Aprenda os Fundamentos de Biogeografia

Fórum de discussão de assuntos relevantes para o ateísmo, agnosticismo, humanismo e ceticismo. Defesa da razão e do Método Científico. Combate ao fanatismo e ao fundamentalismo religioso.
Avatar do usuário
Anna
Mensagens: 6956
Registrado em: 16 Out 2005, 15:43
Gênero: Feminino
Localização: AM/RJ

Aprenda os Fundamentos de Biogeografia

Mensagem por Anna »

Os viajantes e a biogeografia

Nelson Papavero & Dante Martins Teixeira

Apresenta-se um breve panorama das principais teorias biogeográficas, mostrando como o conhecimento acumulado por naturalistas viajantes foi responsável por seu teste e eventual rejeição. Enfatiza-se a
importância de se conhecerem os relatos dos antigos viajantes e naturalistas, para avaliar o quão severa foi a ação antrópica sobre a distribuição geográfica de alguns grupos de vertebrados.


PALAVRAS-CHAVE: biogeografia, teorias, contribuição dos viajantes, padrões de distribuição de certos vertebrados, ação antrópica.

Criacionismo e traducianismo
Preliminarmente, necessitamos introduzir dois termos, ‘criacionismo’ e ‘traducianismo’, adaptados à biogeografia por Papavero e Balsa (1986, p. 152; ver também Papavero et alii, 1995; Papavero et alii, 2000). A existência de um único centro de origem e dispersão, a partir do qual os indivíduos das espécies animais se dispersam para ocupar o mundo é o que se chama ‘criacionismo’. Por ‘traducianismo’ entende-se
a existência de múltiplos (e contemporâneos) “centros de criação” (regiões biogeográficas); nesse caso, cada espécie teria aparecido (ou sido criada) já em sua própria região, não tendo ali chegado, necessariamente, por dispersão, a partir de um único centro original. O texto do Gênesis, do ponto de vista biogeográfico, é traducianista: existiu um único centro de origem e dispersão original — o Paraíso
Terrestre; secundariamente serviram como centro de origem e dispersão o Ararat (para animais e homens) e Babel (só para os homens).

A biogeografia traducianista e o livro do Gênesis

Que o patriarca Noé levara em sua arca, por ordem divina, sete casais de cada espécie de animais puros e um casal de cada espécie de animais impuros, a fim de salvá-los do dilúvio (que, diga-se preliminarmente,
foi quase sempre aceito como um fenômeno universal, e não local) foi questão mais ou menos pacífica entre os pensadores e filósofos naturais da Europa cristã, até pelo menos o século XVIII. Cessado o
cataclismo e escancarada a porta da arca, esses animais, obedecendo a ordem de Deus (“crescei e multiplicai-vos”), voltaram a povoar o mundo (Browne, 1983).

Mais do que um episódio bíblico, esta foi a primeira teoria biogeográfica proposta e a que mais tempo permaneceu vigente. Seus postulados básicos (considerem-se também os episódios da criação
dos animais no Jardim do Éden e da Torre de Babel) são: existe um único centro de origem da biota, um ponto bem definido da face da Terra (o Éden — o centro de origem e dispersão primordial, o Ararat e
Babel — centros secundários); desse centro de origem animais (e homens) dispersam-se para povoar o mundo; durante a dispersão radial, podem eles sofrer mudanças em seus caracteres somáticos, provocadas pela influência direta do meio e herança desses caracteres adquiridos (assim
se teriam originado as diferenças dos diversos grupos de raças humanas, por exemplo).

Como toda teoria científica, entretanto, acabou esbarrando em certos fatos, que serviram para testá-la. Exemplificando, teria Noé transportado ‘todas’ as espécies de animais originalmente criadas por Deus no Jardim do Éden ou apenas as espécies de vertebrados terrestres bissexuadas de fecundação cruzada? Os animais aquáticos não necessitariam ser levados pelo patriarca, nem aqueles nascidos por geração espontânea (como então se acreditava) — depois do dilúvio, para estes últimos, havia grande quantidade de matéria orgânica em decomposição, de cuja fermentação poderiam surgir (Papavero, 1992, p. 51).
Em sua obra De Civitate Dei (A cidade de Deus), santo Agostinho (354-430) chegou à conclusão de que Noé tivera que transportar em sua arca todas as espécies de animais, sem exceção. Foi levado a isto
por duas razões. A primeira é que, para os maniqueístas seus contemporâneos, Deus não havia criado os animais e as plantas, seres destinados à corrupção e à morte; Deus criara apenas os seres do
universo supralunar aristotélico (como o sol, a lua, os planetas e as estrelas fixas), o éter, os anjos e a alma humana — coisas perfeitas, belas, imperecíveis. Todo o resto, destinado à degeneração e à corrupção,
perecível, só podia ter sido criado por um poder maligno oposto a Deus.

Ora, se santo Agostinho admitisse que Noé deixara fora da arca certo número de espécies de animais, os maniqueístas aproveitar-seiam imediatamente disso para corroborar suas idéias de que essas espécies não haviam saído das mãos do Criador e que teriam morrido juntamente com os pecadores, afogadas pelo dilúvio. A segunda razão, e a mais importante, era que as espécies de animais levadas por Noé simbolizavam os povos da Terra: todas as nações tinham o direito de encontrar a salvação na nova arca representada pela Igreja cristã. Noé teve que transportar casais de todas as espécies, mesmo das aquáticas e das nascidas por geração espontânea, para simbolizar que nenhum povo, por menor e mais insignificante que pudesse parecer, seria deixado fora da Igreja, justamente cognominada de ‘católica’ (termo que em grego significa ‘para todos’, universal).

Continua...
Cérebro é uma coisa maravilhosa. Todos deveriam ter um.

Trancado