente a compreensão do conceito de vida, além de promover inúmeros avanços médicos.

Friedrich nasceu numa família de cientistas, em 1844, e foi exposto desde cedo a conceitos e debates científicos. Nesse contexto, não foi novidade que ele desenvolvesse uma atração pelas ciências naturais. Mas, como era costume na época, Friedrich formou-se médico primeiro, aventurando-se depois na ciência básica, principalmente na bioquímica. Essa inclinação foi influenciada por um tio, professor de fisiologia na Universidade de Basiléia, na Suíça, que acreditava que as questões relacionadas com o desenvolvimento dos tecidos somente seriam resolvidas com base química.

Friedrich começou a trabalhar sob a supervisão de um famoso químico na época, Felix Hoppe-Seyler, que o encarregou de caracterizar a composição química das células. A idéia era utilizar linfócitos, células do sistema imune que estão presentes no sangue, usadas no laboratório de Hoppe-Seyler. Infelizmente, era difícil conseguir grandes quantidades desse tipo celular para análises químicas. Friedrich decidiu então tentar leucócitos, outra célula do sangue, que ele conseguia em abundância no pus. As células eram isoladas de curativos purulentos de um hospital da cidade (lembre-se de que não haviam anti-sépticos, e o que não faltava era machucado cheio de pus!).

Depois de padronizar as condições para isolar células, Friedrich começou a caracterizar as proteínas. Logo percebeu que a complexidade protéica era enorme. Como muitos na época, ele acreditava que entenderia como a célula funcionava caracterizando a diversidade protéica. Numa de suas tentativas, Friedrich descobriu uma substância com propriedades únicas: conseguiu precipitá-la com ácidos e, ao ser dissolvida novamente, tornava a solução alcalina. Essa deve ter sido a primeira purificação de DNA da história. Mais interessante ainda, a substância parecia estar totalmente localizada no núcleo celular, uma estrutura de intenso debate científico naquele momento. Friedrich batizou o novo composto de “nucleína”. Vale lembrar que, mesmo sem saber qual a real função do núcleo da célula, outro biólogo alemão, Ernst Haeckel, já havia proposto que ele continha os fatores da hereditariedade. Isso três anos antes da descoberta de Friedrich.

Essa discussão toda sobre o núcleo celular estimulou Friedrich a aprimorar os métodos de purificação da nucleína. Conseguiu isso digerindo os lipídeos com álcool e as proteínas com pepsina, uma enzima que degrada proteínas, abundante no estômago de porcos. Pois é: lá foi ele isolar pepsina e, tratando a nucleína, demonstrou que realmente a substância não era mesmo de origem protéica. A caracterização química da nucleína revelou que ela continha carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio, além de grandes quantidades de fosfato (algo raro nas moléculas orgânicas caracterizadas na época). Com isso, Friedrich se convenceu que tinha em mãos algo original. Próximo passo: publicação!

Quando o manuscrito de Friedrich ficou pronto, ele já estava num outro laboratório. Mesmo assim, decidiu que publicaria os achados na revista científica cujo editor era Hoppe-Seyler, seu antigo supervisor. Ironicamente, Hoppe-Seyler decidiu não publicar os resultados da pesquisa antes de comprovar por si próprio os achados de Friedrich. Essa atitude ocorreu porque naquele momento, o laboratório de Hoppe-Seyler estava sob suspeita, pois outros experimentos não estavam sendo duplicados. Além disso, o fato de Friedrich ter sido um ex-aluno fez com que Hoppe-Seyler fosse ultra-rigoroso com o trabalho.

Pra piorar, os resultados iniciais de Hoppe-Seyler não replicaram totalmente os achados de Friedrich. Obviamente, as condições ideais tinham que ser restabelecidas, e isso levaria tempo. Levou quase dois anos! Em 1871 o trabalho foi finalmente publicado, com um título nada atraente: “Composição química das células do pus”. No mesmo jornal, dois outros artigos de Hoppe-Seyler, confirmando a descoberta e purificando a nucleína em outros tipos celulares de diferentes espécies, foram publicados. Agora com seu próprio laboratório, Friedrich tinha que competir com Hoppe-Seyler, que se interessou em continuar as pesquisas com a nucleína. É incrível como essas histórias são tão atuais!

Enfim, Friedrich não desanimou e decidiu estudar a nucleína nas células germinativas (como os espermatozóides e os óvulos), afinal ele tinha grande interesse em hereditariedade e desenvolvimento dos tecidos. Logo percebeu que o esperma era rico em nucleína e, portanto, uma ótima fonte para seus estudos bioquímicos. Friedrich aproveitou-se do fato de estar perto de uma companhia que pescava e comercializava salmões. Tinha acesso a salmões frescos e começou a usar esperma de salmão como fonte de nucleína, aprimorando rapidamente seus protocolos de isolamento.

Vale notar que nessa época, aconteciam intensos debates na comunidade científica sobre como o embrião se desenvolvia e como funcionava a hereditariedade. Num de seus artigos, Friedrich escreveu que a nucleína poderia ser um dos responsáveis pelo processo de fertilização, mas não acreditava que seria capaz de transmitir características hereditárias. Como a maioria naquela época, Friedrich estava convencido que as proteínas eram responsáveis pela hereditariedade.

Chegou a especular que as diferenças atômicas entre as proteínas poderiam gerar a diversidade esperada para todas as formas de vida. Foi mais além, dizendo que, durante o desenvolvimento embrionário, a fusão da informação das duas células germinativas eliminaria eventuais erros nas proteínas. Essa visão parece antecipar o conceito genético de alelo, onde um gene defeituoso do pai pode ser compensado pela presença do gene correto da mãe e vice-versa.

A continuação das pesquisas de Friedrich foi intensa, e eu precisaria de uma outra coluna só pra falar dela. A determinação dele como cientista foi notável, mas foi também responsável pela sua morte. Ficava cada vez mais tempo no laboratório, isolado socialmente, dormindo pouco e exausto, até que contraiu tuberculose. Morreu com apenas 51 anos. Após sua morte, seu tio e admirador publicou uma compilação de seus trabalhos. E[/img]screveu na introdução que os achados de Friedrich não seriam esquecidos com o tempo, mas que suas idéias seriam sementes para futuros frutos científicos. Mal sabia ele…


PS: Segue um protocolo simples para a extração do DNA usando produtos de cozinha. O principio ainda é bem parecido com o de Friedrich.


Imagem
Imagem

Trancado