Fordlândia - a cidade americana no meio da selva amazônica
Enviado: 12 Set 2010, 15:48
"O Globo" 11/09/10
O delírio tropical de Henry Ford
Americano conta história da cidade que o industrial construiu na selva no início do século XX
Fordlândia — Ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva, de Greg Grandin.
Tradução de Nivaldo Montingelli Jr. Editora Rocco, 400 páginas. R$ 56
Nelson Vasconcelos
Dezembro de 1930. Cansados de refeições demasiado “americanizadas” — incluindo pêssegos enlatados do Michigan e pão de trigo integral — trabalhadores braçais no interior do Pará se revoltam e exigem dos empregadores nada mais que peixe, farinha, arroz, feijão. A insatisfação não para por aí. Reclamam dos relógios de ponto espalhados pela floresta e repudiam a lei seca decretada pelo patrão, que também banira os prostíbulos e bares da sua pequena cidade. Pequena porém invejável.
Tinha escolas, creches, hospital, vilas bem planejadas, rede elétrica de primeira.
Tinha até campo de golfe.
A cidade se chamava Fordlândia — e o patrão era ninguém menos que o industrial americano Henry Ford, que nos anos 1920 investiu milhões em seringais próprios na Amazônia e... perdeu tudo.
É dessa história que trata “Fordlândia — Ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva”, de Greg Grandin, que chega em bela edição da Rocco. Mais que um caso de insensatez, o episódio reitera que um sujeito teimoso, por mais rico e poderoso que seja, nem sempre está com a razão. Ainda mais quando é confrontado com os caprichos da natureza.
Rico e admirado, embora antissemita e racista Grandin traça um ótimo perfil do industrial. Naquela época, Ford era o homem mais rico do mundo. Dizia ter inventado o que havia de melhor no planeta. Seu império acelerou as mudanças do século XX, revolucionando as relações humanas.
Era o símbolo do progresso.
Aqui no Brasil, por exemplo, o grande Monteiro Lobato nunca se cansou de exaltar Henry Ford.
Ao mesmo tempo, Ford era um antissemita inveterado, racista, contrário à formação de organizações trabalhistas, que não hesitava em usar o terror para contornar greves ou conflitos dentro de suas fábricas.
O industrial não via limites, o que ajuda a explicar o que o levou a empreender um projeto tão maluco numa região tão desconhecida.
Razões, na verdade, não faltavam para que Ford tivesse seus próprios seringais. Seus milhões de carros produzidos anualmente demandavam muita borracha — e não só para os pneus, como também para inúmeros componentes e para as máquinas que os fabricavam.
No fim dos anos 20, a borracha era um mercado de US$ 1 bilhão nos EUA, onde eram produzidos 50 milhões de pneus por ano.
Só que os grandes fornecedores de borracha estavam fora dos EUA, reforçando o colonialismo europeu em lugares como Sri Lanka, Malásia, Indonésia e Indochina. E isso não agradava nem às fabricantes nem ao governo americano.
Para Ford, plantar suas próprias seringueiras seria melhor solução do que ter que comprar borracha no mercado externo. Ora, a Ford Motors já tinha cidades somente para plantio e extração de árvores para seus carros (cada unidade do mítico Modelo T exigia meio metro cúbico de madeira).
E plantar seringueiras não poderia ser muito difícil. Contanto que fosse num lugar apropriado, claro.
O lendário ciclo da borracha amazônica já tinha ficado para trás. Mas a região ainda seria uma alternativa para quem quisesse plantar seringueiras.
Entre idas e vindas, a equipe de Ford recebeu do governo paraense uma oferta tentadora: uma área de um milhão de hectares. Depois de muita politicagem e a corrupção de praxe, o americano pagou US$ 125 mil pelo terrenão. E pôs sua tropa para trabalhar. Estimava-se que a nova cidade de Ford produziria pneus para dois milhões de carros anualmente.
Por mais que o povo e a imprensa brasileira quisessem o contrário, Ford nunca pisou no Pará. Mas não economizou no seu empreendimento. Mandou trazer tudo dos EUA: de hidrantes a vasos sanitários, móveis, janelas, caixas d’água.
Transferiu para a Amazônia a arquitetura e a infraestrutura características das pequenas cidades americanas.
Deu certo? Não. Depois de milhões em gastos, o projeto sucumbiu a uma questão hoje bastante debatida: choque de culturas. Primeiro porque os americanos não tinham a mínima intimidade com o trabalhador braçal amazônico — de quem exigiam, por exemplo, o uso de distintivos (!) em plena selva. Além disso, os botânicos da Ford, querendo extrair o máximo da gigantesca plantação, não respeitaram a natureza local, e os fungos e pragas trataram de fazer sua parte.
Em 1945, Ford devolveu Fordlândia ao governo brasileiro.
Hoje, poucas famílias ainda moram por lá. E os mais antigos ainda sentem saudades dos bons tempos.