PÓS-NEOLIBERALISMO
Assembléia constituinte e política de comunicação: prioridades para a revolução social
Fonte: Agência Carta Maior
Laboratório de Políticas Públicas da UERJ promove debate sobre os desafios da esquerda latino-americana e coloca no centro da análise a necessidade de investimento em ferramentas institucionais e de comunicação. Experiência venezuelana foi exemplo utilizado.
Autor: Marcel Gomes – Carta Maior
RIO DE JANEIRO – A emergência de uma série de governos progressistas na América Latina, especialmente na Venezuela e na Bolívia, tem impulsionado a discussão sobre quais rumos seguirá o continente que, durante anos, serviu como palco privilegiado para a implantação das políticas neoliberais.
Uma questão concreta que se coloca é quais políticas públicas, identificadas com o campo ideológico da esquerda, podem substituir os principais itens do chamado Consenso de Washington, entre eles a privatização de empresas e serviços públicos, a abertura comercial e a liberalização financeira. Afinal, a superação de uma era apenas se dará de fato quando os pressupostos de uma outra estiverem construídos.
Dar resposta a essa questão, apresentando e questionando políticas alternativas ao neoliberalismo, é um dos objetivos do seminário “Crise Hegemônica na América Latina e Pós-neoliberalismo”, que ocorre nestas quinta e sexta-feira (16 e 17) na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
O evento é promovido pelo Laboratório de Políticas Públicas (LPP) e pela Fundación por la Europa de los Ciudadanos, que trouxeram para o Brasil uma dezena de intelectuais latino-americanos identificados com a esquerda. Do Brasil, além dos cientistas sociais Emir Sader e Pablo Gentili, que coordenam o LPP, também participam o ex-ministro da Educação e ex-presidente do PT Tarso Genro e o coordenador do MST, Gilmar Mauro.
No primeiro dos quatro painéis do seminário, realizado na tarde de quinta-feira, a chamada “revolução bolivariana”, proposta e construída pelo governo do presidente Hugo Chávez na Venezuela, dominou os debates. Dois pontos foram aprofundados: primeiro, a importância de que governos de esquerda rompam “ataduras jurídico-formais”, através, por exemplo, de uma assembléia constituinte, como expôs o professor espanhol de direito constitucional Roberto Viciano. A Venezuela fez isso e o novo presidente boliviano, Evo Morales, promete realizar uma em seu país.
Um segundo item destacado foi a necessidade de executar uma política de comunicação que dê vazão a diferentes versões da história, fomentando meios para a contraposição à padronização estabelecida pela grande mídia privada. O tópico foi abordado pelo jornalista brasileiro Beto Almeida, um dos diretores da Telesur, a televisão criada pelos governos de Venezuela, Cuba, Argentina e Uruguai para ser a “CNN latino-americana”.
CONSTITUINTE
Uma característica marcante do governo de Hugo Chávez é a capacidade de improvisação. Segundo Roberto Viciano, que é professor na Universidade de Valência, Espanha, não existe ali um modelo acabado onde se quer chegar, como foi o caso de outros governos de esquerda no passado, apoiados por partidos comunistas e socialistas extremamente ideológicos e institucionalizados. “Ao contrário, na Venezuela as circunstâncias vão sendo construídas progressivamente e as forças políticas vão se acumulando”, analisa o professor espanhol.
Entretanto, o futuro do governo Chávez, iniciado em 1999, ficou ameaçado quando propostas de políticas públicas emancipadoras passaram a ser ameaçadas pelo texto da Constituição vigente. “As forças políticas e sociais se deram conta de que não eram possível mudar sem romper ataduras jurídico-formais”, diz Viciano.
A realização de uma assembléia constituinte ainda em 1999, sob uma conjuntura em que as forças políticas eram favoráveis ao Executivo, permitiu a criação de um arcabouço jurídico para sustentar o processo bolivariano. Não é à toa que Chávez vai a público sempre com um exemplar da nova Constituição nas mãos, a fim de legitimar as iniciativas de seu governo.
Mas todo esse processo não foi efetivado sem tensões. Segundo o professor espanhol, um desses momentos ocorreu quando Chávez solicitou ao Legislativo “uma forma ágil de aprovar um pacote de 49 leis”, fundamentais para o sucesso de seu governo.
Em novembro de 2000, a base governista consegue que a Assembléia Nacional aprovasse a Ley de Habilitación, através da qual o presidente poderia governar por decreto durante o período de um ano, sem necessitar do poder legislativo para aprovar leis. Entre esse mês e novembro do ano seguinte, Chávez promulgou seus 49 decretos.
Entre eles está a Lei de Hidrocarbonetos, que fixava a participação do Estado no sector petrolífero em 51%, e a Lei de Terras e Desenvolvimento Agrário, prevendo a expropriação de terras latifundiárias. Apenas cinco meses depois, em abril de 2002, ocorreu a tentativa de golpe de Estado, só debelado por uma mobilização popular que reconduziu Chávez ao Palácio Miraflores.
OUTRA MÍDIA
Mas como um governo de esquerda pode ter sucesso em executar um plano de transformação social com uma opinião pública maciçamente influenciada pela visão da grande mídia privada? Para o jornalista Beto Almeida, diretor da Telesur, a tarefa beira o impossível se não forem fomentados meios alternativos de comunicação.
“É impossível fazer mudança sem passar pela mídia, porque ela é uma destruidora em massa de consciências e visões de mundo”, afirma Almeida. Segundo ele, o governo Chávez tem isso claro e executa uma política que apóia a criação de rádios comunitárias e canais de televisão ligados ao próprio governo e a movimentos sociais, como a Telesur, a Vive e a Venezuelana de Televisão.
Foi a forma encontrada pelo governo para levar ao público “sua versão da história”, o que já foi crucial em um momento recente. Durante o golpe de 2002, diz Almeida, foram as rádios e tevês comunitárias que anunciaram “para os morros”, onde habita a população mais pobre da Venezuela, que Chávez não havia renunciado, mas tinha sido deposto e preso a mando das elites nacionais, ao contrário do que diziam os canais privados, como a Globovisión.
Consciente da importância desses veículos, o governo venezuelano também já distribuiu, segundo o direitor da Telesur, 2,2 milhões de dólares para que a Vive, ligada aos movimentos sociais, comprasse equipamentos e se capacitasse. Outra iniciativa destacada por Almeida é o programa Alô Presidente, apresentado todos os domingos pelo próprio presidente Chávez no canal Venezuelana de Televisão.
“É um bate-papo. Já são 311 programas em que muitas vezes ele discute com o povo, com ministros, as pessoas ligam e participam como se fosse uma reunião ministerial ao vivo. Ele quebra a imagem de que o chefe de estado é inatingível, falando uma linguagem compreensível com o povo”, diz o jornalista brasileiro.
Segundo ele, os programas já chegaram a durar seis horas. Discutem-se as questões de Estado, o destino do país, a necessidade de se retomar o debate sobre socialismo ou quanto tempo determinada obra pública demorará para ficar pronta. Durante o Fórum Social Mundial de Caracas, em janeiro, por exemplo, Chávez levou ao programa alguns dos principais intelectuais e ativistas ligados ao encontro.
Para Almeida, é uma visão de comunicação que o governo do presidente Lula, no Brasil, ainda não assimilou. De acordo com ele, o sinal da TV Nacional, controlada pelo governo, tem um sinal que não supera 100 quilômetros além de Brasília.
“O governo brasileiro não se deu conta disso, apesar de a expansão da mídia pública estar no programa de governo. Aqui 2,2 mil rádios comunitárias já fechadas, mesmo com o ministro Luiz Dulci (Secretaria-geral da Presidência) confessar que não poderia terminar o governo dessa maneira. Vejam que é um setor que ainda está nas mãos da oligarquia”, diz ele.
O FUTURO
A América Latina colocará em jogo seu futuro em 2006 e 2007. Estão marcadas eleições presidenciais no México, no Brasil e na Argentina, onde grupos políticos identificados com a esquerda tem boas chances de ocupar ou manter o controle do governo. Se, por um lado, o processo venezuelano pode servir de inspiração, por outro também traz lições que podem evitar alguns obstáculos enfrentados por uma agenda de mudança.
Roberto Viciano listou quatro delas:
- Excessiva improvisação. A própria Constituição, feita durante o governo Chávez, chega a impedir algumas propostas apresentadas pelo governo;
- Falta de experiência na gestão pública. É preciso mais programas para formação de quadros para esse setor, que hoje está em segundo plano em relação ao planejamento de campanhas eleitorais;
- Combater a corrupção, que não mais é um “patrimônio” da direita;
- Investir na democracia participativa, que permite organização dos marginalizados. A lei na Venezuela que estabelece os conselhos comunais, órgãos que reunirão entre 200 e 400 famílias nos bairros, ainda não foi aprovada e muitas decisões seguem sendo tomadas por cúpulas de dirigentes. Segundo Viciano, está nesta falta de incentivo à participação popular a origem da alta abstenção nas últimas eleições venezuelanas.
Para Viciano, essas são questões que ainda precisam ser resolvidas pelo campo da esquerda. O governo da Bolívia, cujo novo presidente, Evo Morales, deseja rumar por um caminho semelhante ao venezuelano, precisa estar atento a isso. “São nossas próprias falhas que ainda precisamos corrigir”, diz ele.
Assembléia constituinte e política de comunicação
- Claudio Loredo
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