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A Crônica Religiosa como Expressão Criativa

Enviado: 08 Mai 2009, 15:53
por Acauan
A Crônica Religiosa como Expressão Criativa

Por Acauan


Quando religiosos se perguntam por que diabos céticos bisbilhotam a seara do cotidiano religioso, geralmente expressam respostas não lá muito lisonjeiras aos cronistas diletantes que vão da clássica "isto é coisa de quem não tem o que fazer", passando pelas também consagradas "isto é coisa de gente revoltada com Deus ou que não conhece a Deus ou que está possuída por Satanás ou todas as anteriores", podendo chegar a conclusões mais ousadas que, sabe-se lá por quais métodos de investigação, apontam as causas da ofensiva curiosidade em aspectos obscuros e sinistros da psique ateísta.

Para o observador do comportamento, a quem tais manifestações servem para aguçar seu interesse pelo tema, a crônica é antes e acima de tudo um exercício criativo.

Explica-se.
A religião tradicional, no sentido estrito do termo, se propõe a ligar nosso universo a outro mais amplo, que o conteria e transcenderia.
Na filosofia, tal se define no conceito do infinito metafísico, do qual a realidade física que percebemos é apenas sua fração exposta.

Só que religião não é filosofia.

Quase ninguém é judeu, cristão, muçulmano, hindu ou budista por ter estudado profundamente os textos básicos destas religiões, assim como, não raro, os fiéis mais fervorosos têm conhecimento intelectual menos que básico dos fundamentos teológicos das doutrinas que seguem.

A simples possibilidade de que alguns céticos possam conhecer teologia mais e melhor que a grande maioria dos crentes é anátema para a grande maioria daquela grande maioria, só que tal é apenas conseqüência direta e esperada de alguns do primeiro grupo terem estudado o assunto mais e melhor – metodicamente falando – que a média do segundo.

Quem assim o fez, logo descobriu que os textos religiosos definem a cosmovisão na qual expressam sentido coerente, sendo inútil qualquer crítica racional fundamentada em premissas alienígenas ao credo em questão.
O erro dialético básico de muitos céticos é criticar racionalmente a religião com base exclusiva no cientificismo materialista, críticas que os religiosos, mesmo os menos versados, conseguem responder com mais ou menos facilidade, apenas confrontando as premissas não comprovadas ou não comprováveis tomadas a priori como verdadeiras por cada parte.

Fundamentalistas religiosos cometem o mesmo erro em sentido invertido, quando tentam provar premissas religiosas pelo método científico naturalista positivo, cujas premissas próprias são necessariamente antagônicas às das crenças defendidas.

Para se entender o universo religioso é preciso assumir suas premissas, o que é fácil, e tentar enxergar o mundo dos crentes a partir delas, o que é difícil.
Aliás impossível, pois a realidade vivida pelo religioso é mais intuitiva que racional, como aliás o é qualquer vivência da realidade.

Assim, o exercício de confrontar o cotidiano religioso com as premissas racionais de suas teologias leva apenas a um infindável relato de contradições, prato cheio para o observador que não tenha outro objetivo que não suprir-se de matéria prima para críticas negativas ao observado.

O grande desafio é compreender uma rede de intuições e sentimentos compartilhados no âmbito exclusivo dos que dominam as linguagens não verbais que os expressam, principalmente através de rituais de comunhão, dos quais não participa quem não é do clube.
Mesmo que algum penetra engane o porteiro e se imiscua no rito, dele só assimilará a forma, nunca o conteúdo.

Assimilar tais conteúdos – quando e até onde possível - exige um esforço de abstração, mais do que de raciocínio lógico, para, pelo menos, tentar um mergulho neste mar estranho, mesmo sem ter a mais mínima noção de como nadar nele, com menos intenção ainda de permanecer lá em definitivo ou, Deus nos livre e guarde, nele se afogar, se é que me entendem.

Daí surge o exercício criativo de explorar uma realidade alheia como se fosse nossa, o que, mantidos cada macaco no seu devido galho, é o modus operandi dos escritores de ficção – que em seu auge criam registros das experiências reais que o inspiraram mais perenes que as próprias fontes vivas da inspiração.

Ou, em outras palavras, um exercício mais poético que dialético, pegando carona na teoria de alguém.

Tudo isto pode ser até coisa de quem não tem o que fazer, como querem os incomodados, mas não chega a ser obra do capeta, como querem os mais incomodados ainda, uma vez que tal experiência ajuda muito a abrandar preconceitos, nem que seja unilateralmente.

Re: A Crônica Religiosa como Expressão Criativa

Enviado: 08 Mai 2009, 16:36
por marta
:emoticon45: Para por em prática é que são elas!! Que dá, dá, mas...

Gostei dessa :emoticon16:

Mesmo que algum penetra engane o porteiro e se imiscua no rito, dele só assimilará a forma, nunca o conteúdo.

Re: A Crônica Religiosa como Expressão Criativa

Enviado: 08 Mai 2009, 16:49
por Benetton


Acauan escreveu:A Crônica Religiosa como Expressão Criativa

Por Acauan


(...)

Quase ninguém é judeu, cristão, muçulmano, hindu ou budista por ter estudado profundamente os textos básicos destas religiões, assim como, não raro, os fiéis mais fervorosos têm conhecimento intelectual menos que básico dos fundamentos teológicos das doutrinas que seguem.

(...)

Assimilar tais conteúdos – quando e até onde possível - exige um esforço de abstração, mais do que de raciocínio lógico, para, pelo menos, tentar um mergulho neste mar estranho, mesmo sem ter a mais mínima noção de como nadar nele, com menos intenção ainda de permanecer lá em definitivo ou, Deus nos livre e guarde, nele se afogar, se é que me entendem.

Daí surge o exercício criativo de explorar uma realidade alheia como se fosse nossa, o que, mantidos cada macaco no seu devido galho, é o modus operandi dos escritores de ficção – que em seu auge criam registros das experiências reais que o inspiraram mais perenes que as próprias fontes vivas da inspiração.



Ateu de gabinete possui uma situação muito cômoda e aparenta um conhecimento, muitas vezes, superior ao do religioso. Mas por que isso acontece?

O religioso tradicional não está muito preocupado em ser um versado na Bíblia. Tirando alguns pastores e padres que decoram cada versículo do Livro Sagrado, a grande maioria dos fiéis não está preocupada com as incoerências que lá existem.

Para eles, os submissos fiéis, o que importa, são as pregações nos cultos e missas, nas quais eles assimilam o que julgam necessário ao seu progresso espiritual, e pronto. Ora, se já existe um suposto intermediário entre o Deus e seu povo, para que perder tempo com os indecifráveis códigos da Bíblia que, por vezes, mais atrapalham do que ajudam? Qual o fiél comum que entende bem os relatos sinistros e metafóricos do Apocalipse? E precisa entender? Para eles, basta saber que Jesus virá um dia e os salvará dos tormentos.

No caso dos católicos, a coisa piora, pois só o papa pode conhecer o real significado da palavra de Deus. Qualquer interpretação contrária, é anátema, pois o papa é o sucessor de São Pedro na chefia da Igreja. Logo, ele não pode ( o certo é "poderia" ) errar. Ele é supostamente infalível nas questões de fé, ou seja, nas definições ex-catedra. Bem, é assim que eles se julgam.

Talvez, para que o ateus possam se assegurar do real "funcionamento" das premissas religiosas, seria de bom proveito que, além de estudar e entender bem a bíblia, o ateu saísse do seu gabinete e frequentasse regularmente um culto, missa ou seções espíritas. Não só uma ou duas vezes, mas durante um longo período para se conhecer a mola que impulsiona os religiosos a seguirem dogmas, pregações e fenomenologias.

Só assim o ateu interessado poderá se orgulhar de que conhece bem o fundamento das religiões.

O perigo é se empolgar, gostar tanto e passar a questionar seu próprio ateísmo, e assim se tornar mais uma "ovelha" do rebanho religioso...





Re: A Crônica Religiosa como Expressão Criativa

Enviado: 08 Mai 2009, 16:58
por Apo
marta escreveu::emoticon45: Para por em prática é que são elas!! Que dá, dá, mas...

Gostei dessa :emoticon16:

Mesmo que algum penetra engane o porteiro e se imiscua no rito, dele só assimilará a forma, nunca o conteúdo.


Também gostei demais desta frase.

Muito bom o apanhado do Acauan.

Re: A Crônica Religiosa como Expressão Criativa

Enviado: 08 Mai 2009, 17:11
por Apo
Isto de ir lá e tentar mergulhar naquele mundo me faz lembrar a seguinte situação:

Nestes programas de TV do tipo "Viajantes" ou " Mochileiros", que se vê em canais como Discovery ou Travel & Living, os viajantes andam pelo mundo conhecendo, experimentando, tentando "viver como" as várias culturas, suas tradições, comidas, filosofia de vida e aspectos espirituais.

É comum ver-se eles participando de rituais, como simples espectador ou até aceitando algum grau de imersão.

Pergunta-se: tendo estudado ou não acerca de tudo o que acabam por vivenciar, por quais critérios deveriam escolher ou julgar alguma destas seitas ou religiões como a verdadeira ou detentora da verdade? Eles estão lá e conseguem, em certo grau, e se quiserem, mergulhar em alguma parte abstrata da psiqué humana como os demais. Mas é só. Justamente não existe esta inerência de se ligar ou crer em algo assim. Acredita e se filia quem quer.

Todos somos capazes deste exercício. Todos temos um grau de transcedência mental que aplicamos na arte, na Filosofia, na educação e no amor. Não necessariamente numa ou outra doutrina ou linha de fé. Muito menos em personagens. É tudo um jogo social e fictício. Ou os tais "viajantes" sucumbiriam a tantos marcos referenciais em nome de algo que não é consenso, muito pelo contrário.

Hora da "viagem" e hora de voltar pra casa: o bom senso e a lógica.

Re: A Crônica Religiosa como Expressão Criativa

Enviado: 09 Mai 2009, 10:46
por Fernando Silva
Benetton escreveu:Para eles, os submissos fiéis, o que importa, são as pregações nos cultos e missas, nas quais eles assimilam o que julgam necessário ao seu progresso espiritual, e pronto. Ora, se já existe um suposto intermediário entre o Deus e seu povo, para que perder tempo com os indecifráveis códigos da Bíblia que, por vezes, mais atrapalham do que ajudam? Qual o fiél comum que entende bem os relatos sinistros e metafóricos do Apocalipse? E precisa entender? Para eles, basta saber que Jesus virá um dia e os salvará dos tormentos.

Uma crente já me disse que "Não conheço a Bíblia e é melhor assim".
Acontece que ela se dispunha a esclarecer todas as minhas dúvidas, já que acreditava que meu ateísmo era fruto da ignorância da "Palavra". Logo na primeira mensagem, disse várias vezes ao longo do texto "Pode perguntar!".
Uma semana depois, a auto-confiança ingênua deu lugar a "Não me escreva mais!".
Senti-me um monstro...
Benetton escreveu:Talvez, para que o ateus possam se assegurar do real "funcionamento" das premissas religiosas, seria de bom proveito que, além de estudar e entender bem a bíblia, o ateu saísse do seu gabinete e frequentasse regularmente um culto, missa ou seções espíritas. Não só uma ou duas vezes, mas durante um longo período para se conhecer a mola que impulsiona os religiosos a seguirem dogmas, pregações e fenomenologias.

Passei mais de 40 anos frequentando a igreja, além de ter aulas de religião e a família rezar reunida em casa todos os dias.
O que aconteceu é que parei de aceitar as interpretações que tentavam me impingir para textos que me pareciam dizer outra coisa.
Parei de enxergar A onde estava escrito B.

Re: A Crônica Religiosa como Expressão Criativa

Enviado: 09 Mai 2009, 14:14
por marta
Benetton escreveu:
Talvez, para que o ateus possam se assegurar do real "funcionamento" das premissas religiosas, seria de bom proveito que, além de estudar e entender bem a bíblia, o ateu saísse do seu gabinete e frequentasse regularmente um culto, missa ou seções espíritas. Não só uma ou duas vezes, mas durante um longo período para se conhecer a mola que impulsiona os religiosos a seguirem dogmas, pregações e fenomenologias.

Só assim o ateu interessado poderá se orgulhar de que conhece bem o fundamento das religiões.

O perigo é se empolgar, gostar tanto e passar a questionar seu próprio ateísmo, e assim se tornar mais uma "ovelha" do rebanho religioso...


Meu ateísmo não chega a esse fanatismo. Tá loco, Benê :emoticon12: :emoticon12: !!

Re: A Crônica Religiosa como Expressão Criativa

Enviado: 09 Mai 2009, 14:20
por marta
Apo escreveu:Isto de ir lá e tentar mergulhar naquele mundo me faz lembrar a seguinte situação:



Eu acho que o Índio quis levar o caso mais para o lado da "empatia". Colocar-se no lugar do crente e procurar ver as religiões sob a ótica deles. Isso não é tão difícil. Ele tem razão quando afirma que a argumentação ateísta ganha força quando vestida com essa roupagem. Dizer que deus é de uma inutilidade ímpar na nossa vida, choca tanto um crente, que ele trava a mente e não absorve mais nada. Acho que é por ai