Religião e Jornada nas Estrelas
Enviado: 16 Set 2008, 15:02
Religião e Jornada nas Estrelas
Postado originalmente em 27/8/2003 14:37:54
Por Acauan
Na minha enorme lista de desavenças com o fundamentalismo cristão, uma é bastante pitoresca: aqueles chatos quase forçaram o cancelamento da série clássica Star Trek, nos anos sessenta.
O motivo? O de sempre, a obsessão fundamentalista em apontar o demônio em qualquer coisa com a qual não simpatizem.
No caso de Jornada nas Estrelas foi ainda mais fácil, já que as pontiagudas orelhas do primeiro oficial e oficial de ciências Spock compunham um visual perfeito, para os que vêem um Satã em cada esquina.
A caipirada carola americana não conseguiu tirar a Enterprise da programação, mas a oposição das igrejas influenciou alguns espisódios, particularmente aqueles onde os temas Deus e religião eram tratados, sempre de forma sutil e indireta, ficando claro que os roteiros foram revisados de modo a não cutucar com vara curta as onças cristãs.
Esta situação é perfeitamente visível no episódio 33 “Who Mourns for Adonais”, do segundo ano da série, exibido pela primeira vez em 1967.
Na história, a NCC 1701 USS-Enterprise se depara com um ser poderoso, que se apresenta como o deus greco-romano Apolo. A auto-proclamada divindade aprisiona a nave e exige que a tripulação o adore, oferecendo em troca uma vida paradisíaca, onde todas as necessidades deles seriam supridas pelos poderes do deus.
O capitão James T. Kirk, claro, recusa a oferta e, claro, encontra um modo de vencer Apolo e libertar a nave e a tripulação.
O ponto alto do episódio é quando um dos tripulantes considera a possibilidade de aceitarem a oferta de Apolo, já que o mesmo estava disposto a fazer de tudo para agradar a seus adoradores. Kirk responde que a oferta do deus nada mais era do que a escravidão, uma escravidão cheia de benesses, mas que mesmo assim, ainda era a escravidão.
É fácil traçar um paralelo com o Deus e o paraíso cristão, no qual a vida eterna é oferecida em troca da servidão e submissão, também eternas.
O legal é que Kirk não tenta explicar porque uma escravidão paradisíaca seria ruim, a explicação é desnecessária, ser um escravo, mesmo um escravo de Deus, é ruim e ponto final. Um espírito livre, na terra ou no céu, jamais enxergará grandeza na servidão.
No final do episódio, o que poderia ter sido uma grande frase do capitão sofre uma indesejada emenda. Diante de um Apolo vencido e inconformado pela recusa à sua generosa oferta, Kirk diz: “Crescemos. A Humanidade não precisa mais de deuses.”
Era para terminar aí, só que alguém deve ter dado um toque ao roteirista, avisando do bafafá que a crentalhada faria se ouvisse isto na TV, e então foi acrescentada a fala “um só já é o suficiente.”
Eu ignoro a emenda e fico com o soneto.
Detalhe: Em “Who Mourns for Adonais”, ao ser questionado sobre a possibilidade do ser alienígena ser o mesmo Apolo da mitologia clássica, Spock responde que, se viajantes do espaço, dotados de grandes poderes, visitassem a Terra naquela época, certamente seriam tidos como deuses.
Exatamente o tema central do livro “Eram os deuses astronautas”, que Erich Von Daniken publicaria no ano seguinte ao da exibição do episódio.
Outro interessante é o episódio 43, “Bread and Circuses”, também do segundo ano, em que Enterprise e tripulação vão parar num planeta com uma civilização idêntica à da Terra dos anos sessenta, só que, ali, o Império Romano nunca caiu e tornou-se uma sociedade semelhante à americana, com algumas diferenças, como os jogos de gladiadores transmitidos pela TV.
A história é uma auto-sátira da televisão, já que em um dos combates mortais transmitidos ao vivo, o centurião ameaça matar os lutadores se os índices de audiência cairem.
Seguindo paralelo à sátira central, colocaram no enredo umas figurinhas meio ridículas, os “adoradores do sol”, que pregavam uma nova religião que se opunha à violência institucionalizada do Império.
Claro que os tais adoradores do sol representavam os cristãos primitivos, que no mais a mais, não tinham a menor graça quando comparados com os divertidos romanos futuristas.
Como não podia deixar de ser, no final vêem as concessões às sensibilidades religiosas, quando fica claro que os tais “adoradores do sol” vencerão o Império e a tenente Ohura diz que eles não adoravam a estrela, mas o “sol de Deus”... Depois que ela diz isto, toda a tripulação da ponte faz cara de bobo e o episódio acaba. Uma pena.
Mas tem o episódio 38, “The Apple” que eu considero uma vingança dos produtores da série contra os fundamentalistas.
É quando Kirk encontra uma raça de alienígenas que adoram um deus chamado Vaal e vivem para alimenta-lo e obedece-lo. O capitão descobre que Vaal é uma máquina, que mantinha os humanos escravizados há gerações, obrigando-os a fornecer a ele os combustíveis de que precisava para continuar funcionando.
Kirk, é claro, destrói Vaal e liberta os aliens, que não tem a menor idéia do que fazer com a liberdade recém obtida.
Acho que todo mundo entendeu as outras interpretações que podem ser dadas ao deus Vaal.
No final de “The Apple” temos a cereja do sundae, numa daquelas conversas na ponte, que encerravam os episódios:
Kirk: - Há alguém a bordo desta nave, que lembre remotamente Satã?
Spock: - Não estou a par de ninguém que corresponda a esta descrição, capitão.
Kirk: - Sim, sr. Spock, eu imaginei que o senhor não estaria.
Sutil.
Postado originalmente em 27/8/2003 14:37:54
Por Acauan
Na minha enorme lista de desavenças com o fundamentalismo cristão, uma é bastante pitoresca: aqueles chatos quase forçaram o cancelamento da série clássica Star Trek, nos anos sessenta.
O motivo? O de sempre, a obsessão fundamentalista em apontar o demônio em qualquer coisa com a qual não simpatizem.
No caso de Jornada nas Estrelas foi ainda mais fácil, já que as pontiagudas orelhas do primeiro oficial e oficial de ciências Spock compunham um visual perfeito, para os que vêem um Satã em cada esquina.
A caipirada carola americana não conseguiu tirar a Enterprise da programação, mas a oposição das igrejas influenciou alguns espisódios, particularmente aqueles onde os temas Deus e religião eram tratados, sempre de forma sutil e indireta, ficando claro que os roteiros foram revisados de modo a não cutucar com vara curta as onças cristãs.
Esta situação é perfeitamente visível no episódio 33 “Who Mourns for Adonais”, do segundo ano da série, exibido pela primeira vez em 1967.
Na história, a NCC 1701 USS-Enterprise se depara com um ser poderoso, que se apresenta como o deus greco-romano Apolo. A auto-proclamada divindade aprisiona a nave e exige que a tripulação o adore, oferecendo em troca uma vida paradisíaca, onde todas as necessidades deles seriam supridas pelos poderes do deus.
O capitão James T. Kirk, claro, recusa a oferta e, claro, encontra um modo de vencer Apolo e libertar a nave e a tripulação.
O ponto alto do episódio é quando um dos tripulantes considera a possibilidade de aceitarem a oferta de Apolo, já que o mesmo estava disposto a fazer de tudo para agradar a seus adoradores. Kirk responde que a oferta do deus nada mais era do que a escravidão, uma escravidão cheia de benesses, mas que mesmo assim, ainda era a escravidão.
É fácil traçar um paralelo com o Deus e o paraíso cristão, no qual a vida eterna é oferecida em troca da servidão e submissão, também eternas.
O legal é que Kirk não tenta explicar porque uma escravidão paradisíaca seria ruim, a explicação é desnecessária, ser um escravo, mesmo um escravo de Deus, é ruim e ponto final. Um espírito livre, na terra ou no céu, jamais enxergará grandeza na servidão.
No final do episódio, o que poderia ter sido uma grande frase do capitão sofre uma indesejada emenda. Diante de um Apolo vencido e inconformado pela recusa à sua generosa oferta, Kirk diz: “Crescemos. A Humanidade não precisa mais de deuses.”
Era para terminar aí, só que alguém deve ter dado um toque ao roteirista, avisando do bafafá que a crentalhada faria se ouvisse isto na TV, e então foi acrescentada a fala “um só já é o suficiente.”
Eu ignoro a emenda e fico com o soneto.
Detalhe: Em “Who Mourns for Adonais”, ao ser questionado sobre a possibilidade do ser alienígena ser o mesmo Apolo da mitologia clássica, Spock responde que, se viajantes do espaço, dotados de grandes poderes, visitassem a Terra naquela época, certamente seriam tidos como deuses.
Exatamente o tema central do livro “Eram os deuses astronautas”, que Erich Von Daniken publicaria no ano seguinte ao da exibição do episódio.
Outro interessante é o episódio 43, “Bread and Circuses”, também do segundo ano, em que Enterprise e tripulação vão parar num planeta com uma civilização idêntica à da Terra dos anos sessenta, só que, ali, o Império Romano nunca caiu e tornou-se uma sociedade semelhante à americana, com algumas diferenças, como os jogos de gladiadores transmitidos pela TV.
A história é uma auto-sátira da televisão, já que em um dos combates mortais transmitidos ao vivo, o centurião ameaça matar os lutadores se os índices de audiência cairem.
Seguindo paralelo à sátira central, colocaram no enredo umas figurinhas meio ridículas, os “adoradores do sol”, que pregavam uma nova religião que se opunha à violência institucionalizada do Império.
Claro que os tais adoradores do sol representavam os cristãos primitivos, que no mais a mais, não tinham a menor graça quando comparados com os divertidos romanos futuristas.
Como não podia deixar de ser, no final vêem as concessões às sensibilidades religiosas, quando fica claro que os tais “adoradores do sol” vencerão o Império e a tenente Ohura diz que eles não adoravam a estrela, mas o “sol de Deus”... Depois que ela diz isto, toda a tripulação da ponte faz cara de bobo e o episódio acaba. Uma pena.
Mas tem o episódio 38, “The Apple” que eu considero uma vingança dos produtores da série contra os fundamentalistas.
É quando Kirk encontra uma raça de alienígenas que adoram um deus chamado Vaal e vivem para alimenta-lo e obedece-lo. O capitão descobre que Vaal é uma máquina, que mantinha os humanos escravizados há gerações, obrigando-os a fornecer a ele os combustíveis de que precisava para continuar funcionando.
Kirk, é claro, destrói Vaal e liberta os aliens, que não tem a menor idéia do que fazer com a liberdade recém obtida.
Acho que todo mundo entendeu as outras interpretações que podem ser dadas ao deus Vaal.
No final de “The Apple” temos a cereja do sundae, numa daquelas conversas na ponte, que encerravam os episódios:
Kirk: - Há alguém a bordo desta nave, que lembre remotamente Satã?
Spock: - Não estou a par de ninguém que corresponda a esta descrição, capitão.
Kirk: - Sim, sr. Spock, eu imaginei que o senhor não estaria.
Sutil.