A aviação acabou - Arnaldo Bloch
O cúmulo do absurdo em quatro vôos da Ibéria
Peço licença à Cora: chegou minha hora de falar de aviação. Três semanas antes de março comprei uma passagem Rio-Londres-Rio pela Iberia, com escalas em Madri. O atraso de duas horas nem me afetou: já virou rotina. A conexão é que ia ficar apertada. Achei que, ao chegar a Madri, seria recebido pelo tal do pessoal de terra. Se lembram? Não faz tanto tempo. Era até emocionante, o avião esperando, correria gostosa. Mas não havia pessoal de terra, e tive que descobrir sozinho que era preciso marcar um novo voo.
— Devo recolher a mala? Fazer check-in?
— Não. A mala vai direto.
— Tem certeza?
A atendente me olhou com desprezo. Lembrei-me de sua expressão enjoada quando, mais tarde, em Londres, a esteira parou melancólica sem sinal da mala. No balcão londrino da Iberia me fizeram preencher ficha.
— Aguarde contato. Ou ligue.
No dia seguinte, telefonei. Disseram que a mala estava com “Mr. Alan”. E me aconselharam ir ao aeroporto e chamá-lo de uma cabine telefônica especial. Podia ser minha última chance. Em Heathrow, uma mulher histérica atendeu ao telefone secreto:
— Mr. Alan já foi embora, só volta semana que vem. Não sabemos de sua mala. Não está em Madri, nem em Londres. Ligue. Num impulso, segui de balcão em balcão à procura de Mr. Alan. Enfim me informaram que ele estava, sim, com minha mala, nos fundos do controle policial de tripulações.
Foi num corredor escuro e medonho que Mr. Alan surgiu duas horas depois. Tive que passar pela polícia. E saí em Londres como um passageiro recém-chegado. Um velho me acenou com um cartaz: Mr. Nakamura. Tive vontade de ir com ele, mas não falo japonês.
Achei que o contratempo terminava ali. E sete dias depois, já esquecido do incidente, pegava o voo Londres-Madri animado com a perspectiva de tomar uns tapas e comer um xerez. Às exceções de um passageiro com sinistro chulé e o encosto na frente do meu com defeito ocupado por um senhor de 130 quilos pressionando meus joelhos — e de eu ter morrido em 50 euros pra tomar uma garrafa de água e um sanduíche de pata verde —, tudo correu bem. Ah, também tive uma dúvida no troco e o comissário de bordo abriu minha carteira furiosamente para provar que eu estava errado e que ele não era ladrão. Mas isso não é nada. É o jeitão do cara. Viajar é viver.
Em Madri, porém, me deu um frio na barriga. A esteira que desembarcaria as malas do meu voo estava deserta. Fiquei sentado meia hora ali, no centro de um hall gigante e vazio ao fundo do qual surgiu, de repente, um vulto com uma prancheta. Míope, tive medo de que fosse o Joel Santana, mas era uma atendente loura e baixinha, até que gentil, dizendo que as malas daquele voo haviam sido distribuí- das aleatoriamente por várias esteiras. “Carajo, nunca he visto eso en mi vida!” — pensei.
De fato: todas as malas mudarem de uma esteira para outra, o.k., mas distribuição randômica de bagagem por dez esteiras é pós- moderno pra caramba! Tão pós-moderno que localizar minha mala custou uma série de cruzamentos de dados no computador e mais uma eternidade de espera (eu tinha menos de 24h para passear por Madri). Com a mala no carrinho, enfim relaxei novamente e até ri da
coisa toda. Mas na manhã seguinte...
Cheguei duas horas antes do voo Madri- Rio, direto, banho tomado, show..
— Temo que o senhor não possa embarcar. O voo está com overbooking.
— Mas eu reservei há três semanas!
— Não confirmou, não faturamos.
— Papo furado. Claro que faturaram.
— Muita gente comprou ontem, anteontem, pela internet, veio aqui e fez o check-in na vés- pera. Foram esses que tomaram seu lugar.
— E agora, o que acontece?
— Passe pelo controle e fique na fila de espera. Não haverá lugar. Mas tem que ficar. Depois, vá ao balcão para marcar um voo no dia seguinte. Hotel e refeições oferecidos, e seiscentos euros de indenização.
Havia uma penca de brasileiros na mesma situação. Um, vindo de Israel pela Iberia cheio de crucifixos, teve a mala violada e estava sendo acusado de ter forjado tudo. Brasileño, né? Uma senhora de São Paulo passou mal.
Um jovem empresário bateu boca com o homem da lista de espera e tirou fotos. Veio a polícia confiscar. Claro que a fila de espera era balela. Os furões ganharam a parada.
Ninguém parecia feliz com os seiscentos euros (entregues dali a três horas), um cala- boca óbvio para inibir processos. O homem dos crucifixos roubados, advogado, disse que era fácil ganhar em pequenas causas. Para remarcar o voo foi outra agonia. Duas horas no balcão, conexões estapafúdias. A mim foi destinado um voo Madri-Buenos Aires na tarde seguinte, com espera de seis horas na capital argentina sem direito a puerra nenhuma. Ainda deu tempo de comer um bife.
A aviação morreu. Não há mais charme, cortesia, respeito. E não é por causa dos clientes de bermuda e chinelos, como um diretor de companhia estúpido certa vez observou.
Um avião hoje é um ônibus piorado, um trem da Central voador. As companhias contam com o perverso overbooking e não são capazes de deixar um voo com um lugar sequer vazio. Danem-se os organizados, os honestos.
Mesmo com indenização, restam uns 30% de margem, e ainda faturam a passagem dos espertalhões. Meu agente disse que esse conto do vigário virou regra em quase todas as companhias. Perda de bagagem é o plus. Aviação do terceiro milênio é isso: passageiro que não paga executiva é um amontoado de carne num contêiner. Com risco de apodrecer.