Revolução de 1964: militares não tinham um plano

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Fernando Silva
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Revolução de 1964: militares não tinham um plano

Mensagem por Fernando Silva »

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"Jornal do Brasil" 05 de Abril de 2009

Golpe ou revolução?

Gláucio Ary Dillon Soares
CIENTISTA POLÍTICO


O debate sobre o caráter da conspiração e do golpe reflete a concepção do Estado acolhida pelos estudiosos: os que percebem o Estado como um todo integrado, tendem a salientar o alto grau de coordenação e, até mesmo, o caráter unitário do golpe e do regime; os que salientam a complexidade do estado e a autonomia das instituições e grupos dentro do estado, tendem a perceber múltiplas conspirações e conflitos dentro do regime.

Quase todos os que trabalham ou trabalharam dentro do Estado enfatizam o caos, o conflito e a duplicação de esforços. Entretanto, na sociedade civil e entre estudiosos, a imagem mais comum é a do Estado altamente integrado, tal qual transparece no pensamento jurídico, muito influenciado pela Teoria Geral do Estado. A noção de Estado, segundo essa tradição, é abstrata, formal, tendo sido muito influenciada pelo Estado tal qual teria existido nos principais países europeus no século XIX.

De lá para cá, o Estado se multiplicou e se modificou, dando lugar a uma realidade que clamava por uma teoria mais afinada com ela, com a sua complexidade, com o seu tamanho. O Brasil não foi exceção à tendência secular ao crescimento e à maior complexidade. Uma grande estatal, como a Petrobrás ou o Banco do Brasil, emprega um número de pessoas e tem uma receita consideravelmente maior do que todo o Governo Federal do Brasil em meados do século XIX.

Entretanto, foi somente nas últimas décadas que as formulações teóricas mais abstratas passaram a refletir essa nova realidade, produto de modificações contínuas ao largo de um século. No Brasil, essa nova teorização entrou com considerável atraso, em parte devido à forte influência da tradição jurídico-formal e, em parte, devido à forte influência, nas Ciências Sociais, de uma vertente do marxismo vulgar, que insistia numa visão simplificada do Estado, negando-lhe autonomia, atrelando-o "à infra-estrutura econômica" e subtraíndo-lhe a complexidade.

As principais pesquisas sobre o regime militar, particularmente sobre o seu início, foram realizadas há duas décadas: seguiram linhas separadas, e tiveram ênfases muito diferentes, mas que tinham a unificá-las a perspectiva, dominante na época, de coerência nas instituições, inclusive no Estado e na instituição militar.

As duas versões mais aceitas na literatura especializada parecem acatar uma teoria do Estado que enfatiza integração e unicidade. Essa aceitação é implícita, mais por omissão em sublinhar o seu caráter fragmentário num contexto intelectual no qual dominava o suposto da coerência, o que ironicamente chamamos de visão "arrumadinha" do Estado e dos militares.

Entretanto, essas ampliações teóricas foram muito além do que os dados permitiam. Além disso, elas incorreram em alguns erros:

supor uniformidade no pensamento dos militares, desconhecendo que, em qualquer instituição tão complexa, a variação de opiniões é inevitável;

analisar a conspiração militar através de uma ótica teórica construída a partir de conspirações feitas por partidos;

ignorar que a entrada de Castelo Branco, a grande força unificadora da conspiração, foi feita menos de duas semanas antes do golpe;

ignorar que, se, por um lado, a conspiração incluiu elementos e organizações civís, pelo outro, o golpe e o regime foram militares;

ignorar que a grande maioria dos conspiradores, particularmente os militares, não tinha qualquer projeto de governo.

O objetivo deste artigo é reconstruir a história e o caráter da conspiração e do golpe, especialmente da falta de plano de governo ou projeto para o país, entre os militares, durante a conspiração. Os projetos de governo e de Estado vieram a posteriori.

O general Carlos Fontoura, em resposta a pergunta a respeito da conspiração e do golpe de 1964, usou, espontaneamente, a expressão "ilhas", para caracterizá-los: "Ilhas. Ilhas. Pode escrever isso. Eu lhe dou a minha palavra de honra que eram ilhas. Nós nunca nos centralizamos. Só houve um início de centralização na véspera da revolução. Foi uma circular do general Castelo Branco, chefe do Estado Maior do Exército..."

O General Meira Mattos, que desempenhou pesados papéis no regime militar, espontaneamente definiu a conspiração como "multipolar". Sublinhou, como Carlos Fontoura, a existência de polos espacial e funcionalmente separados, e a importância da adesão de Castelo Branco. A adesão de Castelo Branco foi o traço de união do que, de outro modo, eram conspirações - no plural - quase isoladas: "A conspiração que acabou na revolução de 31 de março de 1964 foi multipolar. Houve vários polos de conspiração e esses polos não tinham muito entendimento". A leitura dos depoimentos mostra que essa união foi tática e temporária, e que o conflito continuou.

O general Fiúza de Castro, considerado da linha dura, também enfatizou que o elemento unificador era negativo: "- ...todos estávamos de acordo, sabíamos o que não queríamos, os grupos eram unânimes em saber o que não queriam, não queriam uma república popular instalada no Brasil. Mas o que queriam, aí divergiam muito. Mesmo no interior de cada grupo havia grandes divergências sobre o que queriam. Uns queriam apenas afastar o governo, afastar o Goulart e a turma do Goulart. E deixar. Outros queriam instalar realmente um regime forte, ditatorial, que limpasse e impedisse de uma vez por toda que o país voltasse àquele estado."

Os primeiros trabalhos de pesquisa a respeito do regime militar, superestimaram o quanto de ideologia havia antes do golpe propriamente dito. Inicialmente, as interpretações do golpe partiram de teorias estruturais das conspirações e dos golpes, e não da pesquisa concreta sobre o golpe de 1964. Nossas entrevistas com líderes militares da conspiração corroboram o escrito pelo General Meira Matos, começando com uma entrevista, aos jornais de Goiás, nos primeiros dias do golpe, além de conferências e publicações ao largo de um período muito mais amplo: "A Revolução brasileira somente se concretizou numa dinâmica de direção política após o movimento de 31 de março. Antes disso, era o somatório de aspirações e preocupações diversas, tendo por denominador comum dois sentimentos anti - o anticomunismo e o antijanguismo - sentimentos esses fundidos no espírito de uns revolucionários e fundidos no de outros ... que serviram para a derrubada, mas não serviriam para a construção".

Em 1971, agregava o general: "Vitoriosa a Revolução de 31 de março de 1964 ... surgiu o grande problema. Qual o programa da Revolução? ... Assim é que, nos primeiros dias de abril de 1964, o governo empossado se deparava com um problema sério e inadiável ... o de criar uma doutrina para o movimento vitorioso". A exposição do general é cristalina, deixando claro que primeiro vieram a conspiração, o golpe e a conquista do poder, e somente depois o ideário.

A ausência de um programa "revolucionário", de uma agenda, de um projeto ou até de um programa de governo, quando os conspiradores tomaram o poder, foi confirmada pelo general Otávio Medeiros que, por um lado, participou ativamente da conspiração e, pelo outro, exerceu funções importantes durante o regime militar, também considerado da linha dura, disse, em resposta à pergunta: "A conspiração tinha um programa?" - O.M. - "Nenhum. Ninguém sabia o que é que ia fazer. Sabia só que tinha que deter aquilo, que não podia mais prosseguir".

As entrevistas com os militares nos levam a algumas precauções e considerações. O leitor poderia perguntar se a visão dos militares não teria sido "combinada", uma espécie de "história oficial". Entretanto, os militares entrevistados não tinham conhecimento do roteiro da entrevista; eram de "gerações" diferentes e não pertenciam ao mesmo grupo político. Alguns pertenciam a grupos antagônicos, como o "da tropa", cuja figura principal era Costa e Silva, e outros ao chamado grupo da Sorbonne, associado a Castello Branco.

O fato de que alguns altos próceres militares, assim como suas ações, tivessem sido elogiados por uns e duramente criticados por outros, mostra que as divergências entre estes grupos continuavam fortes décadas depois. Evidentemente, os depoimentos não são retratos da realidade: são parte da memória militar, e não são a história do regime militar. Não obstante, julgo que algumas questões foram elucidadas e validadas tanto através da concordância, quanto através da discordância.

A avaliação que os militares "de carreira" fazem da cadeia paralela ou técnica é claramente negativa, ao passo que os membros da "comunidade de informações", ao contrário, a valorizam. A discordância valida, explicitamente, a existência de posições conflitantes em relação ao papel da "comunidade de informações".

O que começou em 1964 não tinha um projeto nacional ou sequer uma proposta de governo. Não havia maquete, nem mesmo um diagrama. Foi contra e não a favor. É um erro dar a um golpe uma coerência e uma consistência que ele não tinha.

Trancado