Discutindo com "coitadistas" profissionais

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Fernando Silva
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Discutindo com "coitadistas" profissionais

Mensagem por Fernando Silva »

"O Globo" 20/02/10
Barraquismo
JOÃO XIMENES BRAGA

Desde que os ônibus mudaram e os passageiros passaram a descer pela porta de trás, nunca mais consegui saltar fora do ponto. Volta e meia ouço pessoas gritando “dá pra saltar aqui, motorista?”, vejo o condutor olhar pelo retrovisor e abrir a porta num congestionamento ou num sinal.
Mas sempre que tento executar tal operação, fracasso. Consigo quando muito chamar a atenção dos passageiros três fileiras à minha frente, nem o trocador me escuta.

Isso tudo para situar o leitor numa característica pessoal importante para a história que se segue: não apenas falo baixo, não consigo falar alto nem querendo.
Daí meu espanto quando soltei um “Deus do céu” na fila do supermercado e fui ouvido pela senhora loura que deixou suas sacolas no caixa, parando a fila, porque esquecera o limão. Era um “Deus do céu” impaciente mas discreto, e ela já se afastara uns bons passos. Era um desabafo sem intenção de ser escutado, coisa de quem passou a vida cumprindo prazos e está condicionado a valorizar seu próprio tempo e o dos outros.

Claro que o desabafo carregava uma reprimenda pela conduta de quem provavelmente nunca teve prazo na vida e acredita ser aceitável deixar uma fila esperando, mas ainda que ela escutasse… Eu esperaria como reação, no máximo, um pedido de desculpas pela demora. Mas estava diante de uma praticante do barraquismo.

Ela parou no meio do supermercado, se voltou em minha direção e disse em alto e bom som: — Que que foi? Não respondi, mas não fez diferença. Essa primeira tacada era apenas uma forma de chamar a atenção de todas as pessoas à nossa volta. Uma vez que todos os olhares se levantaram dos caixas e dos balcões de frutas e se voltaram a nós, uma vez que ela conseguira a atenção da plateia, lançou o grande golpe para conquistá-la: — Vai me bater? Aí não havia mais como escapar, estava diante de um gênio do barraquismo, essa ciência oculta cujos meandros só são amplamente dominados por mulheres de países católicos. E não me chamem de misógino, pois não estou dizendo que toda mulher seja barraqueira, mas sim que a sabedoria de toda barraqueira é usar a misoginia em seu próprio benefício.

Vejamos o caso da senhora loura. Ela estava praticando um ato de incivilidade, mas manipulou toda a situação de forma a se fazer de frágil e indefesa. Eu disse um mero “Deus do céu” que apenas ela e a moça do caixa ouviram, mas agora todo o supermercado concluíra que eu a ameaçara.

E não era difícil imaginar de que lado ficaria a plateia entre o tatuado esquisitão e a senhora de voz estudadamente indignada e forçosamente frágil.

Com todos os olhares esperando minha resposta, ainda tentei racionalizar: — A senhora não pode parar a fila e obrigar os outros a esperar.

Tentar combater com lógica a magia do barraquismo é um projeto que já começa fracassado.

— Eu só vou pegar o limão — argumentou ela, plena de ênfase dramática e vazia de argumentos.

— Só esqueci o limão — acrescentou, operística. — É só um limãozinho — fechou, já em tom choroso.

Seguiu-se uma pausa dramática que ela sustentou com olhar desafiador.

Quando se convenceu da sua vitória e do meu silêncio, foi pegar seu limão.

Depois de pagar e finalmente recolher suas sacolas, virou-se para mim e disse: — Um bom dia pra você.

O tom era mais agressivo que qualquer ofensa escatológica, mas quem poderia acusá-la de não estar sendo superior? Afinal de contas, na peça que ela montara, eu a ameaçara de agressão, e ela me desejava um bom dia. Brilhante! Eu devia ter jogado na mesma moeda, dizer algo na linha: — Sou plantonista do Miguel Couto, a senhora me atrasou dez minutos, deixei de salvar uma vida nesse ínterim.

Mas estava indignado demais para deixar o barraquismo tripudiar sobre a ordem social, e resolvi responder de forma direta.

— A senhora é muito grossa.

Mal as palavras saíram da minha boca, percebi o erro que cometi. Ela suspirou fundo e, toda frágil, toda drama, toda mater dolorosa, revidou: — Reza, meu filho. Você está precisando.

Diante de tamanha genialidade, só me restava reconhecer minha insignificância.

Entre a complexidade do barraquismo e o simplismo da civilidade, o primeiro sempre vai vencer.

E-mail para esta coluna: jxbraga@gmail.com

Trancado