As Lápides de Plaszow
Enviado: 27 Jan 2006, 19:58
As Lápides de Plaszow
Postado originalmente em 13/5/2005 20:42:41
Por Acauan
Neste mês de maio de 2005 completou-se sessenta anos do fim da Segunda Guerra Mundial na Europa.
Como aniversários com números redondos pedem comemoração especial (e, espera-se, alguma reflexão), se reavivam nesta época as lembranças do que foi aquela guerra, com destaque especial para sua memória mais sinistra – Shoa, o Holocausto.
A pergunta que melhor resume o choque que as imagens dos campos de Bergen-Belsen e Dachau provocaram no Ocidente é "como puderam?", pergunta que se torna mais terrível se apresentada de outra forma – "como pudemos?".
Há teses abrangentes e aprofundadas para explicar como um dos povos mais civilizados do mundo decidiu seguir cegamente um bando de gângsteres psicopatas e megalomaníacos, renunciando a séculos de cultura cristã-ocidental, rumo a um mergulho de cabeça na barbárie.
Como não sou especialista em nada, prefiro chamar tudo aquilo de loucura, pura e simplesmente.
Fora das teses, a resposta ao "como puderam?" ou (pudemos) não deve, para mim, ser perscrutada nas fotos das pilhas de cadáveres insepultos de Mauthausen, Buchenwald ou Majdanek. O horror presente naquelas imagens é óbvio e só traria respostas se elas também fossem.
Antes de a fumaça começar a sair das chaminés de Birkenau, os judeus que viviam nos territórios dominados pelos nazistas eram alvos de perseguição sistemática e crescente.
Esta perseguição era comumente brutal e primitiva, como na tristemente célebre Kristallnacht, a Noite do Vidro Quebrado, em 1938, quando ataques da SS aos judeus e seus estabelecimentos comerciais resultaram em dezenas de mortos, centenas de sinagogas incendiadas, milhares de lojas destruídas e dezenas de milhares de prisioneiros enviados aos campos de concentração.
Mas a brutalidade primitiva era apenas um dos tentáculos da política anti-semita alemã, complementada pela propaganda ostensiva de Goebbels e por um conjunto de decretos segregacionistas, as infames Nürnberger Gesetze (Leis de Nuremberg).
Estes decretos estabeleciam proibições aos judeus que se tornavam gradativamente mais opressivas a cada nova Rassengesetz (lei racial), Reichsbürgergesetz (lei de cidadania) ou Gesetz zum schutz des deutschen Blutes und der deutschen ehre (lei de defesa do sangue e da honra do povo alemão).
Esta gradação sustenta a possibilidade de a marcha dos alemães rumo à ruína moral como povo não ter sido uma queda involuntária em um abismo habilmente oculto pelos líderes nazistas, como querem as interpretações históricas conciliadoras.
Pessoalmente vejo a coisa como uma nação descendo para o inferno, degrau por degrau, mais atenta aos estandartes tremulados sobre suas cabeças do que ao fétido enxofre que começava a contaminar-lhe os pés.
Uma das primeiras coisas que os alemães vetaram aos judeus foi o acesso às piscinas. Seguiram-se, entre muitas outras, as proibições de os judeus freqüentarem praças públicas, andarem pelas calçadas (tinham que caminhar pelas sarjetas), usarem transporte coletivo e a obrigatoriedade de portar a estrela de Davi como identificação e de tirarem o chapéu para qualquer alemão com quem cruzassem.
Comparadas ao morticínio que se seguiu, estas leis parecem mais mesquinhas do que monstruosas, ou, quando muito, um mal menor em comparação.
Mas esta é uma conclusão errada, que parte da premissa falsa de que a estes infortúnios secundários seguiu-se o Holocausto. Como se fossem coisas distintas.
Não se trata de uma tragédia menor antecedendo outra maior e sim de capítulos da mesma tragédia.
Pegue-se o exemplo da ordem aos judeus para que tirassem seus chapéus para qualquer "ariano" que encontrassem na rua.
Transporte isto para sua realidade atual e pense como se sentiria diante de um homem forçado por lei a cumprimentá-lo de modo subserviente?
Eu me sentiria envergonhado de ser o motivo de tal reverência. Preferiria atravessar a rua a ter que enfrentar o fato de que minha simples proximidade obrigava outro homem a submeter-se a uma humilhação pública.
Pelo que sei, foram pouquíssimos os alemães que manifestaram tal incômodo, assim como muitos devem ter achado natural mulheres judias com crianças no colo esgueirarem-se pelas sarjetas, entre o trânsito das ruas e a calçada que não lhes era permitida.
A Solução Final é tão filha desta aceitação passiva daquilo que deveria repugnar pessoas decentes quanto da Conferência de Wannsee.
Os nazistas sabiam muito bem que seria mais fácil exterminar os judeus se antes os despissem de sua humanidade. Das sarjetas para os guetos e de lá para os campos não foi uma degradação acidental, mas um processo planejado no qual cada etapa reduzia a dignidade das vítimas, de modo que, quando chegassem às câmaras de gás, os carrascos não enxergassem nelas os irremovíveis sinais daquilo que nos faz, a todos, semelhantes.
Feito isto, o genocídio tornava-se apenas uma questão de técnica e logística.
Uma cena que mostra a dimensão da loucura essencial do totalitarismo nazista foi retratada no filme A Lista de Schindler, onde os prisioneiros do campo de concentração de Plaszow são forçados a remover as lápides do antigo cemitério judeu local e lança-las ao chão, como pavimento da rua de acesso ao campo, para que os alemães pudessem pisar nos nomes dos filhos de Israel que jaziam ali.
Insatisfeitos em privar um povo inteiro de futuro, os verdugos de Adolf Hitler se sentiam impelidos a destruir também o seu passado.
Alucinados com o poder, não bastava mais aos carniceiros ensandecidos chacinar os vivos. Precisavam sentir que podiam, de alguma forma, assassinar também os judeus que já estavam mortos.
Postado originalmente em 13/5/2005 20:42:41
Por Acauan
Neste mês de maio de 2005 completou-se sessenta anos do fim da Segunda Guerra Mundial na Europa.
Como aniversários com números redondos pedem comemoração especial (e, espera-se, alguma reflexão), se reavivam nesta época as lembranças do que foi aquela guerra, com destaque especial para sua memória mais sinistra – Shoa, o Holocausto.
A pergunta que melhor resume o choque que as imagens dos campos de Bergen-Belsen e Dachau provocaram no Ocidente é "como puderam?", pergunta que se torna mais terrível se apresentada de outra forma – "como pudemos?".
Há teses abrangentes e aprofundadas para explicar como um dos povos mais civilizados do mundo decidiu seguir cegamente um bando de gângsteres psicopatas e megalomaníacos, renunciando a séculos de cultura cristã-ocidental, rumo a um mergulho de cabeça na barbárie.
Como não sou especialista em nada, prefiro chamar tudo aquilo de loucura, pura e simplesmente.
Fora das teses, a resposta ao "como puderam?" ou (pudemos) não deve, para mim, ser perscrutada nas fotos das pilhas de cadáveres insepultos de Mauthausen, Buchenwald ou Majdanek. O horror presente naquelas imagens é óbvio e só traria respostas se elas também fossem.
Antes de a fumaça começar a sair das chaminés de Birkenau, os judeus que viviam nos territórios dominados pelos nazistas eram alvos de perseguição sistemática e crescente.
Esta perseguição era comumente brutal e primitiva, como na tristemente célebre Kristallnacht, a Noite do Vidro Quebrado, em 1938, quando ataques da SS aos judeus e seus estabelecimentos comerciais resultaram em dezenas de mortos, centenas de sinagogas incendiadas, milhares de lojas destruídas e dezenas de milhares de prisioneiros enviados aos campos de concentração.
Mas a brutalidade primitiva era apenas um dos tentáculos da política anti-semita alemã, complementada pela propaganda ostensiva de Goebbels e por um conjunto de decretos segregacionistas, as infames Nürnberger Gesetze (Leis de Nuremberg).
Estes decretos estabeleciam proibições aos judeus que se tornavam gradativamente mais opressivas a cada nova Rassengesetz (lei racial), Reichsbürgergesetz (lei de cidadania) ou Gesetz zum schutz des deutschen Blutes und der deutschen ehre (lei de defesa do sangue e da honra do povo alemão).
Esta gradação sustenta a possibilidade de a marcha dos alemães rumo à ruína moral como povo não ter sido uma queda involuntária em um abismo habilmente oculto pelos líderes nazistas, como querem as interpretações históricas conciliadoras.
Pessoalmente vejo a coisa como uma nação descendo para o inferno, degrau por degrau, mais atenta aos estandartes tremulados sobre suas cabeças do que ao fétido enxofre que começava a contaminar-lhe os pés.
Uma das primeiras coisas que os alemães vetaram aos judeus foi o acesso às piscinas. Seguiram-se, entre muitas outras, as proibições de os judeus freqüentarem praças públicas, andarem pelas calçadas (tinham que caminhar pelas sarjetas), usarem transporte coletivo e a obrigatoriedade de portar a estrela de Davi como identificação e de tirarem o chapéu para qualquer alemão com quem cruzassem.
Comparadas ao morticínio que se seguiu, estas leis parecem mais mesquinhas do que monstruosas, ou, quando muito, um mal menor em comparação.
Mas esta é uma conclusão errada, que parte da premissa falsa de que a estes infortúnios secundários seguiu-se o Holocausto. Como se fossem coisas distintas.
Não se trata de uma tragédia menor antecedendo outra maior e sim de capítulos da mesma tragédia.
Pegue-se o exemplo da ordem aos judeus para que tirassem seus chapéus para qualquer "ariano" que encontrassem na rua.
Transporte isto para sua realidade atual e pense como se sentiria diante de um homem forçado por lei a cumprimentá-lo de modo subserviente?
Eu me sentiria envergonhado de ser o motivo de tal reverência. Preferiria atravessar a rua a ter que enfrentar o fato de que minha simples proximidade obrigava outro homem a submeter-se a uma humilhação pública.
Pelo que sei, foram pouquíssimos os alemães que manifestaram tal incômodo, assim como muitos devem ter achado natural mulheres judias com crianças no colo esgueirarem-se pelas sarjetas, entre o trânsito das ruas e a calçada que não lhes era permitida.
A Solução Final é tão filha desta aceitação passiva daquilo que deveria repugnar pessoas decentes quanto da Conferência de Wannsee.
Os nazistas sabiam muito bem que seria mais fácil exterminar os judeus se antes os despissem de sua humanidade. Das sarjetas para os guetos e de lá para os campos não foi uma degradação acidental, mas um processo planejado no qual cada etapa reduzia a dignidade das vítimas, de modo que, quando chegassem às câmaras de gás, os carrascos não enxergassem nelas os irremovíveis sinais daquilo que nos faz, a todos, semelhantes.
Feito isto, o genocídio tornava-se apenas uma questão de técnica e logística.
Uma cena que mostra a dimensão da loucura essencial do totalitarismo nazista foi retratada no filme A Lista de Schindler, onde os prisioneiros do campo de concentração de Plaszow são forçados a remover as lápides do antigo cemitério judeu local e lança-las ao chão, como pavimento da rua de acesso ao campo, para que os alemães pudessem pisar nos nomes dos filhos de Israel que jaziam ali.
Insatisfeitos em privar um povo inteiro de futuro, os verdugos de Adolf Hitler se sentiam impelidos a destruir também o seu passado.
Alucinados com o poder, não bastava mais aos carniceiros ensandecidos chacinar os vivos. Precisavam sentir que podiam, de alguma forma, assassinar também os judeus que já estavam mortos.