Terremoto e tsunami em 1755 ajudaram a modernizar Portugal

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Fernando Silva
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Terremoto e tsunami em 1755 ajudaram a modernizar Portugal

Mensagem por Fernando Silva »

Livro conta como o terremoto seguido de tsunami ajudou a modernizar Portugal, até então dominado pela ICAR.
O Marquês de Pombal assumiu os trabalhos de reconstrução e aproveitou para mudar os currículos das escolas, permitir o estudo de autores condenados pela Igreja e expulsar os jesuítas do Brasil.

http://www.mccomunicacao.com.br/mc/clie ... eio=JORNAL
O abalo que mudou um país

O GLOBO 19/3/2011

Terremoto de 1755 destruiu Lisboa e transformou a sociedade

Aameça nuclear que hoje angustia o Japão mostra como catástrofes naturais, além de seus devastadores efeitos físicos, podem abalar ideias e modelos de civilização - os efeitos do terremoto e da tsunami sobre Fukushima deram um novo sentido ao debate mundial sobre o uso da energia atômica, ainda que os desfechos da discussão e da crise na usina continuem imprevisíveis.

Apesar da proverbial "imunidade" brasileira a vulcões, terremotos e furacões (esteio de ufanismos insólitos), esse entrelaçamento entre o acaso da natureza e os rumos da civilização se fez sentir aqui de maneira indireta com o violento terremoto que, em 1755, atingiu Portugal e arrasou sua capital, Lisboa. O tremor, seguido por tsunamis, transformou a cidade em ruína e matou entre 12 mil e 25 mil lisboetas (numa população de 250 mil). A destruição deu início a uma crise que transformaria profundamente o país e, por extensão, sua então colônia.

No recém-lançado "O último dia do mundo: Fúria, ruína e razão no grande terremoto de Lisboa de 1755" (Objetiva, tradução de Paula Berinson), o americano Nicholas Shrady recupera documentos e relatos da época para mostrar como o abalo impulsionou a ascensão política de um certo Sebastião José de Carvalho e Melo. Hoje mais conhecido pelo título que assumiria anos depois, Marquês de Pombal, ele aproveitaria a ocasião para perseguir e executar inimigos políticos, muitos deles religiosos, e introduzir à força, na conservadora sociedade portuguesa, as ideias que produziam uma revolução intelectual na Europa.

A mais religiosa das nações europeias

No século XVIII, Portugal era descrito por viajantes estrangeiros como a mais religiosa nação europeia. Além de ser a maior proprietária de terras do país, escreve Shrady, a Igreja Católica exercia um monopólio "na educação, na confissão, nos hospitais e nos tribunais do tão temido Santo Ofício da Inquisição". A devoção lusitana deixava o país fora de compasso com as transformações da época.

Não era apenas que as ideias dos pensadores modernos - Bacon, Descartes, Leibniz, Newton - pouco circulassem por lá. Seu ensino estava oficialmente proibido desde 1746 por um decreto da Universidade de Coimbra, que desautorizava "quaisquer conclusões contrárias ao sistema aristotélico". Que justamente essa pátria de beatos sofresse uma desgraça de escala bíblica foi uma ironia percebida por mais de um autor dos relatos e interpretações publicados nos meses e anos seguintes.

De todos os dias, o terremoto ainda ocorreu justamente em 1º de novembro, feriado de Todos os Santos, quando os portugueses atendiam a convocação dos sinos e lotavam os bancos das igrejas. Numa nota talvez um pouco especulativa, Shrady diz que os padres na basílica de São Vicente (padroeiro de Lisboa) começavam a cantar "Gaudeamus omnes in Domino" ("Exultemos no Senhor") quando aconteceu o primeiro tremor, por volta das 9h30m.

Foram três seguidos, num período de quinze minutos, que puseram abaixo a maior parte da capital portuguesa. Muitos morreram esmagados nos templos. Houve quem, em vez de fugir, se ajoelhasse pedindo penitência, com medo do Juízo Final.

Com a cidade por terra, uma multidão dirigiu-se ao Rio Tejo em busca de navios. Milhares foram levados pela onda gigante que atingiu o porto às 11h. Os relatos de sobreviventes reunidos no livro mostram a perplexidade causada pela tsunami, um fenômeno desconhecido: "voltando os olhos para o rio", narra um comerciante inglês, "pude percebê-lo se elevando e aumentando de volume de maneira inexplicável, uma vez que não soprava nenhum vento.

Em um instante apareceu a pouca distância uma grande massa de água, crescendo como uma montanha, que veio espumando e vagando e se precipitou em direção à margem com tamanha impetuosidade que, embora todos nós imediatamente corrêssemos o mais rápido possível para salvar nossas vidas, muitos foram levados". Construído pouco tempo antes, todo em mármore, o novo cais da cidade foi completamente engolido pela onda. Ao tremor e à tsunami seguiram-se incêndios causados pelo fogo de velas, lareiras e fornos da cidade.

Pombal lidera a reconstrução

O rei, Dom José I, estava no retiro real em Belém quando aconteceu o terremoto, e escapou ileso com toda a família real, mas ficou desorientado com a tragédia. Diante da hesitação, Pombal se apresentou com um plano prático ("enterrar os mortos e alimentar os vivos") que se traduziria nos dias seguintes numa série de medidas para resgatar feridos, evitar os saques - execução sumária para qualquer um apanhado roubando - e garantir o abastecimento da cidade.

A liderança num momento crítico deu imenso prestígio ao primeiro-ministro, que assumiria a reconstrução da cidade e logo se tornaria o governante de fato do país. Pombal aproveitaria o atentado contra D. José I para acusar adversários políticos - a família Távora e o Duque de Aveiro, condenados e executados - e, um ano depois, expulsar do país e das colônias toda a ordem jesuíta.

O mais influente integrante da ordem em Portugal, o missionário italiano Gabriel Malagrida, era confessor dos Távora e adversário de Pombal. O antagonismo entre os dois se acentuou depois do terremoto, quando Malagrida publicou "Juízo da verdadeira causa do terramoto" (1756), que interpretava o desastre como um castigo divino e associava as tentativas de explicação científica do fenômeno a ideias diabólicas.

A pregação batia de frente com as ações de Pombal, que em janeiro do mesmo ano enviara às dioceses portuguesas um questionário pioneiro na objetividade com que tentava recolher informações sobre o terremoto, com perguntas sobre a duração e a intensidade do abalo e nenhuma menção à ira divina.

Os expurgos abriram caminho para que Pombal, à maneira de outros déspotas esclarecidos da época, impusesse reformas modernizadoras à sociedade portuguesa, a começar pela ampliação da rede de ensino, liberação da circulação de obras até então proibidas pela Inquisição (de ciências, filosofia e história) e reformulação completa da Universidade de Coimbra, descrita anteriormente por ele como um lugar onde "as teimas, os sofismas e os maus livros fazem grande figura".

Além de impulsionar Pombal, o terremoto repercutiria no debate intelectual europeu. A discussão entre ele e Malagrida se estenderia a outros religiosos e filósofos da Europa. A tragédia foi comentada por Rousseau, Kant e Voltaire, e levou o professor de Cambridge John Mitchell a formular pela primeira vez a teoria do terremoto como efeito de propagação de ondas.

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Que jogo de azar é a vida humana! Quero acreditar que (...) os inquisidores tenham sido esmagados (...). Enquanto alguns santarrões embusteiros queimam alguns fanáticos, a terra se abre e engole a todos igualmente.
Voltaire, sobre o terremoto
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Que grande safra de almas pecadoras tais desastres mandam para o inferno! É escandaloso fingir que o terramoto foi apenas um acontecimento natural, pois se isso for verdade não há necessidade de se arrepender e tentar evitar a fúria de Deus.
Padre Gabriel Malagrida

Trancado