A liberdade de expressão é uma utopia?
Enviado: 15 Fev 2006, 06:03
A liberdade de expressão é uma utopia?
Leneide Duarte-Plon, de Paris (*)
Liberdade de expressão e respeito ao direito é o que pauta a conduta da
mídia nas sociedades seculares e democráticas. Em princípio, a imprensa é
livre para enfrentar tabus religiosos de outras culturas, como aquele que
proíbe a representação do profeta Maomé.
Mas, convenhamos, uma coisa é desenhar um homem que representa o profeta
Maomé, como na maioria das charges publicadas no jornal dinamarquês
Jyllands-Posten. Outra é criticar o fanatismo dos terroristas mostrando o
profeta Maomé portando um turbante-bomba. Foi essa charge, segundo os
chefes religiosos reunidos no Marrocos, que chocou o mundo muçulmano, pois
houve associação entre o profeta e atos execráveis, diametralmente opostos
à mensagem que o mensageiro de Deus veio trazer".
O amálgama Islã = terrorismo é indefensável. Será que essa celeuma teria
sido evitada se não houvesse o desenho do turbante-bomba? Creio que sim. O
que é insuportável para os muçulmanos, fanáticos ou moderados, é
representar o profeta do Islã como um terrorista. Isso não é propagar o
ódio, disseminar a islamofobia, divulgar uma falsa equação muçulmano =
terrorista?
Evitar a provocação não significa submissão aos tabus da religião
muçulmana, que proíbe a representação do profeta. Esses tabus religiosos
devem valer para os crentes de cada religião, não têm que ser respeitados
pelos não-seguidores. OK, todos têm direito de representar Maomé, Cristo
ou Jeová e os profetas do judaísmo em charges. Mas associar Maomé, Cristo
ou os profetas judeus aos crimes cometidos por seus seguidores é uma coisa
totalmente diferente. Estimular a associação do profeta do Islã aos
terroristas é um reducionismo racista.
Aliás, a Dinamarca já fora o centro de outro episódio racista anti-Islã.
Um jornalista na televisão defendeu o extermínio dos muçulmanos,
comparados por ele a um tumor no corpo europeu. Levado à Justiça por
representantes da comunidade muçulmana, o jornalista foi condenado.
Maomé de turbante-bomba é uma imagem distorcida e preconceituosa da
religião muçulmana. Assim como culpar Jesus Cristo pela Inquisição que
matou milhares de pessoas sob tortura ou na fogueira; ou ainda culpar o
fundador do cristianismo pelo massacre dos índios americanos; ou, ainda,
pela escravidão dos negros africanos por brancos cristãos. O cristianismo,
como o judaísmo hoje, também foi usado para justificar "guerras santas" e
massacres de massa
Uma lei liberticida e duas sentenças opostas
A liberdade de expressão deveria ser absoluta num país democrático como a
França. Mas a Lei Gayssot, de 13 de julho de 1990, pune toda e qualquer
expressão nos meios de comunicação (inclusive livros) que possa ser
considerada como incitação ao ódio ou à difamação racial. Grande parte das
matérias que lemos na Veja sobre o Islã, preconceituosas e nitidamente
racistas, não poderiam ser publicadas em nenhuma revista francesa por
causa da Lei Gayssot, que surgiu como uma resposta a livros e textos
revisionistas
e negacionistas (que negavam o Holocausto) da década de 1980.
Dois casos recentes ilustram muito bem as discussões em torno da Lei
Gayssot combatida por alguns por ser considerada liberticida. O primeiro
foi o processo contra Michel Houellebecq, o segundo, contra o sociólogo
Edgar Morin.
Houellebecq escreveu:
"A religião mais babaca é a muçulmana. A leitura do Alcorão deixa a gente
arrasado... arrasado".
Atacado por associações muçulmanas e pela Liga dos Direitos Humanos, o
escritor foi inocentado pois a Justiça considerou que sua frase expressa
apenas uma crítica a doutrinas religiosas.
Em maio de 2005, o sociólogo Edgar Morin foi condenado pela Justiça
francesa por "difamação racial e apologia de atos de terrorismo" por um
texto publicado no jornal Le Monde, em 4 de junho de 2002. O que dizia
Morin no brilhante artigo "Israël-Palestine: le cancer", assinado por ele,
pelo deputado europeu Sami Naïr e pela escritora Danièle Sllenave? Dizia
que Ariel Sharon levara Israel a um impasse...
"...que prosseguiu a colonização nos territórios ocupados e considera como
oferta 'generosa' uma restituição restrita e parcelada dos territórios com
a manutenção das colônias e o controle do vale do rio Jordão".
Num dos parágrafos do texto lia-se a frase que serviu para instruir o
processo:
"Os judeus, que foram vítimas de uma ordem desumana, impõem agora uma ordem
desumana aos palestinos".
Os autores foram processados pelas associações França-Israel e Advogados
sem Fronteiras e acusados de anti-semitismo. O "judeu secular" e humanista
Edgar Morin qualificou a acusação de "grotesca".
Uma petição em defesa de Edgar Morin, assinada por alguns dos mais
importantes intelectuais e jornalistas franceses - como Jean Baudrillard,
Régis Debray e Alain Touraine -, foi publicada dia 24 de junho de 2005 na
internet e no jornal Libération. No texto, entre outras coisas, os
signatários diziam que "se inquietam legitimamente com toda medida que
tende a reduzir a liberdade de crítica em relação à política de um Estado,
qualquer que seja ele". Ao fim do processo, juntamente com a pena
simbólica de 1 euro por perdas e danos, Morin recebeu uma enxurrada de
e-mails ameaçadores de judeus extremistas e teve que pedir proteção à
polícia.
Comentando a reação dos judeus extremistas, Morin declarou:
"Muitos judeus veiculam uma imagem três vezes nobre: a do mártir, do
cultivador de terras áridas e a de Davi contra Golias. Ora, hoje são os
palestinos que se enquadram nessa imagem tripla e isso alguns judeus não
podem suportar. A mídia que mostra isso é taxada de anti-semita".
Onda de islamofobia se espalha pela Europa
Presidente do Conselho Francês do Culto Muçulmano, Dalil Boubakeur vê no
episódio dos desenhos de Maomé um novo sinal da "islamofobia contra os
muçulmanos e a religião que professam".
De fato, nos últimos anos, a Europa vem sendo tomada por uma onda de
islamofobia que se manifesta em declarações de políticos, artigos na
imprensa e livros de ódio racial como o de Oriana Fallaci. A jornalista
italiana, que vive em Nova York há mais de dez anos, lançou, em 2002, o
livro chamado A raiva e o orgulho, que vendeu mais de 1 milhão de
exemplares na Itália. Segundo o olhar raivoso de Fallaci, cada árabe é um
pequeno soldado bárbaro de uma cruzada contra a civilização ocidental.
O livro, qualificado de "delírio verbal e paranóico" por uma revista
francesa, é um vômito coalhado de ódio contra os filhos de Alá. Editado na
França, o panfleto suscitou um longo debate sobre a islamofobia crescente,
mas nenhuma entidade tentou retirá-lo de vendas recorrendo à Justiça. Na
Itália, somente as pessoas de esquerda protestaram contra o racismo da
autora, que vê a Europa ameaçada pela fertilidade dos árabes, "que se
multiplicam como ratos". Na Alemanha nazista, o inimigo abjeto era o
judeu;
para a extrema-direita européia de hoje, são os árabes.
O mundo não é mais o mesmo depois do fatídico 11 de Setembro de 2001.
Naquele dia, traumatizados, descobrimos que uma nova era começava.
Complexa e desorientadora, essa nova era viu nascer uma curiosidade pela
religião muçulmana, em nome da qual alguns terroristas atacaram o World
Trade Center.
Depois da tragédia, a mídia francesa passou meses publicando reportagens
especiais sobre o Islã, seus valores e sua evolução.
A edição nº 2152 da revista Le Nouvel Observateur (2/2/2006) volta à carga
com a reportagem de capa intitulada "A verdade sobre o Islã na França". Se
existe uma "verdade" a ser contada é porque ela é ocultada e precisa ser
revelada. A liberdade de expressão também pode ser usada para caricaturar
e desinformar. Algumas reportagens mostram que os fantasmas sobre os
islamistas radicais voltam com força depois da vitória do Hamas na
Palestina
Ao mesmo tempo, políticos como Philippe de Villiers, do Mouvement pour la
France, e Jean-Marie Le Pen, do Front National, virtuais candidatos da
extrema-direita às eleições presidenciais, denunciam a "islamização da
França". A xenofobia da extrema-direita é plenamente compartilhada pelo
ministro do interior Nicolas Sarkozy, que anuncia esta semana novas leis
de restrição à imigração.
As caricaturas do profeta caíram como uma bomba no islâmico, atiçando um
pouco mais a fogueira do ressentimento e do ódio.
(*) Jornalista
http://www.novae.inf.br/pensadores/libe ... topica.htm
Leneide Duarte-Plon, de Paris (*)
Liberdade de expressão e respeito ao direito é o que pauta a conduta da
mídia nas sociedades seculares e democráticas. Em princípio, a imprensa é
livre para enfrentar tabus religiosos de outras culturas, como aquele que
proíbe a representação do profeta Maomé.
Mas, convenhamos, uma coisa é desenhar um homem que representa o profeta
Maomé, como na maioria das charges publicadas no jornal dinamarquês
Jyllands-Posten. Outra é criticar o fanatismo dos terroristas mostrando o
profeta Maomé portando um turbante-bomba. Foi essa charge, segundo os
chefes religiosos reunidos no Marrocos, que chocou o mundo muçulmano, pois
houve associação entre o profeta e atos execráveis, diametralmente opostos
à mensagem que o mensageiro de Deus veio trazer".
O amálgama Islã = terrorismo é indefensável. Será que essa celeuma teria
sido evitada se não houvesse o desenho do turbante-bomba? Creio que sim. O
que é insuportável para os muçulmanos, fanáticos ou moderados, é
representar o profeta do Islã como um terrorista. Isso não é propagar o
ódio, disseminar a islamofobia, divulgar uma falsa equação muçulmano =
terrorista?
Evitar a provocação não significa submissão aos tabus da religião
muçulmana, que proíbe a representação do profeta. Esses tabus religiosos
devem valer para os crentes de cada religião, não têm que ser respeitados
pelos não-seguidores. OK, todos têm direito de representar Maomé, Cristo
ou Jeová e os profetas do judaísmo em charges. Mas associar Maomé, Cristo
ou os profetas judeus aos crimes cometidos por seus seguidores é uma coisa
totalmente diferente. Estimular a associação do profeta do Islã aos
terroristas é um reducionismo racista.
Aliás, a Dinamarca já fora o centro de outro episódio racista anti-Islã.
Um jornalista na televisão defendeu o extermínio dos muçulmanos,
comparados por ele a um tumor no corpo europeu. Levado à Justiça por
representantes da comunidade muçulmana, o jornalista foi condenado.
Maomé de turbante-bomba é uma imagem distorcida e preconceituosa da
religião muçulmana. Assim como culpar Jesus Cristo pela Inquisição que
matou milhares de pessoas sob tortura ou na fogueira; ou ainda culpar o
fundador do cristianismo pelo massacre dos índios americanos; ou, ainda,
pela escravidão dos negros africanos por brancos cristãos. O cristianismo,
como o judaísmo hoje, também foi usado para justificar "guerras santas" e
massacres de massa
Uma lei liberticida e duas sentenças opostas
A liberdade de expressão deveria ser absoluta num país democrático como a
França. Mas a Lei Gayssot, de 13 de julho de 1990, pune toda e qualquer
expressão nos meios de comunicação (inclusive livros) que possa ser
considerada como incitação ao ódio ou à difamação racial. Grande parte das
matérias que lemos na Veja sobre o Islã, preconceituosas e nitidamente
racistas, não poderiam ser publicadas em nenhuma revista francesa por
causa da Lei Gayssot, que surgiu como uma resposta a livros e textos
revisionistas
e negacionistas (que negavam o Holocausto) da década de 1980.
Dois casos recentes ilustram muito bem as discussões em torno da Lei
Gayssot combatida por alguns por ser considerada liberticida. O primeiro
foi o processo contra Michel Houellebecq, o segundo, contra o sociólogo
Edgar Morin.
Houellebecq escreveu:
"A religião mais babaca é a muçulmana. A leitura do Alcorão deixa a gente
arrasado... arrasado".
Atacado por associações muçulmanas e pela Liga dos Direitos Humanos, o
escritor foi inocentado pois a Justiça considerou que sua frase expressa
apenas uma crítica a doutrinas religiosas.
Em maio de 2005, o sociólogo Edgar Morin foi condenado pela Justiça
francesa por "difamação racial e apologia de atos de terrorismo" por um
texto publicado no jornal Le Monde, em 4 de junho de 2002. O que dizia
Morin no brilhante artigo "Israël-Palestine: le cancer", assinado por ele,
pelo deputado europeu Sami Naïr e pela escritora Danièle Sllenave? Dizia
que Ariel Sharon levara Israel a um impasse...
"...que prosseguiu a colonização nos territórios ocupados e considera como
oferta 'generosa' uma restituição restrita e parcelada dos territórios com
a manutenção das colônias e o controle do vale do rio Jordão".
Num dos parágrafos do texto lia-se a frase que serviu para instruir o
processo:
"Os judeus, que foram vítimas de uma ordem desumana, impõem agora uma ordem
desumana aos palestinos".
Os autores foram processados pelas associações França-Israel e Advogados
sem Fronteiras e acusados de anti-semitismo. O "judeu secular" e humanista
Edgar Morin qualificou a acusação de "grotesca".
Uma petição em defesa de Edgar Morin, assinada por alguns dos mais
importantes intelectuais e jornalistas franceses - como Jean Baudrillard,
Régis Debray e Alain Touraine -, foi publicada dia 24 de junho de 2005 na
internet e no jornal Libération. No texto, entre outras coisas, os
signatários diziam que "se inquietam legitimamente com toda medida que
tende a reduzir a liberdade de crítica em relação à política de um Estado,
qualquer que seja ele". Ao fim do processo, juntamente com a pena
simbólica de 1 euro por perdas e danos, Morin recebeu uma enxurrada de
e-mails ameaçadores de judeus extremistas e teve que pedir proteção à
polícia.
Comentando a reação dos judeus extremistas, Morin declarou:
"Muitos judeus veiculam uma imagem três vezes nobre: a do mártir, do
cultivador de terras áridas e a de Davi contra Golias. Ora, hoje são os
palestinos que se enquadram nessa imagem tripla e isso alguns judeus não
podem suportar. A mídia que mostra isso é taxada de anti-semita".
Onda de islamofobia se espalha pela Europa
Presidente do Conselho Francês do Culto Muçulmano, Dalil Boubakeur vê no
episódio dos desenhos de Maomé um novo sinal da "islamofobia contra os
muçulmanos e a religião que professam".
De fato, nos últimos anos, a Europa vem sendo tomada por uma onda de
islamofobia que se manifesta em declarações de políticos, artigos na
imprensa e livros de ódio racial como o de Oriana Fallaci. A jornalista
italiana, que vive em Nova York há mais de dez anos, lançou, em 2002, o
livro chamado A raiva e o orgulho, que vendeu mais de 1 milhão de
exemplares na Itália. Segundo o olhar raivoso de Fallaci, cada árabe é um
pequeno soldado bárbaro de uma cruzada contra a civilização ocidental.
O livro, qualificado de "delírio verbal e paranóico" por uma revista
francesa, é um vômito coalhado de ódio contra os filhos de Alá. Editado na
França, o panfleto suscitou um longo debate sobre a islamofobia crescente,
mas nenhuma entidade tentou retirá-lo de vendas recorrendo à Justiça. Na
Itália, somente as pessoas de esquerda protestaram contra o racismo da
autora, que vê a Europa ameaçada pela fertilidade dos árabes, "que se
multiplicam como ratos". Na Alemanha nazista, o inimigo abjeto era o
judeu;
para a extrema-direita européia de hoje, são os árabes.
O mundo não é mais o mesmo depois do fatídico 11 de Setembro de 2001.
Naquele dia, traumatizados, descobrimos que uma nova era começava.
Complexa e desorientadora, essa nova era viu nascer uma curiosidade pela
religião muçulmana, em nome da qual alguns terroristas atacaram o World
Trade Center.
Depois da tragédia, a mídia francesa passou meses publicando reportagens
especiais sobre o Islã, seus valores e sua evolução.
A edição nº 2152 da revista Le Nouvel Observateur (2/2/2006) volta à carga
com a reportagem de capa intitulada "A verdade sobre o Islã na França". Se
existe uma "verdade" a ser contada é porque ela é ocultada e precisa ser
revelada. A liberdade de expressão também pode ser usada para caricaturar
e desinformar. Algumas reportagens mostram que os fantasmas sobre os
islamistas radicais voltam com força depois da vitória do Hamas na
Palestina
Ao mesmo tempo, políticos como Philippe de Villiers, do Mouvement pour la
France, e Jean-Marie Le Pen, do Front National, virtuais candidatos da
extrema-direita às eleições presidenciais, denunciam a "islamização da
França". A xenofobia da extrema-direita é plenamente compartilhada pelo
ministro do interior Nicolas Sarkozy, que anuncia esta semana novas leis
de restrição à imigração.
As caricaturas do profeta caíram como uma bomba no islâmico, atiçando um
pouco mais a fogueira do ressentimento e do ódio.
(*) Jornalista
http://www.novae.inf.br/pensadores/libe ... topica.htm