Vamos lá. Sete e meia, hora de começar o dia.
Botanico escreveu:A conversa é dirigida a outro, mas vou meter o meu bedelho. Como já disse antes, desde tempos muito idos e passados, a Humanidade busca um sentido para a sua existência, o que inclui aí algo que explique o motivo das dores e aflições humanas. Conforme já disse antes, temos no geral essas três opções aí: 1) azar; não há causa moral para isso _ dores e aflições humanas simplesmente acontecem. 2) maldição divina, conforme já disse o Pat Robertson _ há um Deus furioso lá no céu que não admite adoração a terceiros deuses. 3) essa hipótese espírita aí, que entende que erros cometidos no passado podem ser "pagos" com dores e aflições _ ao mesmo tempo que eles podem servir de impulso para o progresso dos ditos espíritos.
Sei lá qual das duas primeiras hipóteses acima você gosta mais, Dantas, mas qualquer que seja o seu gosto, o meu ou o dos outros, nada muda o fato de que há centenas de milhares de pessoas lá no Haiti que foram mortas e tantas outras que estão "pastando" um bocado agora.
A esta altura não sabe ainda, Botanico? É uma escolha óbvia.
Três alternativas. A primeira não tenta oferecer um propósito às desventuras da existência. As outras duas oferecem propósitos sádicos e além disso também não tem verossimilitude.
Claro que eu considero que o acaso existe, sim.
Botanico escreveu:Tenho lá dúvidas de que isso seja SEMPRE verdade. Já vi (entre meus parentes mesmo) pessoas que sofrem, mas que demonstram enorme força de espírito e seguem em frente. Mas é como se diz da DE: essa situação sofrida é a oportunidade de o espírito se acertar com seu passado. SÓ QUE O ESPÍRITO TEM O LIVRE-ARBÍTRIO. Se ao invés de enfrentar as coisas ruins de forma positiva, ele só faz piorar a situação, então terá um débito mais extenso e complicado no futuro. Se o espírito pediu uma prova acima de suas forças, também se dana todo. O que existe é o sistema, do qual não podemos fugir: ELE É A REALIDADE. Agora dentro dele, podemos fazer valer a nossa vontade, mas não podemos nos eximir das consequências.
Não é sempre, como minha linguagem deixa claro ("tende a..."). Acontece sim o crescimento moral via adversidade.
Mas se ele fosse tão fácil e tão válido, a tortura seria um serviço de utilidade pública, não um crime.
Recorrer à existência do livre-arbítrio de fato não resolve nada, já que o livre-arbítrio é um conceito tão vago e contraditório que na prática não esclarece coisa alguma e serve apenas para emprestar um ar de legitimidade às contestações que de outra forma seriam mal vistas por se contrapor a outro dogma. Por isso você não está de fato me contestando, mas insistindo em me pedir para simplesmente acreditar que há um propósito justo guiando tudo.
Afirmar que existe o livre-arbítrio pode passar a impressão de que você me ofereceu um motivo para considerar sua afirmação - mas o que é livre-arbítrio afinal, e como posso saber que ele existe? Pelo que tenho visto, ele é apenas e exclusivamente essa vontade de duvidar "legitimamente" da predestinação devido a uma vontade sobrenatural arbitrária. É apenas uma palavra de ordem, algodão-doce que causa sensação mas não tem substância.
Botanico escreveu:Acho que isso é o mesmo de perguntar por que motivo todos os alunos de uma universidade já não estão cursando o último ano... Então teríamos lá no Haiti um conglomerado de espíritos broncos, atrasados culturalmente, cuja capacidade de filosofar, fazer poesias e viver uma vida plena e saudável são coisas que ainda não cabem bem em suas cabeças... Onde não há estado, vence a gangue mais forte... Entre os mortos e feridos, haveria também espíritos melhores, que lá pediram para encarnar e ver se poderiam melhorar a coisa de alguma maneira. ANTES de encarnar, já sabiam o nível do problema (não os mínimos detalhes) que iam enfrentar? Sim, sabiam.
Na sequência das suas afirmações:
1) Mais exatamente, seria como perguntar como sabemos que todos que estão na universidade realmente estão no lugar e no curso certos, sem sequer um único visitante ou transeunte curioso.
2) Inúmeras iniciativas promovidas por pessoas de carne e osso, vivas, mostram que na prática essa incapacidade de melhorar as próprias vidas é quase completamente circunstancial, em vez de atributo inerente às pessoas propriamente ditas. Existem pessoas particularmente "difíceis" por vários motivos... mas em qualquer comunidade, são definitivamente a exceção. Portanto considero o cenário que você propõe inverossímil.
3) A idéia de correr risco de vida "por uma causa justa" certamente tem um certo apelo romântico. Mas não responde às minhas indagações. Pior ainda, o apelo vem exatamente da idéia de que
não se trata de uma questão de justiça e sim de coragem de correr riscos que poderiam ter sido evitados, o que torna o cenário inteiro, além de implausível, estilisticamente desaconselhável, mesmo como fantasia.
Além do mais, lembra-se do que falei sobre os órfãos, as famílias que perderam todos os bens e formas de sustento, e as pessoas que indiretamente sofrem as consequências dessa tragédia? Muitas, possivelmente a esmagadora maioria delas, só poderiam se sentir ofendidas, com toda a razão, se alguém sugerisse que "em uma vida anterior" elas "escolheram" correr o risco de acontecer algo assim. O que você está afirmando, na prática, implica na afirmação implícita de que o ser humano típico tem uma vontade avassaladora de estragar para valer a própria vida. O que não é verdade, não a ESSE ponto.
Botanico escreveu:Bem, acho que está levando muito a ferro e fogo essa questão de que "a morte violenta faz sempre o espírito progredir". Quem está dizendo isso é você e não o Espiritismo.
De forma alguma. É o que o Espiristismo alega, já desde Kardec, como citado em posts anteriores neste tópico. Eu sequer acho moralmente defensável a alegação de que o espírito "progride sem jamais regredir", mesmo para quem acredita piamente que existem espíritos reencarnantes e evolução espiritual.
Botanico escreveu:Para a grande maioria deles, essa morte é só o toma lá e dá cá dos erros passados. Quando o espírito questionar: _ Mas por que eu morri assim? _ Aí lhe será apresentado os motivos e a MELHORIA virá da REFLEXÃO dele, comparando o seu hoje recente com suas burradas passadas. Quanto aos que supostamente não merecessem o fim assim, mas que o escolheram por motivos de prova, eles não "melhorariam" por conta do incidente, pois já estavam melhorados. Seu propósito seria outro. Imaginemos o caso da Zilda Arms: ela era uma batalhadora e, como já li na Folha na opinião de um dos editores, "ela morreu em casa", fazendo o que sabia fazer de melhor. Talvez sua morte, nessas condições, sirva para quem for sucedê-la refletir a respeito e ter em mente que não pode fazer menos do que ela.
Ah, voltamos à alegação de que quem sofre "aprontou alguma" que torna esse sofrimento merecido. Fico imaginando a quantas gerações deixou de ser comportamento típico da humanidade ficar à espreita nos cantos esperando pelos incautos para agredi-los sem motivo. Só isso explicaria que tanta gente tenha feito por merecer passar por esse tipo de coisa.
Agora, essa de que a morte de uma Zilda Arns da vida serviria para "fazer outros refletir e ter em mente que não podem fazer menos do que ela" de fato é novidade para mim, e olha que eu não me surpreendo frequentemente com este tipo de assunto.
Por que isso seria melhor ou mais efetivo do que o que ela poderia fazer ainda viva, não faço idéia. Ainda mais quando, claramente, nem todas as consequências da morte dela são aprazíveis e positivas. Será que ela não poderia ter motivado melhor seus sucessores sem ter de morrer e perder o convívio com a família e entes queridos? Acredito que sim, mas você está me pedindo para acreditar que esse evento foi necessário ou conveniente... simplesmente por que gosta da idéia de acreditar nisso.
Aliás, também não entendo por que alguém "não poderia" fazer menos do que Zilda Arns. Novamente, parece que você está recorrendo a um recurso de estilo para tentar emprestar um significado a uma situação que claramente não o tem.
Botanico escreveu:Bem, se de fato morrer de uma vez afastasse definitivamente os incômodos... Só que no Espiritismo isso NÃO SE DÁ. Some-se o cara fisicamente, mas seu espírito ainda vive e será atraído pela vibração dos desafetos e aí fica até pior, pois a perturbação espiritual não tem fronteiras. Não há prisão que o detenha...
Espírita vive aqui no mundo real como todo mundo. Afastar a presença física dos desafetos traz um certo alívio, que não precisa ser "definitivo". De qualquer forma fico aliviado em saber que eles se sentem mal de querer a morte dos outros.
Botanico escreveu:Como já disse, AS PESSOAS SE ESTREPAM, com ou sem causa justa observável. A hipótese do azar é mais econômica neste sentido. Entretanto, a dedução de que nós espíritas torcemos para que todos esses se estrepem mesmo por entender que a situação não é injusta é dedução só sua. Eu torço para que se estrepem aqueles cujos motivos eu conheço. Queria mesmo ver os políticos corruptos se estrepando direitinho... Mas como são eles mesmos que fazem as leis que lhes garantem impunidade... Já de outros que nunca me deram motivo, não teria porque fazer essa torcida. E não me consta que nenhum espírita o fizesse.
Sabe, esse é o problema com a idéia de caridade espírita.
Ela, como tantas outras da DE, é levada sempre de forma passional, sem preocupação com a racionalidade ou com as consequências lógicas.
Se a DE fosse mais respeitável (como quase todas as outras doutrinas religiosas ou para-religiosas costumam ser), teria uma ênfase verdadeira na necessidade de boa-vontade e cooperação, e ensinaria a não querer acreditar que os outros merecem se estrepar.
Em vez disso, o Espiritismo ensina que se estrepa quem merece, e se agrada do estrago quem quer, livremente e sem maiores consequências...
Botanico escreveu:A sua dedução me faz lembrar outra de Kardec. Ele combatia o materialismo, exatamente por entender que suas consequências filosóficas seriam de que o melhor a fazer era levar vantagem em tudo, sem nenhum escrúpulo moral, pois a ninguém se prestaria contas de seus atos. Tem lógica, não?
De uma forma distorcida, tem sim. Se Kardec acreditava realmente no que escrevia, logicamente ele precisaria de fato acreditar em um Deus Zangado para vigiá-lo como um bedel. Pois a doutrina que ele pregou era realmente moralmente falida e corruptora, o que salta aos olhos até mesmo do leitor casual.
Botanico escreveu: Mas tal coisa não se reflete plenamente na realidade, pois há aí o fator EVOLUÇÃO DO ESPÍRITO. Assim há exemplos de pessoas que foram ateias, sem religião, mas que são moralmente excelentes. E temos aí os pastores da teologia da prosperidade, que falam de Deus e da moral cristã nos seus púlpitos, mas que levam moralmente e financeiramente uma vida exatamente igual àquilo que Kardec esperava ver nos materialistas filosóficos...
Ah, então existe um fator indetectável que vocês chamam de "evolução do espírito" que serve para explicar o que vocês querem afirmar que existe e o que vai contra o que afirmam que deveria existir.
Tão conveniente...