A DIFÍCIL ARTE DE PREVER O FUTURO

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'M
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A DIFÍCIL ARTE DE PREVER O FUTURO

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A DIFÍCIL ARTE DE PREVER O FUTURO


Carlos Fiolhais


O ofício de profeta é difícil mas pode ser compensador se se conseguirem acertar as profecias e se virem reconhecidos os méritos. Se se pretende pois compensação (e não se receia o erro!) não há como fazer profecias a curto prazo, entendendo por curto um prazo inferior ao tempo médio de vida do profeta.

Assim, em contraste com as eras do Antigo Testamento, em que se faziam profecias a séculos de distância, nos tempos mais recentes os adivinhos do futuro acham preferível não arriscar mais do que umas dezenas de anos. São conhecidos os riscos de profetizar. Os meteorologistas são só profetas do dia seguinte mas mesmo assim chove quando eles não dizem. Os economistas, os ecologistas e os tecnólogos atrevem-se a conjecturar meses e anos mas falham de quando em vez (nunca se viu nenhum economista verdadeiramente rico por ter previsto com exactidão o curso da bolsa nem nenhum ecologista verdadeiramente pobre por se lhe ter degradado o ambiente à volta). O longo prazo fica reservado a Nostradamus e ao seu séquito de discípulos. Só estes, como prevêem o possível e o impossível, acertam sempre, só não se sabe é quando.

Ninguém no seu juízo, excepto os cosmólogos que falam de milhões e Milhões de anos (é, de resto, essa a profissão deles), considera razoável ir, digamos, além do ano 2040.

Nas épocas em que os milénios convencionalmente acabam costumam proliferar de modo anormal os vaticinadores. Há-os de todos os tipos e para todos os gostos. Há os bruxos sofisticados armados das últimas novidades da ciência, incluindo extrapolações realizadas em poderosos computadores (como os do Pentágono) e aqueles simples bruxos munidos de uma bola de cristal made in Marinha Grande (vidro fosco de segunda escolha). Há aqueles que leram os tratados, extensos e apáticos, de sociologia e história e que são até capazes de citar a Enciclopédia Eunaudi de cor e os iletrados que, se lêem as cartas do Tarot, é porque são ilustradas. Há profetas que se disfarçam o mais que podem, umas vezes de escritores de ficção científica e outras de escritores de literatura fantástica, com medo das represálias no caso da previsão sair furada e outros que não usam disfarce nenhum, nem sequer as barbas e que se encontram ao virar da esquina.

Os prazos de antevisão também variam. Ha quem preveja (a CIA) em 1991 o fim da Jugoslávia. Há quem preveja (a "Newsweek") a breve trecho uma guerra civil na URSS. Há quem preveja (Fukuyama) para já o "fim da história", dando de barato tanto quer os acontecimentos a leste quer o episódio do Iraque. As previsões científico-tecnológicas são particularmente abundantes. Até ao ano 2000 está prevista a vacina contra a SIDA, a cura do cancro e, quiçá, o segredo da juventude por tratamento hormonal e/ou a engenharia genética. Lá mais para diante, no próximo milénio, está prevista a primeira excursão a Marte (em 2015?), a colonização do espaço (com colónias na Lua, em Marte e nalgum meteorito avulso) e sabe-se lá que mais.

Perante esta floresta de profetas é difícil escolher algumas árvores para perscrutar quais são as respectivas raízes, ramos e frutos. Mas, embora correndo o risco da arbitrariedade da escolha, vale a pena fixar a atenção em três livros recentes que, de uma maneira ou de outra, tratam esse tema inesgotável e sempre actual que é o futuro. Vamos rever o que dizem Alvin Toffler, autor de "Powershift", Paul Ehrlich, autor de "The Population Explosion", Hans Moravec, autor de "Mind Children". Tratam-se de meros exemplos mas são provavelmente exemplos bem sintomáticos sobre o futuro que aí vem. O primeiro trata das novas formas de divisão de poder, o segundo dos riscos do crescimento e o terceiro anuncia um futuro transhumano.

Alvin Toffler já nos habituou a que os seus escritos apareçam pontuais no início de cada década. Em 1970 publicou "O choque do futuro" e em 1980 "A terceira vaga", ambos editados em Portugal pela "Livros do Brasil". Agora com os anos noventa a despontar, saiu o seu "Powershift" (assim mesmo tudo pegado, "powershift" é um neologismo: significa algo de mais profundo e complexo do que "power shift"), um pesado volume sobre não só a presente década mas também os primeiros anos do próximo milénio. Subintitula-se "Conhecimento, riqueza e violência à beira do século XXI" (Bantam Books, 1990). Toffler já anunciou que não vai continuar a série; fica-se pelos três tomos que é uma conta certa. Se "O choque do futuro" falava da mudança e "A terceira vaga" discutia a direcção da mudança, "Powershift" aborda a regulação da mudança.

Toffler não faz previsões muito extravagantes, nem nos livros anteriores nem no último. Faz previsões a prazo imediato e quase tudo o que diz já está praticamente à vista. Fala de uma economia super-simbólica no futuro, quando vivemos já num mercado, onde tanto como os produtos e serviços, são essenciais as imagens que se criam e difundem. Fala do mercado mundial quando o planeta é já uma feira onde todos compram de todos e todos vendem a todos (uns vendem mais do que outros, bem entendido, inclinando a seu favor a balança de pagamentos).

Fala do império da comunicação quando o mundo já é há muito uma pequena aldeia de MacLuhan. Em qualquer lado em que saia o avião, não será difícil descobrir o anúncio multiracial da Benetton ou as cores branca e azul da IBM. Benetton e IBM mais do que produtos tornaram-se símbolos e padrões. Os cartões de credito são hoje uma moeda internacional que funciona tão bem em Nova Iorque como em Lisboa e que assegura credibilidade ao cliente (em Nova Iorque para se ser mais credível é conveniente dispor de 2 ou 3 cartões de plástico). As comunicações electrónicas permitem que do computador onde ora escrevo converse com a mesma facilidade para Coimbra, Washington, Santander ou Sussex (estes são exemplos reais dos sítios de onde me vêm mensagens "Bitnet" de correio electrónico enquanto emendo esta prosa). Para referir uma demonstração recente do poder das comunicações, veja-se o modo como a guerra é transmitida em directo, com o general americano a dizer que as melhores notícias que tem de Bagdade vêm pela televisão e o repórter de Telaviv parecendo um extraterrestre escondido por detrás da máscara de gás. Só falta os soldados da trincheira usarem televisões portáteis para saberem quando devem atacar ou o gás letal entrar nos estúdios durante a transmissão. Mas Toffler (ou ele e a mulher, formam ao que parece uma parelha intelectual, a modéstia dela impede-a de ter o nome na capa mas não no "copywright") avança, porém, algumas ideias que, se não de todo inéditas, são pelo menos merecedoras de renovada ênfase. Diz que o poder se pode basear tanto no conhecimento como na riqueza ou na força e que o poder baseado no conhecimento é a nova força emergente deste fim de século. O conhecimento pode dar riqueza e portanto mais poder económico e pode dar força e portanto mais poder militar. Para concordar com Toffler que o poder económico se baseia cada vez mais no conhecimento científico e tecnológico, basta esfolhear as páginas do "Wall Street Journal" ou da "Business Week". Mas Toffler acrescenta pormenores subtis sobre as capacidades acrescidas que a informática dá ao mundo dos negócios. Diz, nomeadamente, que quando compramos qualquer coisa estamos a pagar dois preços, o preço da mercadoria e a informação de que a compramos (essa informação vale dinheiro pois, se for conhecida pelo fabricante, vai-lhe permitir vender mais). "Powershift" saiu antes de eclodir a Guerra do Golfo, mas pode-se agora juntar que o conhecimento tecnológico confere, no teatro da guerra, força adicional e de tipo novo aos protagonistas que dele sejam titulares. Toffler fala da miscigenação de poderes, da aliança, outrora suposta impossível (nos anos sessenta, no tempo da guerra fria), entre intelectuais e artistas, por um lado, e empresários e capitalistas, por outro. Conhecer é cada vez mais poder e Roger Bacon tem cada vez mais razão.

Nos anos sessenta e setenta escutaram-se as vozes de uma geração de futurologistas que ficaram famosos (Hermann Kahn, Jean Fourastie, Bertrand de Jouvenel, etc.). Foi o tempo do Clube de Roma e do relatório "Global 2000" do governo norte-americano. Apareceram então os primeiros ecologistas seriamente preocupados com o futuro. A palavra ecologia tornou-se de certo modo sinónimo de pessimismo. Estaríamos a caminhar para o pior dos mundos. O crescimento populacional seria o pai de todas as catástrofes e a industrialização massiva estaria a tornar a Terra de todo inabitável. Dos anos sessenta para cá, a indústria prosseguiu a sua sujeira, a humanidade continuou a reproduzir-se de forma galopante e, como se isto não fosse pouco, surgiram questões novas como o buraco de ozono, a desflorestação das florestas tropicais, o aquecimento da atmosfera (vulgo efeito estufa).

O ano de 1990 foi o mais quente desde que ha registos fiáveis e talvez seja uma boa profecia prever que 1991 será ainda mais quente. Não admira por isso que hoje quase não haja partido, movimento ou grupo que não se reclame dos princípios ecológicos e também não admira que, para além do cortejo de pias intenções, haja quem estude em pormenor e quantitativamente qual é a extensão dos actuais perigos que ameaçam a natureza e a sociedade e em que medida eles poderão ser minorados.

Um dos ecologistas actualmente mais conhecidos é Paul Ehrlich, professor da Universidade de Maryland. Publicou em 1978 um livro, que é já um clássico, sobre o crescimento populacional e suas consequências ("The population bomb", edição revista e actualizada, Ballantine Books, 1971). Recentemente saiu com uma sequência intitulada "The population explosion" (Simon and Schuster, 1990) onde, de parceria com a esposa (nisso imita Toffler), faz o inventário das razões que poderemos invocar para ter medo do futuro. A curva da população na Terra está a empinar vertiginosamente. A quantidade de recursos disponíveis parece ser finita, não se compadecendo com a explosão de potenciais beneficiários.

Quem o ler, como a outros ecologistas, pode ficar com a ideia que o melhor é fugir do futuro a sete pés. Essa ideia é criticada por Toffler que escreve, com alguma razão, que se deve é ter medo das hordas de algumas eco-fascistas que começam a surgir e da visão religiosa de regresso à tranquilidade do passado (Toffler afirma que o regresso à actividade comunal e rural é também o abandono das formas democráticas de governação e o retorno ao feudalismo). O pessimismo de Ehrlich é apenas uma das várias fontes de pessimismo que os media absorvem e canalizam para os cidadãos, a quem assim são dadas todas as razoes para ficarem inquietos. Estaremos mesmo tramados, como os ecologistas anunciam, ou será que a criatividade do homem é capaz de arranjar futuros alternativos tanto ao presente como à Idade Média ?

Tanto ecologistas como economistas são profetas profissionais. Os economistas não são sempre bons profetas senão estavam todos ricos. Os ecologistas não são sempre bons profetas senão estávamos todos pobres.

O facto de serem ambos adivinhos e por vezes ambos inábeis não significa que estejam de acordo quanto ao futuro. Um exemplo recente de polémica entre uns e outros aconteceu entre o pessimista declarado Ehrlich e um optimista inveterado, Julian Simon. Simon, professor de economia na Universidade de Stanford na Califórnia, encontrou em Ehrlich o seu antípoda. Ehrlich anda em comícios pela rua a avisar sobre os perigos do superpovoamento e da poluição e queima as pestanas no gabinete. Simon conclui que pode haver um outro problema local com o excesso de gente mas que quanto mais cabeças maior é a "pool" de criatividade de onde novas ideias e soluções podem surgir e que, se há alguma coisa que o passado ensina, é o crescimento da capacidade humana de invenção e engenho à medida que os problemas crescem quer em género quer em número. Gosta de lembrar que Andorra não tem Prémios Nobel e os Estados Unidos têm uma quantidade deles. Se no futuro há mais gente haverá de certeza mais e melhores miolos. Simon publicou em 1980 na prestigiada revista "Science", da Associação Americana para o Progresso da Ciência, um artigo em que desprestigiava as conclusões de ecologistas como Ehrlich. Se há mais gente a consumir mais bens naturais e estes são limitados, os ecologistas concluem naturalmente que as matérias-primas têm de aumentar de preço. Errado, replica Simon, devido ao progresso das tecnologias pertinentes esses bens vão mas é baixar de preço. Ehrlich e Simon resolveram adoptar um exemplo concreto para confrontar as respectivas razões. Em 1980 fecharam uma aposta sobre o preço daí a dez anos de um conjunto de metais de utilização comum. Ehrlich previa que iam ser mais caros e Simon garantia que iam ficar mais baratos. Em 1990, há pouco, foi a altura de decidir quem tinha ganho.

Ganhou o optimista. Corrigindo os preços para levar em conta a inflação, os metais tinham de facto descido de preço em média. Alias quase que não era necessária essa correcção porque a descida era acentuada. Ehrlich não teve mais do que pagar (quase 600 dólares) ao seu antagonista (as contas, tal como tinham sido acordadas, implicavam que quanto mais os materiais baixassem mais ele teria de pagar). As razões do embaratecimento eram claras: tinham-se entretanto desenvolvido novos processos de detecção e extracção de jazidas metálicas, tinham-se substituído alguns materiais por outros novos, etc. O ecologista pagou mas não desarmou. Continuando profeta da desgraça, compara Simon a alguém que caiu a sorrir de um prédio alto, e, enquanto passa pelo primeiro andar, continua a sorrir. Simon sorri e diz que está pronto a repetir a aposta aumentando a parada para 20000 dólares para o preço de quaisquer metais em qualquer data futura. Julga evidentemente que o futuro vai ser melhor para todos, inclusivamente para ele porque espera ganhar a aposta. Este exemplo mostra a fragilidade das profecias, uma fragilidade acrescida quando é o próprio a pagar do bolso os erros do diagnóstico.

Há, sempre houve, quem faça previsões tecnológicas. Nos anos sessenta previu-se que se ia à Lua e foi-se. Previram-se coisas que não aconteceram como telefones com monitores vídeos e demais engenhocas inúteis e não se previram outras coisas que aconteceram como a explosão doméstica de computadores pessoais, para já não falar de vária maquinaria útil. No início da década de sessenta, quando os computadores pessoais ainda não existiam e a computação implicava grandes e caros monstros eléctricos e electrónicos, previu-se o triunfo a curto prazo da inteligência artificial, com os computadores a desempenharem muitas das tarefas humanas. Mas hoje, pesem embora alguns deslumbramentos pontuais (há já um computador que ganha a quase todos os jogadores de xadrez, só perdendo para o Kasparov) não se vê que ela tenha vencido e convencido (a revista "Byte" de Janeiro de 1991 interroga-se até sobre a possível morte da inteligência artificial). O facto é que os computadores fazem, em regra, tarefas inumanas como, por exemplo, contas descomunais.

O americano de origem austríaca Hans Moravec prevê não só que a inteligência artificial vai cumprir as tarefas iniciais como também que os robots inteligentes vão acabar por prevalecer sobre os seus criadores. Para ele, o robot é o futuro do homem. A circunstância de os aranhicos mecânico-electrónicos que constrói serem apenas robots muito rudimentares não impede o professor universitário e director do laboratório de Robótica da Universidade de Carnegie-Mellon de viver entusiasmado com a ideia de dar corpo às ideias de escritores de ficção como Capek ou Asimov. Escreveu um livro, "Mind Children- The future of robot and human intelligence", publicado em 1988 pela Harvard University Press (a publicar em Portugal pela Gradiva), onde conta como será o mundo dominado por robots, lá para o ano 2040, quando ele, se ainda for vivo, já estiver velhinho. Pode apostar que o mais certo é não estar cá para pagar a aposta. Moravec prevê até que se possa despejar a mente humana para dentro de um robot e que assim se possa viver eternamente... Deu uma entrevista delirante à "Omni", magazine norte americano que trata do futuro e que alimenta todos os meses uma legião de "omnívoros", os leitores que querem saber tudo sobre o futuro. O entrevistador Ed Regis ficou tão impressionado que se apressou a escrever um livro onde faz publicidade das ideias de Moravec e de outros "gloriosos malucos" do futuro ("The great mambo chicken and the transhuman condition" Addison-Wesley, 1990). Moravec confessa que nunca percebeu porque é que o Pinóquio, feito de pau, queria ser humano. Ele em criança preferia ser Pinóquio, o que significa recuperável na oficina do Mestre Gepeto em caso de um qualquer eventual acidente. O professor de robótica diz que as pessoas preferirão ser robots, com o hardware imperecível, e um software com capacidade para expansão para além dos actuais e frágeis limites humanos.

Os computadores são actualmente processadores de informação mas não são ainda conhecedores de informação (num recente inquérito da "Fortune", Robert Murdoch, o mago das novas tecnologias na comunicação, lembrava que informação não significa conhecimento: o melhor processador de conhecimento, isto é filtro de informação, ainda é a mente humana). Mas Moravec adianta que é perfeitamente possível que uma máquina conheça, sendo necessário para isso que ela consiga, com antecedência, simular aquilo que na realidade pode vir a acontecer. Conhecer na concepção moraveciana é afinal prever e, consequentemente, prevenir-se contra as previsões funestas.

As extrapolações sobre as máquinas inteligentes parecem, decerto, sensacionais e quixotescas. Mas se o computador se vier a revelar na prática melhor profeta, não será desajustada a previsão de que o futuro será inevitavelmente dele!


http://nautilus.fis.uc.pt/personal/cfio ... futuro.htm

Trancado