Comentário sobre a natureza e causas da [...] civilização

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user f.k.a. Cabeção
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Comentário sobre a natureza e causas da [...] civilização

Mensagem por user f.k.a. Cabeção »



Comentário sobre a natureza e causas da propriedade, instituições e civilização
por user f.k.a. Cabeção



No mundo natural, recursos são empregados, ou consumidos, por indivíduos, ou agentes. Certos recursos são de uso intrinsecamente exclusivo de um indivíduo: sua inteligência ou força física, por exemplo. Outros recursos podem ser igualmente aproveitados por dois indivíduos diferentes, como a carcaça de uma gazela ou uma lata de coca-cola. Esses recursos são escassos na medida em que podem ser usados para fins alternativos por um indivíduo (sua inteligência ou força) ou sua quantidade disponível não é suficiente para satisfazer todos os indivíduos (a lata de coca-cola). Recursos escassos são elementos da teoria econômica.

Alguns recursos podem ser considerados na maioria das situações como não escassos: o ar respirável por exemplo. Ele simplesmente existe em quantidade satisfatória para todos os indivíduos, e não existem muitos usos alternativos excludentes para ele. Assim "ar respirável" não é um elemento econômico na maioria dos contextos. O seu fôlego, por outro lado, é escasso, já que você não pode correr por tempo indeterminado, mas o que se chama de "falta de ar" é na verdade falta de fôlego, que é o uso que o organismo pode dar para o ar que recebe. Fôlego é um bem econômico, faz sentido "economizar" fôlego.

Assim, de maneira mais formal, problema economico do indíviduo consiste em escolher entre os diferentes cenários futuros projetados por ele aquele que mais o satisfaz, levando em conta as limitações dos recursos que ele pode empregar para perseguir cada cenário. Para que o problema não seja trivial, é preciso haver dois ou mais cenários mutuamente exclusivos de emprego de recursos, obrigando o indivíduo a avaliar qual é o cenário que mais o satisfaz.

O problema da ordem social é um problema subordinado ao problema econômico num contexto onde alguns recursos existentes podem ser consumidos por dois ou mais agentes, de maneira mutuamente excludente. O indivíduo precisa assim antecipar as soluções do problema econômico dos outros agentes quando realiza a sua própria.

Assim, um lago pode ser uma fonte de água comum porém não escassa para uma manada de gnus e zebras, que não levam as presenças mútuas em consideração, mas uma carcaça de gazela deve ser disputadas entre hienas e leões, que precisam considerar a presença mútua.

Esse problema é resolvido atraves da definição de vantagens comparativas incrementais: alguns agentes podem usar seus recursos exclusivos (informação ou posição geográfica privilegiadas) de maneira a conseguir acesso aos recursos disputados mais rapidamente, ou pode fazer uso de um recurso exclusivo especial, a violência, para dissuadir competidores criando-lhes um custo adicional ao que teriam sem a presença do agressor.

O problema da ordem social se torna especialmente complexo quando agentes podem aprender, ou seja, alterar a maneira como projetam o cenário futuro de acordo com o comportamento passado dos demais. Como a violência introduz um custo adicional, pode ser interessante engajar-se num comportamento co-opertivo. Co-operar nada mais é nesse contexto do que restringir o emprego potencial do seu recurso exclusivo da violência contra um agente econômico num determinado contexto em função das vantagens individuais que essa restrição pode conferir. Isso só é possível a partir do aprendizado, quando os agentes desenvolvem reputações e seu comportamento é relativa e mutuamente previsível. Essa forma de co-operar reconhecendo mútuamente um contexto de direitos de uso de recursos é a origem da instituição da propriedade privada.

As vantagens introduzidas por essa forma de co-operação são várias. Cada agente pode dedicar menos atenção a amealhar recursos para gerar violência, e se concentrar em vantagens mais diretas para si. Ao mesmo tempo esse reconhecimento mútuo de direitos de propriedade sobre recursos pode ser comutado, quando parecer vantajoso para ambas as partes, dando origem ao processo de trocas comerciais. Isso permite a especialização, e o aumento da produtividade relativa decorrente da divisão do trabalho.

E importante parar um pouco e compreender bem o que o conceito de reputação acima quer dizer, pois ele está na origem da aparição daquilo que entendemos por instituições. Reputação de um indivíduo é a memória que as outras pessoas têm do seu comportamento passado. A reputação não é uma propriedade do indivíduo, mas uma percepção dos outros agentes sobre a previsibilidade e coerência do comportamento daquele indivíduo com o princípio natural de não-agressão mútua descrito acima e suas diversas derivações, dentro dos contextos onde esse princípio passou a vigorar. É a emergência de uma reputação que permite um certo controle, ainda que limitado, sobre os indivíduos mais dotados de recursos de violência. Se eles fizerm uso considerado ilegítimo desse recurso, eles perdem a sua reputação e as vantagens comparativas geradas por ela. Em particular, um grupo pode co-operar e ostracizar um membro de reputação muito negativa, mesmo que ele individualmente seja mais forte do que cada membro do grupo individual.

Reputações, positivas e negativas, morreriam com os indivíduos. Mas a comunicação entre os indivíduos permitiu a geração de um mecanismo de transferência dessa memória e experiências passadas, atraves das instituições tradicionais. Tradições e instituições são formas compactadas de transferir as percepções geradas atraves das gerações de quais comportamentos co-operativos, ou sociais, possuem alta reputação e quais comportamentos são anti-sociais, ou seja, devem ser ostracizados. Assim indivíduos não precisam conhecer o histórico de comportamentos que gerou uma determinada percepção negativa, ele apenas precisa reconhecer um valor tradicional e avaliar o comportamento dos outros segundo esse valor. Essa herança moral permite transferir e selecionar a memória das interações experiências do passado, e impedir que as reputações geradas morram com os indivíduos que as portaram.

Essas tradições eram transmitidas oralmente, e em geral seu conteúdo informacional era acompanhado de narrativas alegóricas relativamente explicativas, que com o tempo aumentavam em escopo, abrangência e riqueza conceitual, se transformando nos mitos originários das religiões, que surge como um processo sistemático de transmissão da informação institucional. Não somente informação de carater legal era transmitida por esse veículo, mas mesmo informação prática sobre o "mundo natural", como os ciclos sazonais do clima e outros fenômenos naturais padronizados. Apesar de interessante, essa parte não será tratada aqui.

Essa descrição acima permite identificar o reconhecimento de algum direito de propriedade privada como a origem da comunicação interindividual co-operativa, e também intergeracional, através das tradições, e do ganho de complexidade dessas interações atraves do processo de destilação do conhecimento moral, cuja informação é transferida e compactada nas nossas diversas instituições culturais.

As implicações dessas últimas considerações são profundas. Descrito de outra forma, simplesmente temos que o que quer que entendamos por civilização nasce da propriedade privada e do mercado. A evolução das instituições do mercado é o próprio processo civilizacional, através do qual os originais métodos violentos são substituídos pela co-operação mutuamente eficaz a medida que o conhecimento humano se desenvolve e aumenta.

Em nenhum momento no descritivo acima qualquer tipo de solução moral foi "descoberta" por um indivíduo e imposta a todos os demais, como uma revelação, exceto de modo bastante figurativo, ilustrado em lendas e mitos que encurtavam bastante essa história.

E dele podemos então entender o caráter místico do progressivismo. Embora nossas lendas sejam repletas de imposições divinas e revoluções prometéicas, o ponto é que elas existem apenas como lendas de um passado distante, servindo a comunicar um valor cultural e moral de maneira simples, compreensível e memorável.

Progressistas no entanto se vêem como a materialização de um desses personagens lendários, trazendo o conhecimento da moral do futuro para a humanidade, obtido em suas visões, similares as visões divinas que orientaram os patriarcas, messias e profetas passados. Eles são portanto santos auto-canonizados, heróis auto-untados.

E nesse sentido eles são mais primitivos que os povos antigos que cultivavam essas lendas, já que estes de certa forma sabiam inconscientemente para que suas lendas serviam e não misturavam sua auto-imagem a dos mitos ali representados.

Ocorre que seu carisma eventualmente permite que as pessoas comuns, tão ignorantes quanto eles do processo tradicional de destilação da experiência moral da humanidade, vejam essas empreitadas messiânicas com o mesmo carinho que tem para com os personagens das tradições e lendas do passado, autorizando assim suas campanhas moralizadoras.

Da vaidade e da tentativa de serem deuses, os progressistas recriam o inferno. Vale a pena meditar a relevância e implicações dessa conclusão teológica.

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Fernando Silva
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Re: Comentário sobre a natureza e causas da [...] civilizaçã

Mensagem por Fernando Silva »

user f.k.a. Cabeção escreveu:Da vaidade e da tentativa de serem deuses, os progressistas recriam o inferno. Vale a pena meditar a relevância e implicações dessa conclusão teológica.

No longo prazo, se não destruir a sociedade antes, esse tipo de coisa acaba sendo eliminada ou atenuada, mas pode haver muito sofrimento e morte antes que isto aconteça, principalmente se for atingido um equilíbrio do terror onde as pessoas aceitam um certo nível de opressão em troca de alguma segurança.

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Acauan
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Re: Comentário sobre a natureza e causas da [...] civilizaçã

Mensagem por Acauan »

Cabeça...,

Não obstante você ser uma fonte acima de qualquer suspeita, há no seu texto uma corroboração marxista quando considera que as disputas econômicas são o motor das movimentações sociais, o que não são.
Nós, Índios.

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user f.k.a. Cabeção
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Re: Comentário sobre a natureza e causas da [...] civilizaçã

Mensagem por user f.k.a. Cabeção »

Fernando Silva escreveu:
user f.k.a. Cabeção escreveu:Da vaidade e da tentativa de serem deuses, os progressistas recriam o inferno. Vale a pena meditar a relevância e implicações dessa conclusão teológica.

No longo prazo, se não destruir a sociedade antes, esse tipo de coisa acaba sendo eliminada ou atenuada, mas pode haver muito sofrimento e morte antes que isto aconteça, principalmente se for atingido um equilíbrio do terror onde as pessoas aceitam um certo nível de opressão em troca de alguma segurança.



Pois é.

Mas no curto prazo, o obscurantismo progressista é um custo real da ignorância prepotente de alguns.
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Apo
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Re: Comentário sobre a natureza e causas da [...] civilizaçã

Mensagem por Apo »

cabeça, você é contra toda decisão emergencial e radical porque, a priori, ela pode significar a destruição nociva de uma situação que AINDA poderia ser revertida com tempo, negociações e regras "conservadoras" ( veja que coloco "conservador" entre aspas porque acho que o conservadorismo pode ser representar bom senso e pode representar retrocesso face à algumas circunstâncias que exigem pressa, e não canja de galinha)?

Mesmo no curto prazo, eu não acho que algumas mudanças representem necessariamente prepotência e nem remetam a algum tipo de intenção obscura...
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user f.k.a. Cabeção
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Re: Comentário sobre a natureza e causas da [...] civilizaçã

Mensagem por user f.k.a. Cabeção »

Acauan escreveu:Cabeça...,

Não obstante você ser uma fonte acima de qualquer suspeita, há no seu texto uma corroboração marxista quando considera que as disputas econômicas são o motor das movimentações sociais, o que não são.



Nobre guerreiro Tupi,

Confesso que não me ocupei de analisar essa questão até você levantá-la.

Acredito que a interpretação marxista da história consiste em considerar o Homem, ou melhor, as diferentes classes sociais, como produtos dos meios tecnológicos de produção. Essa idéia por trás do materialismo histórico.

Ao contrário, a minha perspectiva se baseia no princípio do individualismo metodológico, que procura definir um indivíduo como a entidade que age propositalmente, e da ação propositada individual derivar as instituições existentes.

A definição que eu usei para economia foi a teoria do comportamento humano diante de recursos escassos. Esses recursos não sendo de natureza essencialmente material: seu bem-estar emocional e seu tempo são por exemplo dois recursos escassos que podem ser consumidos por atividades diferentes.

Eu reconheço que essa definição de economia se torna tão abrangente que fica difícil conceber um comportamento obviamente racional que não envolva decisões econômicas.

Mises, por exemplo, usava o termo "praxeologia", para distinguir ações humanas propositais das ações humanas propositais num contexto de trocas comerciais, que ele chamava de "catalaxia". Mas eu pessoalmente considero essa terminologia um tanto arcana, e prefiro usar "economia", mesmo que num contexto bastante abrangente.
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Trancado