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O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 02 Jan 2009, 15:30
por user f.k.a. Cabeção
O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Por: user f.k.a. Cabeção
Talvez a maioria dos que se dizem esquerdistas figure na categoria dos socialistas de boa índole.
São pessoas que optaram pelo socialismo por estarem comovidas ou revoltadas com o sofrimento provocado pela miséria, com o fato de que muitos seres humanos não dispõem de acesso a serviços básicos de saúde e educação. Essas pessoas não conseguem compreender como um ser humano pode ter compaixão pelos seus semelhantes e não compartilhar de sua crença no socialismo como solução para o mal do mundo.
Isso é resultado da seguinte confusão conceitual: essas pessoas acreditam que o socialismo é um sistema de distribuição igualitário (ou “mais igualitário” em algum sentido) de renda e serviços entre as pessoas, quando na verdade esse é apenas o seu objetivo declarado, e não o que ele é de verdade. O que ele é de fato é um sistema que amplia a desigualdade de poderes entre burocratas e indivíduos subalternos, e esse maior poder dos burocratas é justificado nas bases do argumento de que uns poucos burocratas poderosos fariam melhor pelos necessitados do que a totalidade dos indivíduos livres faz.
Qualquer pessoa sensata perceberá que não existe nenhum julgamento de valor aqui, o socialismo é exatamente isso, embora raramente seja posto dessa forma. A exceção dos anarco-comunistas, todos os esquerdistas defendem mais poder para o Estado de tomar decisões as custas das decisões que seriam tomadas pelos “egoístas” indivíduos.
Resumindo, o socialista de bom coração defende poderes arbitrários para poucos indivíduos porque crê supersticiosamente que quando estes burocratas tiverem poderes suficientemente enormes sobre os cidadãos, eles finalmente poderão produzir maior igualdade para todos.
Um evidente non-sequitur. Se da natureza desigual da estrutura de poder econômico no regime capitalista emergiam os vícios do egoísmo e da podridão moral, é preciso uma vasta dose de religiosidade e wishfulthinking para acreditar que da desigualdade de poderes em favor de burocratas, estabelecida mediante violência política, poderiam emergir as virtudes da compaixão e do amor ao próximo, e não os vícios da corrupção e do autoritarismo.
O socialista de boa índole não está ciente dessas implicações, por identificar no Estado algo a mais que uma grande organização burocratica centralizadora, algo que não existe exceto na sua imaginação. Essa é a origem do seu misticismo. Ele não odeia a liberdade individual, ele apenas defende inconscientemente tudo aquilo que a destrói.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 02 Jan 2009, 17:21
por Tarcísio
Esse argumento é o divisor de águas, realmente.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 02 Jan 2009, 19:00
por Herf
Como certa vez eu li em (se não me falha a memória) uma dessas comunidades políticas do Orkut, "é para os socialistas de bom caráter - porém ingênuos - que está reservado o segundo estoque de munição dos líderes da revolução".
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 02 Jan 2009, 19:44
por user f.k.a. Cabeção
Herf escreveu:Como certa vez eu li em (se não me falha a memória) uma dessas comunidades políticas do Orkut, "é para os socialistas de bom caráter - porém ingênuos - que está reservado o segundo estoque de munição dos líderes da revolução".
Exatamente. Nunca serão os socialistas de boa índole os líderes de uma burocracia comunista.
Não apenas porque o poder corrompe, como já anunciava lorde Acton, mas porque a própria natureza de quem persegue obstinada e violentamente o poder absoluto já é corrompida. É um sonho romantico acreditar numa revolução de justos, quando apenas a pior categoria de pessoas pode levar a cabo uma estratégia de violência revolucionária (ou mesmo, num nível um pouco menor, poderia tomar parte nas sujeiras de uma eleição num "regime democrático" como o brasileiro).
O bem não se impõe por golpe, mas emerge mediante espontânea adoção das virtudes pelos indivíduos racionais. Não é determinado via decreto, mas assimilado através da imitação do exemplo dado pelos que o praticam.
O socialista de boa índole quase sempre conhece as virtudes do bem, pois não possui a moral torta ou inexistente do revolucionário radical, mas está completamente equivocado naquilo que considera os meios adequados para buscá-las, um erro que quase sempre lhe custa muito caro, quando a hora da "revolução do povo" é chegada.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 02 Jan 2009, 22:26
por user f.k.a. Cabeção
Tarcísio escreveu:Esse argumento é o divisor de águas, realmente.
É difícil para mim avaliar porque eu desenvolvi rapidamente resistência a maior parte das argumentações socialistas as quais venho sendo exposto desde tempos pré-ginasianos. Sempre que eu analisei mais seriamente argumentos críticos e favoráveis ao socialismo foi de um ponto de vista opositor de alguém que já estava a priori convencido das falhas básicas e procurava apenas aprimorar o conteúdo sua crítica.
De qualquer forma, eu tenho para mim que a sutileza dessa caracterização necessária e definitiva do socialismo tal qual regime do autoritarismo burocrático, que outorga poderes arbitrários enormes para uma pequena classe, a título de lutar contra as desiguldades de poderes existentes entre as várias classes econômicas existentes no liberalismo, algo extremamente crucial e que nem sempre é expresso de forma clara e sucinta pelos que conseguem compreendê-lo realmente.
Assim, eu me apego a crença de que uma vez que um socialista honesto se deparar com esse contra-senso exposto de forma que ele perceba a sua verdadeira natureza, ele sofrerá o enorme impacto de ser alvejado por um pesado projétil de realidade estilhaçando seus sonhos juvenis. Mas reerguendo-se, poderá apreciar um mundo muito mas coerente no qual poderá fazer um esforço verdadeiramente produtivo para o Bem no qual acredita, que tenho a certeza de ser composto da mesma matéria que o Bem no qual eu e todos aqueles que acreditam sinceramente na liberdade individual perseguem.
Mas talvez eu seja culpado de um otimismo excessivo.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 02 Jan 2009, 23:26
por Tarcísio
Isso pode ser contraprodutivo.
Eu, de forma um pouco diferente, compreendi que a escalada das liberdades individuais é um grande pai, ensinando dentre outras coisas a ter até mais responsabilidade pelos seus atos.
O grande problema o qual percebi pelo estudo prático e ainda não tive tempo para pesquisar e resolvê-lo é que a sociedade anarco-liberal só funciona se houver um moedor de carne cortando as "arestas ruins" da sociedade perpetuamente.
Pode parecer uma alegação precipitada, talvez você inclusive possa me corrigir, mas o afrouxar das leis penais também não marca o inversamente proporcional recuo das liberdades individuais em qualquer pais?
Feliz ano novo Cabeção.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 03 Jan 2009, 00:07
por user f.k.a. Cabeção
Tarcísio escreveu:Isso pode ser contraprodutivo.
O que exatamente?
Tarcísio escreveu:Eu, de forma um pouco diferente, compreendi que a escalada das liberdades individuais é um grande pai, ensinando dentre outras coisas a ter até mais responsabilidade pelos seus atos.
Eu vejo a liberdade individual e responsabilidade pelos próprios atos como coisas complementares e indissociáveis.Tarcísio escreveu:O grande problema o qual percebi pelo estudo prático e ainda não tive tempo para pesquisar e resolvê-lo é que a sociedade anarco-liberal só funciona se houver um moedor de carne cortando as "arestas ruins" da sociedade perpetuamente.
É preciso ter cuidado com a ilusão produzida por certas idéias como a de uma sociedade que funciona.
A sociedade é um processo resultante de várias interações, cada uma delas com fins próprios e não necessariamente relacionados. É bastante complicado determinar qual seria o funcionamento de uma sociedade.
Não existe um parâmetro para se dizer que uma sociedade funciona e outra não, exceto a vontade dos indivíduos que fazem parte e interagem com ela de manter esta sociedade em vigor.
Dessa forma os anarco-liberais teriam que encontrar meios para lidar com as ameaças produzidas contra a sua sociedade. Seria ilusório acreditar que sem governos, o mundo estaria livre daqueles que se ocupam de violar a propriedade e os direitos individuais dos demais.
Eu não sei como eles se organizariam quanto a isso, mas estou certo de que o fariam de alguma maneira, a menos que me demonstrem que esse tipo de organização só pode ser produzida mediante a outorga de poderes arbitrários a burocratas, o que a princípio não me parece mais razoável do que acreditar que o pão só pode ser produzido mediante a gestão burocrática de um comitê central.
Ainda que eu não tenha idéia de como essa organização emergiria finalmente, não é difícil imaginar que empreendimentos privados poderiam ocupar-se de dividir as diversas tarefas envolvidas na produção de segurança e justiça, assim como desenvolver formas eficientes de cobrar pelos serviços prestados. Em diversos casos, essa organização já existe de forma bastante desenvolvida, mais próxima de você do que você imagina.
Tarcísio escreveu:Pode parecer uma alegação precipitada, talvez você inclusive possa me corrigir, mas o afrouxar das leis penais também não marca o inversamente proporcional recuo das liberdades individuais em qualquer pais?
No caso geral do Brasil (e de outros países como a Inglaterra) sim, pois esses afrouxamentos se produzem dentro de uma situação onde já existem vários incentivos para a atividade criminosa.
Mas algumas vezes não. Certas leis penais podem ser resquícios de regimes autoritários ou de segregação e sua eliminação é desejável do ponto de vista da ampliação das liberdades individuais.
Tarcísio escreveu:Feliz ano novo Cabeção.
Pra você também Tarcísio!
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 03 Jan 2009, 05:19
por Tarcísio
user f.k.a. Cabeção escreveu:Tarcísio escreveu:Isso pode ser contraprodutivo.
O que exatamente?
Iniciar as atividades intelectuais desde muito novo sob a mesma perspectiva.
user f.k.a. Cabeção escreveu:Eu vejo a liberdade individual e responsabilidade pelos próprios atos como coisas complementares e indissociáveis.
Indissociáveis a nível de um homem preso a juramente, ou hierarquia, ou escravidão não poder ser responsável por seus atos?
user f.k.a. Cabeção escreveu:Dessa forma os anarco-liberais teriam que encontrar meios para lidar com as ameaças produzidas contra a sua sociedade. Seria ilusório acreditar que sem governos, o mundo estaria livre daqueles que se ocupam de violar a propriedade e os direitos individuais dos demais.
Eu não sei como eles se organizariam quanto a isso, mas estou certo de que o fariam de alguma maneira, a menos que me demonstrem que esse tipo de organização só pode ser produzida mediante a outorga de poderes arbitrários a burocratas, o que a princípio não me parece mais razoável do que acreditar que o pão só pode ser produzido mediante a gestão burocrática de um comitê central.
Ainda que eu não tenha idéia de como essa organização emergiria finalmente, não é difícil imaginar que empreendimentos privados poderiam ocupar-se de dividir as diversas tarefas envolvidas na produção de segurança e justiça, assim como desenvolver formas eficientes de cobrar pelos serviços prestados. Em diversos casos, essa organização já existe de forma bastante desenvolvida, mais próxima de você do que você imagina.
Exelente o seu foco, então continuo. Quando se trata de punição, visa-se dentre outras coisas restabelecer e reasegurar na sociedade os princípios que foram violados. Os meios para se fazer isso são: promover a segurança através da punição rápida, e o medo através da punião certa. A rapidez da punição reconforta os homens de bem, enquanto a certeza reprime os ruins, e as vezes os bons.
Tentando entender os mecanismos capazes de imprimir a certeza, ou seja, a efetividade, é que me perco. Assim como você me parece, também não consigo imaginar uma instituição não burocrática eficaz nessa esfera específica, alias, não acredito que ninguém tenha o feito de maneira que seja real e minimamente melhor do que no atual regime.
Bom, se ainda não o fizera, agora entenderá porque disse "moedor de carne".
Numa sociedade onde as liberdades individuais são uma das coisas mais preciosas, as penas quanto as irresponsabilidades seriam mais severas que as nossas, sem dúvida. Além, quando um regime penal não consegue ser eficaz, ele historicamente tenta compensar, tornando as penas mais pesadas. Se não existe efetividade, quando um é pego, o exemplo dele tem que valer por cem.
Por essas, e outras razões de pura ordem estrutural, eu não consigo imaginar empreendimentos privados ocupando-se dessas tarefas humanamente.
user f.k.a. Cabeção escreveu:Tarcísio escreveu:Pode parecer uma alegação precipitada, talvez você inclusive possa me corrigir, mas o afrouxar das leis penais também não marca o inversamente proporcional recuo das liberdades individuais em qualquer pais?
Mas algumas vezes não. Certas leis penais podem ser resquícios de regimes autoritários ou de segregação e sua eliminação é desejável do ponto de vista da ampliação das liberdades individuais.
Sem dúvida lembrados em boa hora, mas não envolvo a esses na proposição.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 03 Jan 2009, 19:01
por Darkside
A maioria das pessoas que eu conheço que se dizem socialistas nada mais são do que capitalistas que acham que o país deveria investir mais em serviços básicos para a população, como saúde e educação.
Nunca conheci ninguém que defendesse revoluções violentas na melhor das intenções, até porque ninguém nunca vai conseguir me convencer que matar gente inocente é por um bem maior, segundo a minha escala de valores.
E esse negócio de revolução é coisa do passado, a maioria dos comunistas de hoje em dia querem o poder através do voto e não de revoluções, é só observar a Venezuela e a Bolívia. E o problema é que eles ganham votos através de governos anteriores com administrações incompetentes em políticas públicas.
Na minha opinião, o melhor jeito de evitar que comunistas cheguem ao poder é não abandonar as pessoas com menos recursos a sua própria sorte. O dinheiro dos impostos que são investidos em saúde e educação pública faz toda a sociedade crescer.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 04 Jan 2009, 00:59
por Tarcísio
Darkside escreveu:E esse negócio de revolução é coisa do passado, a maioria dos comunistas de hoje em dia querem o poder através do voto e não de revoluções, é só observar a Venezuela e a Bolívia. E o problema é que eles ganham votos através de governos anteriores com administrações incompetentes em políticas públicas.
Engraçado que da primeira vez que vi Lula falando para as FARC largarem as armas que a luta socialista agora é de outra forma, não compreendi o quanto aquilo é repugnante. Eu até entendia a repugnância, mas não a grandeza dela.
É como em Godfather II, Mike dizendo ao velhote, mais tarde delator, que os negócios mudaram de esquema com o tempo, que eles já não podiam sair matando quem quisesse, que todos eram interdependentes.
Agora a esquerda não são mais esferas isoladas em bairros de periferia, elas tem visibilidade e muitos contatos, e por isso devem comportar-se.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 04 Jan 2009, 01:07
por user f.k.a. Cabeção
Darkside,
eu não me referia ao revolucionário socialista, mas exatamente ao cidadão que é simpático as idéias esquerdistas "moderadas e democráticas".
Independente de como o poder político é adquirido, o fato é que o socialismo defende uma assimetria maior de poderes entre a casta superior dos burocratas e as massas subalternas, porque essa desigualdade seria necessária para corrigir as desigualdades de poder econômico produzidas pelo sistema capitalista.
Todo o discurso esquerdista é uma máscara bem delineada para a realidade básica de que as requisições socialistas são por um maior controle e poder para os burocratas. Essa afirmação não se trata de opinião, é impossível idenficar propostas exclusivamente esquerdistas que não tratem de algum aumento de poder para alguma categoria de burocratas.
Você ao defender que mais impostos sejam cobrados para que a educação chegue aos mais pobres está pressupondo que apenas através da ampliação dos poderes extorsivos dos burocratas do Estado é que os pobres poderão ter acesso a educação. Que devemos confiar esse poder a ele esperar que eles sejam mais honestos e competentes na execução desse poder do que seriam os indíviduos com poder econômico num mercado livre.
Essa idéia é simplesmente um contra-senso ridículo. Na melhor das hipóteses, na democracia mais perfeita e inteligente, com os cidadãos mais conscientes, a seleção dos poderosos na política funcionaria exatamente como funciona no mercado. Na verdade, o mercado livre é forma mais verdadeira de democracia, a que acontece a cada segundo, e onde os votos que o individuo pode realizar são pesados mediante a intensidade da vontade individual e dos votos que cada um recebeu dos demais anteriormente. O fato de chamarmos esses votos de dinheiro ou capital não interessa, o princípio é o mesmo, só que mais puro e coerente.
É óbvio que o mercado não vai produzir um mundo ideal livre de injustiças, mas perseguir esse objetivo é acreditar num sonho utópico. O fato é que designar poderes arbitrários e vastos para burocratas não corrigirá os vícios e injustiças causados pela desigualdade de poder produzida mediante o processo de mercado, apenas introduzirá novas e mais nefastas distorções.
É esse o erro básico do socialista. Ele percebeu que o mundo livre não é perfeito, só não se tocou que essa imperfeição não é um escólio da liberdade, mas algo próprio da natureza de todos os assuntos humanos, dado que somos criaturas imperfeitas na nossa capacidade cognitiva e moral. Acreditar que poderemos selecionar nossos ditadores para aparar as arestas morais do homem é um sonho utópico e perigoso. Mesmo quando depositamos nossa fé no "deus da democracia".
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 04 Jan 2009, 02:30
por user f.k.a. Cabeção
Tarcísio escreveu:Iniciar as atividades intelectuais desde muito novo sob a mesma perspectiva.
É meio pretensioso chamar isso de iniciar atividades intelectuais. Eu não dediquei nada a isso em termos de tempo ou esforço, apenas não concordava com o que certos professores falavam.
Mais tarde eu fui ler coisas que me fizeram aprimorar certos argumentos e abandonar outros completamente, de modo que a única coisa que pode-se dizer que permaneceu basicamente inalterada foi a rejeição as doutrinas esquerdistas.
Tarcísio escreveu:Indissociáveis a nível de um homem preso a juramente, ou hierarquia, ou escravidão não poder ser responsável por seus atos?
Um homem preso é responsável no limite da liberdade que possui. Se ele matar o seu companheiro de cela ele pode ser responsabilizado, pois ainda que estivesse preso, possuía liberdade suficiente para interagir com o outro; se ele deixar de fazer qualquer coisa que seria sua obrigação caso estivesse em liberdade, não pode ser imputado, simplesmente porque não estava livre para cumprir com o seu dever.
Analogamente para o escravo.
Tarcísio escreveu:Exelente o seu foco, então continuo. Quando se trata de punição, visa-se dentre outras coisas restabelecer e reasegurar na sociedade os princípios que foram violados. Os meios para se fazer isso são: promover a segurança através da punição rápida, e o medo através da punião certa. A rapidez da punição reconforta os homens de bem, enquanto a certeza reprime os ruins, e as vezes os bons.
Tentando entender os mecanismos capazes de imprimir a certeza, ou seja, a efetividade, é que me perco. Assim como você me parece, também não consigo imaginar uma instituição não burocrática eficaz nessa esfera específica, alias, não acredito que ninguém tenha o feito de maneira que seja real e minimamente melhor do que no atual regime.
Bom, se ainda não o fizera, agora entenderá porque disse "moedor de carne".
Numa sociedade onde as liberdades individuais são uma das coisas mais preciosas, as penas quanto as irresponsabilidades seriam mais severas que as nossas, sem dúvida. Além, quando um regime penal não consegue ser eficaz, ele historicamente tenta compensar, tornando as penas mais pesadas. Se não existe efetividade, quando um é pego, o exemplo dele tem que valer por cem.
Por essas, e outras razões de pura ordem estrutural, eu não consigo imaginar empreendimentos privados ocupando-se dessas tarefas humanamente.
É normal que você não consiga imaginar tais empreendimentos privados, uma vez que estamos condicionados a raciocinar a questão de um ponto de vista estatista.
O fato é que tudo isso que você disse é verdade, mas nada implica que uma sociedade desburocratizada não possuiria meios para lidar com esses problemas.
E melhor ainda, numa sociedade desburocratizada, questões como o payoff entre punição e reabilitação, que geram tanta discussão sem fim em democracias, poderiam ser resolvidas competitivamente. Empresas de justiça e segurança poderiam oferecer serviços voltados para uma política de tolerância zero e repressão ao crime, cobrando o preço desse serviço, ou poderiam tentar usar de métodos alternativos.
A forma que eles encontrariam de comercializar e cobrar por esses serviços é um problema a parte que eles teriam que resolver, o máximo que eu poderia fazer é apresentar as minhas especulações particulares a respeito de como eu acho que eles poderiam fazer isso. De qualquer forma, esse não é o ponto mais importante, ainda que seja uma questão interessante do ponto de vista especulativo ou como exercício de imaginação. No mundo real, a forma como essas coisas se desenvolvem é orgânica e difícil de ser prevista de um modo geral. Pense em como seria difícil prever as diversas formas de cobrança e distribuição de serviços das empresas de telefonia celular ou de programação televisiva na época em que as tecnologias estavam despontando.
O mais importante é que através da competição entre essas abordagens e da seleção realizada pelo público consumidor poderíamos chegar a soluções muito mais coerentes, justas e democráticas do que tentando convencer outros numa democracia de que a minha idéia de lei e ordem deve ser imposta para todos os demais.
O princípio básico de “minha casa, meu castelo” valeria, quando você poderia deixar claro o código legal e penal válido na sua propriedade, a ser executado pela empresa de segurança e justiça que você contratou. Caso as pessoas considerassem suas leis draconianas demais, evitariam de frequentar suas propriedades, ou mesmo de fazer qualquer negócio com você. Caso elas achassem você permissivo demais também. Haveria assim algo de mais razoável para todos no meio do caminho, a partir do cálculo individual que cada um faria acerca do payoff entre segurança e liberdade.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 04 Jan 2009, 05:49
por Darkside
user f.k.a. Cabeção escreveu:
Você ao defender que mais impostos sejam cobrados para que a educação chegue aos mais pobres está pressupondo que apenas através da ampliação dos poderes extorsivos dos burocratas do Estado é que os pobres poderão ter acesso a educação. Que devemos confiar esse poder a ele esperar que eles sejam mais honestos e competentes na execução desse poder do que seriam os indíviduos com poder econômico num mercado livre.
Eu não defendi em lugar algum que haja aumento de impostos, já que todo governo destina certa parte da arrecadação para a educação. Nem disse que o Estado seria o único responsável por educar qualquer parcela da população. Fiz uma afirmação solta em outro contexto, sem me alongar porque estava apenas apontando um dos motivos para uma sociedade eleger um populista na minha opinião.
Já que não sei se o resto do seu post foi direcionado a mim ou ao tal "socialista de boa índole", gostaria de saber antes de mais nada: Você considera um socialista qualquer um que pense ser necessária a existência de escolas e hospitais públicos?
Eu sei bem o que o termo socialista significa e eu não sou um.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 04 Jan 2009, 05:51
por Darkside
Tarcísio escreveu:Darkside escreveu:E esse negócio de revolução é coisa do passado, a maioria dos comunistas de hoje em dia querem o poder através do voto e não de revoluções, é só observar a Venezuela e a Bolívia. E o problema é que eles ganham votos através de governos anteriores com administrações incompetentes em políticas públicas.
Engraçado que da primeira vez que vi Lula falando para as FARC largarem as armas que a luta socialista agora é de outra forma, não compreendi o quanto aquilo é repugnante. Eu até entendia a repugnância, mas não a grandeza dela.
É como em Godfather II, Mike dizendo ao velhote, mais tarde delator, que os negócios mudaram de esquema com o tempo, que eles já não podiam sair matando quem quisesse, que todos eram interdependentes.
Agora a esquerda não são mais esferas isoladas em bairros de periferia, elas tem visibilidade e muitos contatos, e por isso devem comportar-se.
Eu vejo isso como um progresso para a sociedade. Pessoas de má índole de todos os espectros ideológicos que querem chegar ao poder a qualquer custo sempre vão existir, mas agora elas disputam votos entre candidatos mais sérios, isso significa que não precisamos nos preocupar com assassinatos políticos e golpes de estado, pelo menos até alguma dessas pessoas se eleger. Tudo que precisamos é de um povo politicamente consciente, que não se deixe ser enganado.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 04 Jan 2009, 14:00
por Apo
Tomara que alguns entendam a simplicidade ( e a o mesmo tempo a complexidade de deixar-se levar ) desta ilusão. Inocência é mesmo muito uma coisa muito bonita e perigosa.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 04 Jan 2009, 16:34
por user f.k.a. Cabeção
Darkside escreveu:Já que não sei se o resto do seu post foi direcionado a mim ou ao tal "socialista de boa índole", gostaria de saber antes de mais nada: Você considera um socialista qualquer um que pense ser necessária a existência de escolas e hospitais públicos?
Você coloca um ponto importante.
Eu não considero socialista quem defende melhorias nos serviços geridos burocraticamente, mas quem defende a ampliação da gestão burocrática.
É óbvio que eu não vou dizer que alguém é socialista por defender a restauração e fiscalização de hospitais públicos. Dada a situação real, que é a da gestão burocrática dessas atividades, é preciso raciocinar em termos dos dados que temos e procurar otimizar com os recursos existentes.
Eu tenho a mais plena certeza de que uma educação, saúde, justiça, segurança, alimentação e qualquer outro serviço ou bem de qualquer natureza poderia ser produzido pela iniciativa privada desde que houvesse demanda por ele. Burocratas não são uma necessidade natural, mas parasitas que infestam um sistema social.
Mas essa noção está acompanhada do reconhecimento do fato de que existe uma penetração muito forte da cultura da dependência produzida por anos de políticas assistencialistas invasivas por parte dos governos burocráticos dos Estados-nações, é que exatamente por culpa dessa cultura seria uma tarefa impraticável reestabelecer a concorrência capitalista nessas áreas num curto-prazo, de modo que é necessário pensar em estratégias políticas que admitam algum controle burocrático em retração até que a substituição completa possa ocorrer. As pessoas, por não calcularem corretamente seus gastos com saúde e educação, já que esperam que os burocratas do governo façam isso por eles, tenderiam a acreditar que o fim da burocracia seria a extinção desses serviços que eles mesmos estão pagando e não sabem. Isso é uma espécie de misticismo religioso, que crê no governo como provedor, quando na verdade ele é apenas um tomador. Mas não é efetivo lutar contra esse misticismo adotando um radicalismo anti-estatista, essa cultura pode ser combatida através da devolução gradual do poder e liberdade para as pessoas e do consequente ganho de responsabilidade da parte delas.
Não que isso também seja resultado de qualquer plano burocrático de desburocratização, a devolução gradual de poder aos indivíduos ocorre por uma pressão espontânea da maior eficiência do sistema livre frente a organização central. Essa pressão é equilibrada ou as vezes revertida pela engenhosidade dos burocratas em encontrar meios de se fingirem mais necessários, mas é de se esperar que a tendência global seja por uma ordem livre pelo simples fato de que a eficiência do mercado para a maioria dos indivíduos cedo ou tarde prevalece sobre as ganas gerais de viver às custas dos outros, uma vez que acreditemos que as pessoas são suficientemente racionais para perceber isso e desenvolver os mecanismos sociais e tecnologias contratuais necessárias para permitir uma alocação eficiente de custos e benefícios, dispensando a gestão burocrática de espertalhões.
Dessa forma, eu acho mais razoável raciocinar em termos referenciais, e chamo de socialista quem acredita que o controle burocrático estatal deva ser aumentado (isso significando um aumento do poder dos burocratas, e não uma otimização das tarefas que já estão sob o seu poder), e de liberal quem diz que ele deve ser diminuído.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 04 Jan 2009, 18:01
por Apo
Máquinas excessivamente burocráticas só encontram adubo em culturas que não sabem se gerenciar sem ampla retaguarda estatal. Ampla é aquela que é mais do que necessária, é daninha e pior: uma vez enraizada, tende a se expandir além dos limites em que possamos avaliar sua profundidade. Só vemos os estragos ( que muitos socialistas ainda insistem em confundir como esteio aos menos favorecidos ).
Ps: Puta da cara com as cotas nas universidades. Um negro pobre tem mais do triplo de chance de entrar pela porta dos fundos - porque é negro e pobre - do que um branco ( ou seja, nasceu branco, não tem culpa de ser branco ) rico ou pobre de entrar pela porta da frente, em alguns cursos. Se a vaga não for preenchida ( porque o argumento é muito mais baixo do que o próximo colocado pelo sistema universal), a vaga fica em branco.
É justo e produtivo isto?
Burocratas servem à determinadas mentalidades. Geralmente de cunho paternalista, protecionista e populista.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 04 Jan 2009, 18:11
por Tarcísio
user f.k.a. Cabeção escreveu:Tarcísio escreveu:Exelente o seu foco, então continuo. Quando se trata de punição, visa-se dentre outras coisas restabelecer e reasegurar na sociedade os princípios que foram violados. Os meios para se fazer isso são: promover a segurança através da punição rápida, e o medo através da punião certa. A rapidez da punição reconforta os homens de bem, enquanto a certeza reprime os ruins, e as vezes os bons.
Tentando entender os mecanismos capazes de imprimir a certeza, ou seja, a efetividade, é que me perco. Assim como você me parece, também não consigo imaginar uma instituição não burocrática eficaz nessa esfera específica, alias, não acredito que ninguém tenha o feito de maneira que seja real e minimamente melhor do que no atual regime.
Bom, se ainda não o fizera, agora entenderá porque disse "moedor de carne".
Numa sociedade onde as liberdades individuais são uma das coisas mais preciosas, as penas quanto as irresponsabilidades seriam mais severas que as nossas, sem dúvida. Além, quando um regime penal não consegue ser eficaz, ele historicamente tenta compensar, tornando as penas mais pesadas. Se não existe efetividade, quando um é pego, o exemplo dele tem que valer por cem.
Por essas, e outras razões de pura ordem estrutural, eu não consigo imaginar empreendimentos privados ocupando-se dessas tarefas humanamente.
É normal que você não consiga imaginar tais empreendimentos privados, uma vez que estamos condicionados a raciocinar a questão de um ponto de vista estatista.
O fato é que tudo isso que você disse é verdade, mas nada implica que uma sociedade desburocratizada não possuiria meios para lidar com esses problemas.
E melhor ainda, numa sociedade desburocratizada, questões como o payoff entre punição e reabilitação, que geram tanta discussão sem fim em democracias, poderiam ser resolvidas competitivamente. Empresas de justiça e segurança poderiam oferecer serviços voltados para uma política de tolerância zero e repressão ao crime, cobrando o preço desse serviço, ou poderiam tentar usar de métodos alternativos.
A forma que eles encontrariam de comercializar e cobrar por esses serviços é um problema a parte que eles teriam que resolver, o máximo que eu poderia fazer é apresentar as minhas especulações particulares a respeito de como eu acho que eles poderiam fazer isso. De qualquer forma, esse não é o ponto mais importante, ainda que seja uma questão interessante do ponto de vista especulativo ou como exercício de imaginação. No mundo real, a forma como essas coisas se desenvolvem é orgânica e difícil de ser prevista de um modo geral. Pense em como seria difícil prever as diversas formas de cobrança e distribuição de serviços das empresas de telefonia celular ou de programação televisiva na época em que as tecnologias estavam despontando.
O mais importante é que através da competição entre essas abordagens e da seleção realizada pelo público consumidor poderíamos chegar a soluções muito mais coerentes, justas e democráticas do que tentando convencer outros numa democracia de que a minha idéia de lei e ordem deve ser imposta para todos os demais.
O princípio básico de “minha casa, meu castelo” valeria, quando você poderia deixar claro o código legal e penal válido na sua propriedade, a ser executado pela empresa de segurança e justiça que você contratou. Caso as pessoas considerassem suas leis draconianas demais, evitariam de frequentar suas propriedades, ou mesmo de fazer qualquer negócio com você. Caso elas achassem você permissivo demais também. Haveria assim algo de mais razoável para todos no meio do caminho, a partir do cálculo individual que cada um faria acerca do payoff entre segurança e liberdade.
Para mim, não sei, não consigo ir tão longe com meu otimismo.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 04 Jan 2009, 18:15
por user f.k.a. Cabeção
Tarcísio escreveu:Para mim, não sei, não consigo ir tão longe com meu otimismo.
Talvez porque você ainda não tenha percebido quão mais otimista é aquele que acredita que através da burocracia algo melhor possa ser conseguido.
Não te culpo, levei um tempo enorme para perceber isso também...
Talvez a maior fonte de resistência contra as soluções libertárias seja a idéia de que elas devam ser comparadas com situações hipotéticas ideais de perfeição, e não com as contrapartidas reais de autoritarismo burocrático disfuncional que temos diante de nossos olhos.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 04 Jan 2009, 18:35
por user f.k.a. Cabeção
Usuário deletado escreveu:Como uma sociedade anarco-capitalista conseguiria sobreviver em um mundo como o de hoje?
Resposta curta: produzindo, trocando, respeitando a propriedade privada alheia e suas leis, e defendendo-se de seus inimigos.
Resposta menos curta: a pergunta não é clara.
O que quer dizer "um mundo como o de hoje"?
Se com isso entende-se a cultura geral de dependência que supersticiosamente atribui aos burocratas do Estado propriedades místicas de providência, com certeza uma proposta anarco-capitalista teria pouquíssimas chances de ser bem sucedida, sendo friamente realista.
Mas esse obstáculo cultural é plenamente transponível pela adoção gradual de princípios libertários, tanto quanto foram ideologias racistas e outras intolerâncias coletivas de épocas passadas.
Se com isso você quer dizer se é viável uma sociedade anarco-capitalista sobreviver a coexistência com outras sociedades burocráticas, eu não consigo considerar nenhum motivo especulativo relevante o suficiente para supor que não, mas talvez você possa apresentar algum para debate.
Nighstalker escreveu:Esse ideal não seria análogo ao comunista? (Só daria certo se o mundo todo adotasse esse mesmo sistema)
Duplamente não. O comunismo não daria certo nem se todo mundo adotasse o sistema. Ele é intrinsecamente inviável devido a impossibilidade de calculo econômico socialista. Os diversos modelos de socialismo real foram apenas práticas em diversos níveis de intensidade de obstrução dos mercados, que jamais foram eliminados completamente em qualquer exemplo real por resultarem espontaneamente das ações e interações humanas mais simples.
O anarco-capitalismo em teoria não demandaria qualquer adoção global simultânea de seus princípios, bastando que um grupo conseguisse autonomia suficiente com respeito a qualquer controle burocrático para iniciar sua existência anarquista.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 04 Jan 2009, 19:10
por user f.k.a. Cabeção
Usuário deletado escreveu:O maior problema é a vontade política nessa direção, que político advogaria pelo fim de sua classe?
Esse é o tipo de falácia escondida no ato de se raciocinar sempre com tomadas extremas de posição.
O fato da maioria dos políticos não procurar extinguir sua classe não quer dizer que numa determinada circunstância político-cultural muitos deles não percebam vantagens em devolver poder e responsabilidades para os indivíduos. O anarco-capitalismo assim seria o Estado final de medidas liberais num contexto cultural onde a cultura de dependência estivesse sendo efetivamente combatida.
De fato, não é um processo que depende de qualquer boa-vontade ou espírito de sacrifício de políticos, mas de um aprimoramento cultural sobretudo.
Usuário deletado escreveu:Supomos que a região na qual situa-se o Brasil torne-se anarco-capitalista, como os indivíduos dessa região evitariam a invasão de uma nação estrangeira em seu território, uma vez que não haveria poder central para direcionar recursos e efetivo militar no sentido de conter algo desse tipo?
A questão da defesa privada é analisada em vários textos, e várias propostas já foram feitas.
A minha preferida pode ser encontrada num livreto chamado Teoria do Caos, de Robert P. Murphy. Ela mostra como empresas de defesa poderiam tercerizar serviços para companias de seguros, garantindo assim a segurança de regiões seguradas mesmo num sistema de concorrência entre seguradoras e empresas de defesa.
Mas é claro que essas propostas são meramente especulativas, a coisa poderia se dar de formas diferentes que nesse momento nós sequer podemos imaginar, simplesmente porque essas organizações do trabalho são fenômenos de ordem complexos e espontâneos, que não são planejados. É como tentar imaginar o voo de pássaros olhando para seus ancestrais, os dinossauros.
O que se precisa estar consciente é que a noção de externalidades é relativa a uma determinada forma de praticar um serviço, e não uma propriedade intrínseca de um determinado tipo de demanda. E que havendo demanda suficiente, são produzidos incentivos para que pessoas interessadas mobilizem recursos físicos e intelectuais para arquitetar as formas de satisfazê-la.
Um exemplo que eu costumo dar é o de sapatos. Estes poderiam ser "externalidades" se o Estado se encarregasse de tentar doa-los uniformemente ao público, e alguma dose de imaginação seria necessária para se perceber que eles poderiam ser vendidos em diversas variedades e preços para todos os gostos e bolsos.
De qualquer forma, o problema de defesa na sociedade anarco-capitalista talvez nem seja tão relevante assim, assim como não parece ser para a Costa-rica e diversos outros Estados praticamente desmilitarizados. Uma sociedade anarco-capitalista não representaria qualquer ameaça a outras nações, e poderia simplesmente contar com a idéia de que seus parceiros comerciais não anarquistas a defenderiam caso alguém resolvesse ameaça-la.
Usuário deletado escreveu:Tenho dúvidas sobre como seria a relação dessa sociedade com as outras nações estatistas. Haveria por exemplo restrições à imigração para essa sociedade anarco-capitalista? Ou esse tipo de política também seria determinada democraticamente pelos indivíduos?
Isso seria relativamente mais simples.
Quantos imigrantes invadem por ano a sua casa?
Pois é. Numa sociedade anarco-capitalista, cada pedaço de terra seria a "casa de alguém", e se não fosse não haveria nenhum conceito possível de invasão.
Os "imigrantes" entrariam na medida que os proprietários dos territórios que eles ocupariam os aceitassem (cobrando por isso ou os convidando), ou na medida que adiquirissem propriedades privadas ou as apropriassem da natureza. Nada pode ser mais "democrático".
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 04 Jan 2009, 20:06
por Herf
user f.k.a. Cabeção escreveu:Isso seria relativamente mais simples.
Quantos imigrantes invadem por ano a sua casa?
Pois é. Numa sociedade anarco-capitalista, cada pedaço de terra seria a "casa de alguém", e se não fosse não haveria nenhum conceito possível de invasão.
Os "imigrantes" entrariam na medida que os proprietários dos territórios que eles ocupariam os aceitassem (cobrando por isso ou os convidando), ou na medida que adiquirissem propriedades privadas ou as apropriassem da natureza. Nada pode ser mais "democrático".
A livre circulação de pessoas só é um problema nos estados de bem-estar social. Só aí surge a questão insolúvel de como conciliar as diversas liberdades individuais com o monte de serviços de bem-estar dos quais todos têm direito de usufruir "gratuitamente" e que é bancado com o dinheiro de todos.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 04 Jan 2009, 21:33
por user f.k.a. Cabeção
Usuário deletado escreveu:Infelizmente há uma tendência de aumento na estatolatria, ainda mais com essa crise econômica que tem sido constantemente utilizada para justificar maior burocracia e medidas intervencionistas.
Sim, pode ter certeza de que estou ciente disso.
Mas acreditar que essas tendências podem ser sustentadas por longos períodos é fazer pouco caso da inteligência das pessoas. Se mesmo nas mais profundas escuridões produzidas nos regimes mais fechados do mundo havia quem lutasse e divulgasse clandestinamente a liberdade, não será por conta de alguns retrocessos de autoritarismo econômico que deslizaremos para um milênio de escravidão socialista.
O momento atual pode ser desfavorável para a defesa de idéias liberais, mas é preciso ser sensato o bastante para perceber que não há qualquer motivo para se desesperar. Uma vez que os ânimos se acalmem e as pessoas recobrem suas dignidades elas estarão mais receptivas a novas mudanças e aberturas.
A crise de 29 produziu retrocessos no mundo todo, mas o mundo seis décadas mais tarde era em vários sentidos mais livre que o mundo seis, ou sessenta décadas mais cedo.
Talvez sejam escalas de tempo desanimadoras, mas com a rapidez do trânsito de informação e conhecimento existente na atualidade, eu estou bastante otimista com relação a um futuro próximo muito mais livre do que podemos imaginar. Mesmo que em épocas como a atual um otimismo desses possa parecer inconseqüente.
A internet hoje permite que mensagens de liberdade se reproduzam muito mais rapidamente. Uma discussão como a nossa sobre a viabilidade do anarco-capitalismo há nada mais do que duas décadas estaria reservada a círculos intelectuais muitíssimo restritos em países muito desenvolvidos. Hoje dois garotos que não integram nenhum círculo de intelectuais falam a respeito disso num forum eletrônico no Brasil, e como nós vários outros o fazem no Chile, na India, e na República Checa. Pensar nisso há 20 anos seria ousar bastante, no mínimo.
Usuário deletado escreveu:O paradigma liberal é muito pouco difundido no mundo, creio que a Escola Austríaca tenha hoje pouca proeminência em vista do que já teve no passado, aqui no Brasil nem sei se ainda existe aquele Instituto Liberal sediado aí no Rio de Janeiro, possivelmente deve ter sido fechado por conta de falta de apoio e de recursos.
Eu também desconheço a saúde do Instituto Liberal, mas isso não é tão importante.
Quanto a Escola Austríaca, eu acho que você está equivocado.
Em primeiro lugar ela nunca nem chegou perto de ser o mainstream do pensamento econômico. Mas eram os livros dos pensadores austríacos que penetravam a cortina de ferro em cópias clandestinas, e que serviram para a formação daqueles que hoje estão ou no poder ou na oposição de vários daqueles países.
Em segundo lugar, o prestígio da escola parece ampliar-se gradualmente com o tempo, com o florescimento de think tanks, sites e grupos de discussão ao redor do mundo voltados sobretudo para o debate de suas propostas.
Um austríaco inveterado, como Ron Paul, que tem na parede de seu escritório os retratos de Mises, Hayek e Rothbard, conseguiu mobilizar uma atenção e apoio financeiro notável na última eleição presidencial americana, mesmo tendo sido ostensivamente boicotado pela grande mídia e pelo seu próprio partido. Foi considerado vencedor de todos os debates que foi autorizado a participar, por larga margem e mesmo assim seu nome não foi incluído nas várias listas de eleições primárias do partido republicano.
O boicote é natural e esperado. O menos esperado foi a repercussão produzida pela sua candidatura e suas propostas, efeito positivo gerado quase que por exclusiva campanha na internet. No mínimo interessante, mas acredito que mais do que isso, inspirador.
É claro que é impossível ignorar os movimentos de retrocesso produzidos pelos diversos rufiões ruidosos e demagogos que adoram aparecer. Por essa razão que acreditamos estar sendo soterrados por Hugos Chávez e Lulas, e de fato na América Latina o caso parece ser esse, mas isso não pode ser visto como uma tendência geral, mas como um surto de ignorância que possui suas fases de aparecimento, crescimento, diminuição e morte, ciclo de vida produzido pelo simples fato de que as idéias incorporadas nesses panacas não têm a menor chance de vigorar por serem contraditórias e viciosas. Evidentemente que eles devem ser combatidos, quanto mais cedo nos livrarmos dessa raça, melhor. Mas eles não são a nova onda do futuro, são apenas ecos do misticismo e ignorância que assolou o nosso passado e ainda se mantém vivos no nosso presente.
Saber observar através da turva superfície dos grandes acontecimentos as verdadeiras mudanças. Na Venezuela de Chávez, milhões já saem nas ruas para questioná-lo. As pessoas não são idiotas, e por essa razão não agirão como idiotas por muito tempo, mesmo que tenham ficado bem confusas no começo.
É preciso concentrar-se na guerra cultural, é dela que derivam as mudanças políticas. É contra a cultura de dependência e irresponsabilidade que devem ser disparados os argumentos liberais. Cedo ou tarde, as pessoas perceberão que não podem viver umas as custas das outras. Isso é uma forma idiota de agir, e acreditar que a humanidade mergulharia num comportamento desses até se destruir por completo é subestimar demais a inteligência dos seus semelhantes.
Usuário deletado escreveu:Supomos que em determinada região haja um grupo muito grande de pedófilos, este grupo vive em uma sociedade anarco-capitalista, teriam aqueles que abominam a pedofilia o direito de violar os direitos individuais desses pedófilos para impedir com que esse tipo de aberração seja praticada?
Outra questão polêmica é a do direito dos pais deixarem de alimentar seus filhos (coisa que Rothbard defendeu em um artigo), acho inconcebível uma coisa dessas, não sei muito bem como uma sociedade que condene essa prática agiria para punir esses indivíduos.
Suponhamos que um país adote leis pedófilas? Deve o Brasil invadi-lo?
Na América o aborto é permitido, no Brasil é um crime. O que fazer?
Você não está percebendo que a proposta anarco-capitalista não tem por intenção produzir uma sociedade moralmente perfeita, e a hipótese que você faz de que ela porventura viesse a acomodar imperfeições graves não deve ser vista como um contra argumento válido tanto quanto não o é para as moralmente muito imperfeitas sociedades burocratizadas.
Devemos estar concentrados no seguinte problema: numa sociedade livre, seriam as pessoas mais pedófilas do que numa sociedade burocrática? Seriam as leis anti-pedofilia mais ineficientes que as existentes na atualidade?
Essas são questões razoáveis.
De fato, o anarco-capitalismo não impede as pessoas de se organizarem em comunidades pedófilas, assassinas, abortistas, coprofagistas, satanistas ou o diabo a quatro. Mas a burocracia também não.
O que a burocracia faz é sancionar leis que são compatíveis com a moral vigente na sociedade, e é exatamente o que faria o mercado de leis anarquistas, mas de forma mais eficiente. Não é a burocracia que garante a primazia da moral verdadeira, mas sim os valores cultivados pelos indivíduos.
Se esses valores fossem corrompidos o suficiente para acomodar comportamentos tais como a pedofilia, pouca diferença faria se fossem socialistas, social-democratas, liberal-democratas ou anarquistas.
O que eu posso dizer, da minha parte, é que qualquer sistema legal e penal que eu viesse a me associar voluntariamente num regime anarquista deveria prescrever graves sanções ao comportamento pedófilo, e procuraria avaliar o mesmo para todas as pessoas com quem eu interagisse. Eu acho que, assim como atualmente, a maioria das pessoas assumiria posicionamentos similares, de modo a pedofilia ser praticamente banida como comportamento social tolerável.
Analogamente para drogas ou aborto, e vários outros comportamentos viciosos nos quais as pessoas acreditassem ser odiosos, como o caso do abandono de menores. Numa sociedade livre você também é livre para discriminar comportamentos.
Diferentemente de Rothbard, eu acredito que a maioria das pessoas discriminaria pais negligentes, e consideraria adotar um regime penal que os sancionasse.
Mas eu posso estar enganado quanto a minhas previsões de comportamentos morais: pode vir a ser que livres, as pessoas escolhessem viver numa sociedade abortista, com heroína e prostituição infantil liberadas. Mas tenho uma razão forte para acreditar que não: as sociedades burocráticas atuais não são assim, e com certeza nós não devemos isso aos burocratas paladinos da boa moral.
Usuário deletado escreveu:Outro exemplo um pouco maluco: Imagine uma sociedade anarco-capitalista formada de cristãos fundamentalistas que contratem Tribunais Privados para agirem como a Santa Inquisição. Como uma minoria de indivíduos ateus/de outras religiões poderia agir para impedir com que isso ocorresse?
O que impede a mesma coisa de ocorrer num regime burocrático? Basta que os burocratas considerem interessante favorecer os fanáticos para que algo desse tipo ocorro, e ora veja só, já ocorreu!
A uma certa tendência a acreditar que num regime sem burocratas as pessoas atacariam insanamente umas as outras e embarcariam em espirais de imoralidade e luxúria, simplesmente porque não haveria imposição de lei oficial mediante a força de um exército estatal.
É bastante ridículo como crença quando visto dessa forma, não acha?
Usuário deletado escreveu:Acho que o anarco-capitalismo parte da premissa de que a maior parte das pessoas é racional e respeita as liberdades individuais dos outros, que agiria eticamente sem a coerção do Estado, não sei se acredito muito nisto.
Essa não é só uma premissa para o anarquismo, mas para a própria democracia, se você parar para pensar.
Aliás, se eu achasse que as pessoas não eram racionais, o único regime que eu consideraria justo seria a ditadura onde eu fosse o ditador.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 06 Jan 2009, 10:19
por Herf
Acho que desde que ninguém fosse forçado a contribuir com os empreendimentos dessa empresa, é descabida a comparação dela com um estado.
Re: O contra-senso do “socialismo de boa índole”
Enviado: 07 Jan 2009, 11:45
por user f.k.a. Cabeção
E preciso saber resistir a tentacao de tentar explicar como tudo funcionaria numa sociedade livre ate porque isso seria extremamente contraditorio: se a sociedade fosse livre, a ordem nao viria do planejamento que eu ou voce fariamos agora para ela, mas emergiria espontaneamente dos contratos entre individuos. Esse processo complexo e tao imprevisivel quanto o processo de selecao natural que diferencia as especies, alias, conforme Hayek demonstra, esses sao dois processos analogos em varios pontos.
Nos podemos especular como a sociedade livre organizaria sua infraestrutura ou sua legislacao tao precisamente quanto podemos dizer com o que as aves de 250 mil anos no futuro se parecerao. Nossas especulacoes podem ate ser coerentes e razoaveis, mas dificilmente acertariamos se arriscassemos uma descricao muito precisa.
Os aeroportos e hidreletricas no mundo todo de hoje sao planejados em parte ou completamente por governos e departamentos burocraticos. Mas o simples fato deles serem complexos e grandes nao torna necessaria uma burocracia, varias empresas sao complexas e grandes.
Eles sao controlados por burocracias por questoes culturais e circunstanciais que os tornaram estrategicamente atraentes para os governos. E os governos se encarregaram de esgotar a demanda pelos seus servicos de tal modo que nao ha muito interesse de empresas privadas em embarcar nos custos de projeta-los e construi-los sozinhas. As vezes ate sao impedidas por lei de faze-lo.
Estamos na situacao onde o governo fabrica muitos "sapatos" ruins e cria leis para impedir pessoas de livremente produzirem "sapatos" em grandes fabricas privadas. E entao os ideologos da burocracia alegam que e impossivel para a iniciativa privada produzir "sapatos" pois eles demandam muito em logistica. Falacia evidente.
Os burocratas nao sabem uma equacao, uma lei da natureza ou da engenharia, uma teoria sobre o comportamento humano que os diferencie de pessoas livres cooperando via contrato. Nao ha absolutamente nada no leque de possibilidades deles que nao esteja ao alcance da iniciativa de empreendedores. E apenas isso que se precisa ter em mente.
Quanto a uma empresa privada numa sociedade de livre contrato que possua aeroportos ou hidreletricas, ela seria tao "estatista" quanto qualquer outra empresa privada, na medida que voce so se associaria a ela e se serviria das suas ofertas voluntariamente.