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Anedota de brasileiro (referendo)

Enviado: 04 Nov 2005, 21:23
por o anátema
Ensaio: Roberto Pompeu de Toledo
Anedota de brasileiro

O referendo das armas foi um exercício de
sair do nada para chegar a lugar nenhum

Os brasileiros foram convocados a participar, neste domingo, 23 de outubro
de 2005, de uma consulta popular sobre coisa nenhuma. Trata-se de algo
possivelmente inédito no mundo. Discutiram-se durante semanas, com paixão,
questões já previamente resolvidas. Tomaram-se partidos que não vinham ao
caso. Ninguém, em posição de fazê-lo, se dignou a esclarecer o fato singelo
de que o que estava em jogo era nada. A pergunta a que os brasileiros foram
intimados a responder, "Deve o comércio de armas ser proibido?", chocava-se
contra um obstáculo lógico: o comércio de armas não pode ser proibido. Ele
estava garantido pela própria lei que determinou o referendo.

Para quem não está entendendo, voltemos aos pontos de partida desta
história. No dia 22 de dezembro de 2003, foi sancionada pelo presidente Lula
a Lei nº 10 826, apelidada de Estatuto do Desarmamento. Esse texto,
regulamentado pelo Decreto nº 5 123, de 1º de julho de 2004, determinou, ao
cabo de longos e acirrados debates no Congresso, quem pode possuir ou portar
armas, quando, onde e em que condições. O conjunto de disposições então
adotado não desmerece o nome de Estatuto do Desarmamento. Dificultou, de
modo considerável, a aquisição e o uso de armas de fogo no país, para quem
quer fazê-lo pelos meios legais.

Eis um primeiro ponto a reter: foram essa lei e o decreto que a
regulamentou, ambos aprovados e já em vigor, que determinaram quem pode
possuir ou portar armas. O referendo nada tem a acrescentar ao assunto.
Podem portar armas, isto é, levá-las consigo, integrantes de oito categorias
diferentes de corporações, das Forças Armadas à Receita Federal, passando
pelas polícias e as empresas privadas de segurança. Cidadão particular não
pode. Podem possuí-las, desde que as mantenham em casa ou no trabalho, todos
aqueles que comprovem "efetiva necessidade" disso, e desde que tenham no
mínimo 25 anos, não apresentem antecedentes criminais e passem nos testes de
"aptidão psicológica" e de "capacidade técnica para o manuseio de armas de
fogo", entre outras exigências. Se tudo isso já está decidido, não caberia
discutir, no quadro da campanha do referendo, como foi feito à exaustão, se
os cidadãos devem ou não se armar, ou se isso ajuda ou atrapalha a defesa
contra os criminosos. O Congresso já o decidiu por nós, como aliás é de sua
obrigação - e decidiu, dadas as múltiplas exigências que estabeleceu para o
cidadão comum ter acesso a armas, que elas são nocivas, tanto à segurança
coletiva quanto à individual.

Ao eleitorado, acompanhada de boa dose de absurdo, foi deixada a incumbência
de decidir sobre a inclusão, no Estatuto, da proibição do comércio de armas.
Proibir a compra e venda, é isso? Mas como, se a lei faculta que toda uma
gama de gente, dos integrantes das Forças Armadas ao cidadão que comprove
"efetiva necessidade", as possua? Como podem possuir sem comprá-las? Na
verdade, se a proibição do comércio fosse para valer, a vitória do SIM
significaria a revogação de todo o restante da lei. Ficariam prejudicados os
numerosos artigos que cuidam de quem pode ter armas, e em que condições. Se
não se pode comprar, de que adianta contar com a permissão para ter? A menos
que o governo desejasse, deliberadamente, jogar uma parte da população no
mercado negro. A loucura não chegou a tanto. A realidade singela é que não
há como proibir, pura e simplesmente, a compra e venda de armas, o que
significa dizer que, mesmo com a vitória do SIM, as pessoas autorizadas a
possuí-las, inclusive o cidadão avulso tomado da tal "efetiva necessidade",
continuarão podendo comprá-las. Em direito vige o princípio de que quem pode
o mais pode o menos. Quem pode ter armas claro que pode comprá-las. E quem
pode comprá-las claro que pode também comprar munição para alimentá-las.

Para que serve então o referendo? Vá lá, façamos um desconto: não é que ele
seja completamente sobre coisa nenhuma. Mas também não é sobre o que o
eleitorado foi induzido a pensar. O que está em jogo é o modo como serão
comercializadas as armas. Se devem ser mantidas as atuais lojas ou se deve
ser instituído um novo sistema de vendas. Essa é a única e escassa questão.
Vencendo o NÃO, continuam em operação as lojas atualmente existentes.
Vencendo o SIM, abre-se um leque de opções, para futura deliberação. A
primeira é a manutenção das lojas, reestruturadas. A segunda é a venda em
departamento do Exército ou da Polícia Federal. A terceira é a compra direto
das fábricas. A pergunta certa, para que o referendo chegasse com clareza ao
eleitorado, deveria girar em torno da botica da preferência do freguês, mas
lá isso é coisa que se pergunte ao pobre do eleitor? Abusou-se da paciência
do coitado. Levaram-no a pensar no assunto à toa. Para piorar, fizeram-no
enfrentar fila e perder a praia. E produziu-se, com um referendo que parte
do nada para chegar a lugar nenhum, mais uma anedota de brasileiro. "Sabe da
última?", perguntarão, pelo mundo. E então rirão muito, rirão de sacudir a
barriga e de sair lágrima dos olhos.

Re.: Anedota de brasileiro (referendo)

Enviado: 04 Nov 2005, 21:37
por Acauan
Roberto Pompeu de Toledo expressa uma conclusão ao qual já havia chegado, mas até aqui não a tinha visto expressa por outro: que se vitorioso o "SIM", no dia seguinte haveria uma enxurrada de ações na justiça de cidadãos exigindo seu direito à compra de armas com base na própria legislação vigente.

Isto só prova os perigos da tal democracia direta a lá Hugo Chavez, feita sob encomenda para que questões cruciais possam ser decididas sem que ninguém assuma a responsabilidade por elas, transferindo-a a um sujeito abstrato chamado povo.

Coisa típica de ditaduras diga-se, já que democracias baseiam-se nos modelos representativos, em que a discussão dos temas em profundidade pelos representantes legalmente eleitos do, pelo e para o povo decidem a forma final das leis.

Basta pensar qual seria o resultado se amanhá algum imbecil botasse em votação popular se os juros básicos deviam ou não baixar a zero. Como o povo provou não ser tão trouxa como pensam alguns, é possível que, com o devido esclarecimento, a razão prevalecesse.
Mas na primeira pesquisa, a vitória do SIM seria prevista com resultado próximo do 100%