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Racionalismo Crítico vs. Arrogância Utópica

Enviado: 18 Fev 2006, 09:54
por Liquid Snake
RACIONALISMO CRÍTICO
VERSUS
ARROGÂNCIA UTÓPICA


UBIRATAN JORGE IORIO DE SOUZA,
Doutor em Economia (EPGE/Fundação Getulio Vargas, 1984), Economista (UFRJ, 1969)

"... Civilization rests on the fact that we all benefit from knowledge which we do not possess" (A Civilização assenta-se no fato de que nós todos nos beneficiamos de conhecimento que nós não possuímos). (Friedrich A. Hayek)*


As Bases Filosóficas do Liberalismo

O objetivo deste capítulo inicial é mostrar as respostas que o liberalismo propõe para questões filosóficas fundamentais, tais como "que é conhecimento?", "que é liberdade?", "que é ordem social?", "que é justiça?", etc... Embora não seja possível identificar uma tradição unitária de pensamento liberal - o que tem levado diversos autores a falar em liberalismo "britânico" e outros pensadores a classificar as diferenças entre as diversas correntes liberais por nacionalidades (liberalismos inglês, francês, norte-americano e alemão) - é possível atribuir ao liberalismo um núcleo de identidades básicas, a partir das respostas formuladas àquelas questões filosóficas fundamentais. A demonstração de como é possível tal identificação foi objeto de um recente ensaio do filósofo brasileiro liberal Alberto Oliva, que defende o ponto de vista de que existe uma fundamentação filosófica bastante original servindo de apoio à chamada Tradição Liberal(1).

Muitas das controvérsias existentes no campo científico e, principalmente, no político, derivam das diferenças filosóficas básicas entre duas escolas gerais de pensamento. Como ressaltou Hayek(2), embora seja costumeiro referir-se a ambas como racionalismo, deve-se distinguir entre o racionalismo evolutivo (ou, na nomenclatura de Popper, racionalismo crítico) e o racionalismo construtivista (ou ingênuo, para Popper).

É nos antigos filósofos gregos que encontramos a divisão do mundo em fenômenos naturais, de um lado, e fenômenos produzidos pelo homem, de outro. Tal dicotomia prevaleceu durante séculos no pensamento europeu e sua conseqüência foi - já que todas as coisas ou eram naturais, ou seja, não dependentes da vontade e da ação dos homens, ou artificiais, isto é, resultado de ação humana intencional - a crença de que não era possível a ocorrência de fenômenos que, embora sendo produto da ação humana, não resultassem da vontade humana. Foi Bernard de Mandeville, em 1728, em sua "Fábula das Abelhas", quem apontou a maneira de resolver o dilema, influenciando David Hume, Adam Smith, Edmund Burke e, por intermédio das escolas "históricas" alemãs, já no século seguinte, Savigny, o qual por sua vez, influenciou Carl Menger, considerado o fundador da Escola Austríaca de Economia.

Por outro lado, opondo-se à tradição britânica, que passava a aceitar a existência de instituições produzidas pela ação, mas não pela vontade humana, surgiram os enciclopedistas franceses, influenciados por René Descartes, como Rousseau, Condocert e Voltaire, bem como, na Inglaterra, Thomas Hobbes (que estendeu o cartesianismo às ciências sociais e morais). Em seu entendimento, todas as instituições humanas conhecidas seriam - e não poderiam deixar de ser - frutos deliberadamente criados pela razão consciente. Isto conduziu à crença de que apenas as instituições concebidas pelo expresso desejo humano, isto é, "planejada", eram benéficas e ao conseqüente desprezo pela tradição, usos, costumes e pela história em geral.

O racionalismo cartesiano, ao ser transplantado para as ciências sociais, gerou a idéia de que a mente e a razão humanas seriam capazes, por si só, de permitir ao homem construir de novo a sociedade. Tal pretensão racionalista, que Hayek denominou de construtivismo, teve suas origens em Platão, fortaleceu-se com Descartes e encontrou seguimento em Hegel e Marx. Confrontado, com o racionalismo crítico característico do pensamento liberal, o racionalismo construtivista - fonte das utopias, do socialismo e do totalitarismo - desponta como ingênuo em suas crenças, extremamente arrogante em sua gnosiologia e perigoso em suas experimentações práticas nas sociedades modernas, como a história do século XX atesta.

A alternativa liberal - o racionalismo crítico ou evolutivo - baseia-se em uma visão de mundo extremamente mais realista em sua observação dos fatos, humilde em relação às limitações dos poderes da mente humana e cética no que diz respeito aos experimentos daquilo que Hayek denominou de "engenharia social" e que são o resultado natural da utopia racionalista cartesiana.

Para que o leitor possa compreender as vantagens que os liberais vêem no racionalismo crítico em relação ao construtivista, no que se refere à formulação de respostas às questões filosóficas fundamentais com que o homem se defronta, é conveniente situarmos algumas questões relacionadas com a teoria do conhecimento, mostrando a importância daquilo que se chama de negatividade - que através do recurso permanente aos contra-exemplos e refutações (falsificacionismo) - sobre os argumentos de natureza positiva, que servem de apoio às atitudes dogmáticas.

A Questão do Conhecimento

Uma das características centrais da metodologia da Escola Austríaca de economia e que reflete com clareza o núcleo de identidades liberais básicas a que se refere Oliva é a convicção de que o conhecimento humano apresenta um inevitável componente de indeterminação e de imprevisibilidade. A conseqüência disso é que não apenas o futuro torna-se difícil de ser previsto, mas, principalmente, que ele é essencialmente imprevisível e que, em função dessa inescapável incerteza, todas as ações humanas intencionalmente levadas a cabo produzem conseqüências involuntárias, isto é, que não podem ser calculadas, previstas ou esperadas e que podem tanto gerar benefícios como produzir malefícios não desejados.

Menger já observara que muitas das instituições sociais conhecidas haviam se desenvolvido espontaneamente(3) e que seus resultados, embora não planejados, freqüentemente revelavam-se inegavelmente benéficos. Tais frutos, no seu entendimento, constituíam-se nos "resultados não intencionais do desenvolvimento histórico". Ao mesmo tempo, o fundador da Escola Austríaca enfatizava o fato de que muitas das ações humanas, em decorrência da ignorância associada à imperfeição do conhecimento, resultam em erros.

Mas foi Hayek quem, combinando a linha iniciada em Viena por Menger e desenvolvida posteriormente por Mises(4) com a tradição clássica britânica calcada na liberdade individual, derivada de John Locke, Bernard de Mandeville, David Hume e Adam Smith, desenvolveu uma teoria do conhecimento que, juntamente com as contribuições de Karl Popper e G.L.S. Shackle, constitui-se no fundamento de maior influência no pensamento liberal moderno.

Um dos pontos centrais da teria hayekiana do conhecimento é que existem claros limites à capacidade da mente humana, que a impossibilitam de compreender integralmente a complexidade dos fenômenos sociais e econômicos. Por analogia com o teorema do Gödel - que sustenta ser impossível demonstrar-se a consistência de um sistema formal quando se vive dentro desse próprio sistema - Hayek observa que todos os sistemas formais possuem necessariamente algumas regras de funcionamento e de conduta que não podem ser previamente determinadas ou, mesmo, que sequer podem ser estabelecidas conscientemente(5). Isto significa, em outras palavras, que nós sabemos mais do que aquilo que falamos ou que pensamos saber e que, portanto, é impossível quantificar ou estabelecer concretamente todo o nosso conhecimento. Por essas razões é que, conforme veremos no capítulo 3, os mercados competitivos, ao invés de serem vistos como mercados em equilíbrio, devem ser encarados como processos, isto é, como simples mecanismos de descoberta e articulação de um conhecimento que se apresenta encoberto e desarticulado no mundo real.

É importante observarmos o forte contraste entre a postura liberal a respeito do conhecimento, denominada falsificacionismo ou concepção negativa de conhecimento (uma vez que nega a possibilidade de um conhecimento completo dos fenômenos sociais) com a posição anti-liberal, a do justificacionismo ou concepção positiva do conhecimento.

O positivismo em teoria do conhecimento que, como vimos, remonta a Platão e ganha força com Descartes, sustenta, em linhas gerais, que só se pode qualificar de conhecimento aquilo que se consegue demonstrar através da razão ou que pode ser explicado empiricamente, a partir de observações concretas e neutras em relação a qualquer teoria. É fácil perceber que essa forma extremada de racionalismo que caracteriza a vertente justificacionista, ao tender a identificar como razão de ser de todo o conhecimento uma pseudo certeza acarretada pelas demonstrações lógicas e pela confiança nas observações empíricas, faz brotar a crença no construtivismo, isto é, na pretensa capacidade que teria a mente humana de construir sistemas econômicos, políticos, jurídicos, éticos, etc., de acordo com o que fosse considerado "justificado" racionalmente. A crítica liberal - confirmada pelos fatos - é de que é na arrogância de tal postura que se pode encontrar a origem das utopias, desde aquelas mais extremadas, como a que caracterizou o ideal socialista, até as mais brandas, mas nem por isso menos insensatas, como, por exemplo, a crença dos keynesianos de que os economistas do governo, conhecendo melhor do que os demais cidadãos o que é melhor e o que é pior para todos, podem e devem intervir no sistema de preços e no processo de mercado, com o objetivo de corrigir falhas e gerar "crescimento" econômico. Em outras palavras e parodiando Kant, podemos dizer que o racionalismo construtivista que sustenta essa postura positiva - justificacionista a respeito do conhecimento, levou e ainda leva muitas pessoas, algumas das quais cheias de boas intenções, a adotarem a atitude arrogante de julgar que podem fazer os outros felizes à sua maneira, isto é, que é possível construir-se sistemas complexos em que tanto as instituições como os seres humanos que os compõem ajam sempre em conformidade com a definição de felicidade dos planejadores...

O liberalismo, conforme o próprio nome sugere, enfatiza a importância da liberdade consciente, não apenas como valor ético fundamental, mas - e isto é extremamente importante - como pré-condição para a geração e distribuição de riqueza. É conveniente frisarmos que tal ênfase na liberdade, que caracteriza a postura liberal nos campos do direito, da política, da economia, da ética, etc., fundamenta-se epistemologicamente em uma concepção clara acerca do que é (e do que não é) conhecimento.

A rigor, conforme analisa magistralmente Oliva(6), a teoria liberal do conhecimento possui quatro traços bem característicos. O primeiro enfatiza os limites que existem à razão. O segundo nega a possibilidade de justificação das teorias como verdades, isto é, repudia o justificacionismo a que nos referimos, preferindo adotar o falsificacionismo, que se baseia na existência e na importância da incerteza e da ignorância, que induzem ao erro. O terceiro reconhece uma inevitável dispersão e fragmentação do conhecimento, isto é, que cada indivíduo dentro da sociedade detém apenas uma pequena fração do conhecimento total existente na sociedade. E o quarto nega a previsibilidade histórica, uma vez que a capacidade de previsão do curso futuro dos acontecimentos exigiria algo que está fora de nosso alcance, que é a própria capacidade de antever a evolução futura de nosso conhecimento. Este capítulo enfatiza o segundo traço, considerando os outros três como pano de fundo.

Ora, se não nos é possível alcançar uma fundamentação positiva para o que julgamos ser nosso conhecimento, tudo o que nos resta é a tentativa de livrarmo-nos dos erros e das falsas hipóteses ou crenças, isto é, resta-nos a postura humilde de reconhecer que, do ponto de vista da teoria do conhecimento, não devemos nos atrever a ir além do método dedutivo que caracteriza o falsificacionismo-negativismo. Assim pensam os liberais.

Esta "primazia da negatividade" no pensamento liberal, isto é, esta postura anti-justificacionista e, portanto, falsificacionista, é transferida então das altas nuvens da epistemologia para o árido chão da política, do direito, da economia e da sociologia. É a partir desse procedimento que o liberalismo encontra as respostas às questões básicas das sociedades, como liberdade, lei, justiça, Estado, ordem social, felicidade, etc., o que será tentativamente feito nas páginas que se seguem.

Liberdade Positiva e Liberdade Negativa

Para um liberal, liberdade é sinônimo de ausência de coerção ou constrangimento imposto por outrem. Este é o conceito de liberdade negativa ou "liberdade de", que se fundamenta na abordagem falsificacionista(7). Ao afirmar que alguém é livre, o liberalismo entende como tal que ele pode escolher seus próprios objetivos, bem como os meios a serem utilizados para a concretização desses objetivos, que ele não é compelido a agir de uma forma que não escolheria voluntariamente, ou, ainda, que ele não é impedido de agir, por imposição de outrem - seja por parte de outro indivíduo, de um grupo de indivíduos ou do Estado - do modo que preferiria. Liberdade, assim entendida como ausência de coerção ou de constrangimento imposto por terceiros, significa o estabelecimento de um campo de atuação, dentro do qual o indivíduo - o sujeito da liberdade - pode decidir sobre seus objetivos e sobre que meios de ação deseja empreender. Evidentemente, a delimitação de sua área de atuação deve ser realizada por um conjunto de normas gerais de justa conduta, isto é, de leis, cujo objetivo maior deve ser o de servir como salvaguarda da própria liberdade. A esta altura, podemos observar - como já notara John Locke há mais de trezentos anos - que não pode haver liberdade onde não existe lei(8).

Em contraposição à idéia de liberdade negativa que caracteriza o liberalismo, existe a concepção positiva de liberdade ("liberdade para"), abraçada pelos que imaginam que ser alguém livre é o mesmo que ter ou receber poderes ou direitos para executar ações com vistas à concretização de fins especificamente determinados. Tal definição, como observou Isaiah Berlin(9), remonta a Platão e ganha cores mais nítidas a partir de Hegel: "é certo que não sou escravo de ninguém, mas não poderia ser escravo da natureza, ou de paixões, sejam elas morais, legais ou políticas?" É evidente que essa entidade superior, à qual os indivíduos se subordinariam (geralmente por serem ignorantes, cegos ou corruptos, segundo os defensores da liberdade positiva), pode ser alçada ao nível superpessoal - uma comunidade, uma nação, uma classe, o Estado, ou a própria marcha da história, a cujos desígnios próprios e ascendência ético-normativa e a cujo pretenso determinismo materialista as consciências individuais deveriam sempre subordinar-se candidamente. Em outras palavras, o conceito positivo de liberdade nada mais é do que uma simples manipulação com as definições de homem e de liberdade, com o objetivo de que venha a servir aos interesses, na maioria das vezes escusos e simples instrumentos da vontade de poder, do manipulador ou do grupo manipulador da verdadeira liberdade dos indivíduos. A história recente - Lenin, Hitler, Stalin, Fidel e tantos outros - é um atestado de que a distinção entre liberdade negativa e "liberdade" positiva não é apenas uma questão puramente acadêmica: quantos milhares de pessoas não perderam suas vidas, neste século, acreditando que o faziam por um "ideal" - a vitória final do socialismo ou a superioridade nazista, por exemplo - que, segundo haviam solertemente inculcado em suas cabeças, era superior e, portanto, deveria pairar acima de sua vontade individual? Nos regimes holistas - coletivistas, os indivíduos sempre são considerados simples peças de uma grande máquina social. Com efeito, em sua forma mais radical - aquela adotada pelo regime marxista - o conceito de liberdade positiva é usado para defender o ponto de vista de que o Estado, ao invés de proteger a propriedade privada, deve proteger o trabalhador contra a exploração capitalista, mesmo que isto signifique, como sempre ocorreu no chamado "socialismo real", a abolição quase completa da liberdade de escolha. Mesmo se a chamada teoria da exploração fosse algo palatável ou digerível pelo bom senso, o que se poderia dizer é que, pela vontade expressa de uma minoria - a "intelligentsia" e os membros do partido único - a imensa maioria de cidadãos seria simplesmente compelida a trocar de amo, deixando de ser "explorada" pelos capitalistas (nacionais e estrangeiros), para ser escravizada pelo Estado.

Conforme argumentou Sir Isaiah Berlin, se um indivíduo mostrar-se disposto a sacrificar um pouco de sua liberdade em benefício de mais igualdade para os outros, não é correto concluir-se que a liberdade total aumentou. Na verdade, o que poderia nesse caso ter ocorrido seria uma perda - e não um ganho - de liberdade. Cada coisa é exatamente o que ela é: liberdade é liberdade e não satisfação, ou justiça, ou igualdade, ou cultura, ou felicidade. Assim, os defensores da "liberdade para", ao argumentarem, por exemplo, que se pode trocar doses de liberdade individual por doses de liberdade de uma outra espécie, enredam-se em uma falácia, que é a da confusão de valores.

A esta altura, o leitor já terá percebido que, onde não existe liberdade negativa - isto é, onde há coerção - os indivíduos ficam inapelavelmente submetidos à vontade de terceiros, cuja ação arbitrária pode coagi-los a agir ou a não agir de determinadas formas.

É importante observarmos que o conceito de liberdade negativa, significando ausência de coerção, conduz necessária e naturalmente à necessidade de uma proteção social contra a coerção, que deve assumir a forma de leis - normas gerais de justa conduta, estabelecidas com o objetivo de evitar que alguém ou algum grupo tenha o poder de coagir outros indivíduos ou grupos. Por esses motivos é que Hayek escreveu que "a exigência liberal da liberdade é, por conseguinte, uma exigência de remoção de todos os obstáculos criados pelo homem aos esforços feitos pelos indivíduos, não uma reivindicação no sentido de que a comunidade ou o Estado supram bens particulares".

A concepção negativa de liberdade decorre, como o leitor talvez já tenha notado, da postura humilde que caracteriza a teoria do conhecimento liberal, associado, como vimos, a Locke, Hume, Stuart Mill, Hayek e Popper, segundo a qual nossa ignorância é inevitavelmente infinita e nosso conhecimento, também inescapavelmente, é finito. Aceitando esse fato, torna-se compreensível o empenho demonstrado por todos os pensadores liberais no sentido de demonstrar que o usufruto da liberdade - ausência de coerção - é um elemento fundamental para que o homem possa fazer frente ao seu desconhecimento a respeito dos processos que lhe permitem obter a realização de seus fins. É evidente que a liberdade deve ser tanto mais valorizada quanto menor for o conhecimento: se este fosse pleno, isto é, se fôssemos oniscientes, a liberdade perderia valor enquanto fundamento da evolução das sociedades humanas.

Vimos o quanto é importante o estabelecimento de leis, com o objetivo de salvaguardar a liberdade. No entanto, quando a lei não atende às características de negatividade, ela pode ter como conseqüência a desfiguração e até mesmo a destruição da liberdade.

Por isso, as definições de liberdade e coerção dadas pela Escola Austríaca implicam necessariamente em uma complementação, que é o conceito de responsabilidade individual. É por isso que Hayek abre o 5º Capítulo de seu livro "Os Fundamentos da Liberdade" da seguinte maneira:

"Liberdade não significa apenas que o indivíduo tenha tanto a oportunidade quanto as fronteiras de (sua) escolha; significa, também, que ele deve carregar as conseqüências de suas ações e receber tanto prêmio quanto punição por elas. Liberdade e responsabilidade são inseparáveis”. (grifo nosso) (11)

Como a liberdade sem responsabilidade geraria anarquia, com a conseqüente agressão aos direitos individuais, torna-se necessária a existência de um sistema de normas de justa conduta. No entanto, o liberalismo procura mostrar com clareza a natureza das leis, uma vez que, para o objetivo de garantir a vida em sociedade salvaguardando a liberdade responsável, a simples sanção de normas coercitivas não basta. É preciso que essas normas sejam, de fato, conformes ao conceito liberal de lei que, como veremos, atende aos requisitos da negatividade.

Não é pelo número de normas existentes em uma sociedade que devemos pautar nossa análise. Muito pelo contrário, ao que parece, quanto maior o número de leis, menor a eficiência do sistema jurídico. Ou, como afirmara Tácito, "quanto mais corrupta é a República, mais corruptas são as leis". (12). o que é relevante é a qualidade das leis, não sua quantidade.

Para examinarmos a qualidade das leis, a primeira coisa que temos que fazer é definir lei. Giovanni Sartori (13) observa que, na tradição romana, ius (em latim, a lei) ligou-se definitivamente com iustum (o que é justo). Os gregos não possuíam um equivalente à palavra ius: os termos diké e dikaiosúne expressam a idéia moral, mas não a idéia legal de justiça, o que significa, de acordo com Battaglia e Sforza(14), que não são equivalentes a iustum, que deriva de ius. Com o passar do tempo, a antiga palavra usada para denominar o direito passou a ser, em inglês (right), em italiano (diritto), em espanhol (derecho) e em francês (droit), designativa de justiça. Em outras palavras, ius é tanto o legal como o justo. Isto significa que o direito não foi concebido como o conjunto de regras gerais postas em vigor por um soberano (iussum), mas como uma regra que expressa e encarna o sentido de justiça da comunidade (iustum). Portanto, em sua concepção original, o direito é mais do que uma norma qualquer que tem a forma de uma lei; ele é um conjunto de normas com um conteúdo, isto é, de regras que possuem o atributo e a qualidade de serem justas. Por isso, a concepção liberal de lei - norma geral de justa conduta - está perfeitamente em conformidade com as origens do direito.

Trata-se, como podemos ver, de uma concepção negativa de lei, pois, como escreveu Fréderic Bastiat, "quando a lei e a força mantêm um homem dentro da justiça, não lhe impõem nada mais do que uma simples negação. Não lhe impõem senão a obstrução de prejudicar outrem. Não violam sua personalidade, sua liberdade, nem sua propriedade. Somente salvaguardam a personalidade, a liberdade e a propriedade dos demais. Mantêm-se na defensiva pura e defendem a igualdade de direitos para todos" (15).

A finalidade da lei não deve ser restringir, nem impedir, mas preservar e ampliar as liberdades (com responsabilidade) individuais, na tradição do pensamento liberal. O liberalismo rejeita o conceito positivo de lei, originário da jurisprudência analítica de John Austin, de um lado, e do positivismo jurídico - que, diga-se de passagem, deitou raízes profundas no direito brasileiro -, associado ao nome de Kelsen. Tal conceito encarna uma visão meramente formal do direito, identificando-o com sua própria forma. Em outras palavras, o positivismo jurídico tende a confundir direito com legislação. Tal desvio em relação à tradição romana parece ser conseqüência da idéia enganosa de que o Rechtsstaat, ou Estado de direito, eliminaria por si só a possibilidade de o direito ser injusto, o que explica, em parte, a atitude de acreditar que o direito possa ser reduzido a um problema de forma e de quantidade, quando na realidade o que importa é o conteúdo e a qualidade.

O direito positivo, no dizer de Oliva, "torna regra a coerção e exceção a liberdade" (16). Na concepção liberal, as leis devem ser diferenciadas dos comandos que emanam do direito positivo: uma lei deve ser proscritiva, do tipo "não matarás" ou, genericamente, "não farás isto ou aquilo" e não do tipo "farás isto ou aquilo". Evidentemente, a lei deve basear-se em sistemas éticos basilares, fundamentando-se muito mais nas tradições, usos e costumes do que na jurisprudência.

As leis que atendem a esses requisitos, isto é, que sejam normas gerais de conduta justa e que, além disso, sejam prospectivas, abstratas e igualmente aplicáveis a todos, impõem-se naturalmente: trata-se da autoridade das leis, que deve ser contraposta ao caso oposto dos comandos derivados do direito positivo, que, priorizando a forma e o número, transformam-se em verdadeiras caricaturas das leis, isto e, em simples leis das autoridades, abolidoras da liberdade. Na nomenclatura da Hayek, que se inspirou nos gregos, uma ordem jurídica baseada em normas de conduta com os atributos negativos da lei é designada por Nomos (que se pode traduzir com "por convenção", ao passo que uma ordem jurídica baseada nos comandos que emanam do conceito positivo de lei é denominada de Thesis (que se traduz como "por decisão deliberada"). Voltaremos a este ponto no próximo capítulo.

A predominância da negatividade no pensamento liberal não se restringe apenas aos conceitos de liberdade e de lei. Estende-se à própria visão de Estado e ao conceito de felicidade humana.

A respeito da concepção negativa do Estado, teremos ocasião de tecer maiores comentários oportunamente. Por ora, basta que o leitor tenha em mente que, para o liberal, o que proporciona a máxima liberdade de escolha individual não é a forma de governo que a sociedade adota, mas sim a extensão do poder que se concede ao Estado. Assim, o liberalismo vê a democracia como simples meio de governo, que é superior por haver se revelado o melhor dentre os demais de que se tem conhecimento e contesta a ideologia democrática, derivada de Rousseau, que vê a democracia não como forma de governo, mas como um fim em si mesmo. Daí a necessidade, preconizada pelos liberais, de se estabelecerem mecanismos institucionais que assegurem a contenção do poder do Estado dentro de limites, além dos quais os direitos individuais básicos seriam agredidos. Como escreveu Thomas Paine:

"A sociedade é produzida por nossas carências, o Governo por nossa perversidade. A primeira promove positivamente nossa felicidade, unindo nossos afetos. O segundo negativamente, restringindo nossos vícios. A primeira estimula a interação, o outro cria distinções. A primeira protege, o segundo pune.

A sociedade, em qualquer de seus estágios, é uma bênção, ao passo que o governo, mesmo em sua melhor forma, não passa de um mal necessário; e, na sua pior versão, um mal intolerável"(17)

No que se refere à concepção da felicidade humana, o liberalismo rejeita a crença, fundamentada no racionalismo construtivista, de que aqueles que fazem a lei e que detêm o poder têm o conhecimento necessário e suficiente para impor o seu conceito particular de felicidade aos outros. Assim, reconhecendo nossa escassez de conhecimento, devemos deixar a cada um, dentro de um ambiente responsável e ao amparo da lei, a busca de sua própria felicidade.

Com base no que foi exposto neste primeiro capítulo, acreditamos que seu título - Racionalismo Crítico vs. Arrogância Utópica - esteja a esta altura bastante claro. Liberalismo, a partir de uma teoria do conhecimento realista, que reconhece as limitações do saber humano, segue uma postura racional crítica, sem levar o racionalismo às últimas conseqüências, o que o faz adotar uma atitude humilde e, portanto, rejeitar as posições pretensiosas e arrogantes - a "pretensão fatal" a que se referia Hayek(18) - do racionalismo construtivista, que servem de base para a "engenharia social" e para a utopia, fenômenos que enlutaram o século XX e que precisam ser definitivamente banidos da civilização, para o bem da humanidade.

No próximo capítulo, veremos como essas duas visões de mundo resultam em dois casos polares de organização social, política e econômica. Veremos, além disso, que, neste caso, a virtude não está no meio, uma vez que o denominado "terceiro caminho" - uma tentativa de combinar uma ordem espontânea com o construtivismo - sendo filosoficamente contraditório por natureza, mostra-se insustentável quando se tenta aplicá-lo às organizações humanas.


Referências bibliog’raficas


* Hayek, F.A., "Law, Legislation and Liberty", vol.I "Rules and Order", The University of Chicago Press, Chicago, 1983, cap.1, pág.15.

1. Oliva, A. "Entre o Dogmatismo Arrogante e o Desespero Cético (A Negatividade como Fundamento da Visão de Mundo Liberal)", Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1993.

2. Hayek, F.A., "Law, Legislation and Liberty", vol.I, pág.5

3. Menger, C., "Problems of Economics and Sociology", Scheider, Urbana, University of Illinois, traduzido para o inglês por F.J. Nock do original em alemão de 1883.

4. Ver, por exemplo, Ludwig von Mises, "Ação Humana - Um tratado de Economia", Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1990.

5. Hayek, F.A., "New Studies in Philosophy, Politics and the History of Ideas", Routledge & Kegan Paul, 1978.

6. Oliva, A., op.cit., item 1.

7. Para um interessante mergulho no tema da liberdade, sugerimos ao leitor o estudo de três textos que, dentre inúmeros, podem ser considerados muito interessantes. O primeiro é o clássico "Sobre a Liberdade", de John Stuart Mill (Vozes, Petrópolis, 1991); o segundo, "Quatro Ensaios sobre a Liberdade", de Isaiah Berlin (UNB, Brasília, 1981) e o terceiro, "Os Fundamentos da Liberdade", de F.A. Hayek (São Paulo/Brasília, Visão/UNB, 1983).

8. "Pois, liberdade significa ser livre de restrições e de violências perpetradas por terceiros. Daí não poder existir onde não há lei". (Locke,J., "Two Treatises on Civil Government", Routledge, Londres, 1952, pág.37).

9. Isaiah Berlin, op.cit., pág.145

10. Hayek, F.A., "New Studies", pág. 134.

11. Hayek, F.A., "Os Fundamentos da Liberdade", cap.5.

12. Tácito, "Anais", III, 27.

13. Sartori, G., "La Libertad y la Ley", in: Libertas, nº 5, outubro de 1986, Ano III, Eseade, Buenos Aires, págs. 3/50.


14. Battaglia, Felice, "Alcune Osservazioni sulla Strutura e sulla Funzione del Diritto" e Sforza, W. Cesarini, "Ius et Directum - Note sull'Origene Storica dell'Idea di Diritto", citados por Sartori (op.cit., pág.41).

15. Bastiat, F., "A Lei", José Olympio/Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1987.

16. Oliva, A., op.cit., cap.1.

17. Payne, T., "Os Direitos do Homem", Vozes, Petrópolis, 1989.

18. Ver, p.ex., Hayek, F.A., "The Fatal Conceit - The Errors of Socialism", ed. por W.W. Bartley III, Univ. de Chicago, Chicago, 1988.

Mais textos em: http://www.ubirataniorio.org/downloads.htm

Re.: Racionalismo Crítico vs. Arrogância Utópica

Enviado: 18 Fev 2006, 15:09
por Liquid Snake
:emoticon10:

Re.: Racionalismo Crítico vs. Arrogância Utópica

Enviado: 18 Fev 2006, 15:38
por Samael
A natureza ética do liberalismo e do capitalismo

Vicente Barretto
UGF/ UERJ


As relações entre o mundo dos valores éticos e os sistemas econômicos têm sido analisadas de formas diferentes, revelando muitas vezes preconceitos que ignoram os próprios fundamentos desses sistemas. Dependendo da postura ideológica do analista os sistemas econômicos assumem feições verdadeiramente teratológicas. Assim, por exemplo, o socialismo no entendimento de grande número de autores conservadores representa não somente um projeto de organização da sociedade e do Estado, mas, principalmente, uma concepção intrinsecamente maléfica do ser humano. Autores como Joseph de Maistre, evidenciam um entendimento do projeto socialista, onde se rejeita qualquer dimensão humana utopia socialista.
No mesmo caso acham-se aquele autores que consideram o liberalismo e o capitalismo como sistema político e econômico, que rejeitam em sua própria natureza os valores morais da pessoa humana. Seria, em sentido contrário, aquilo que o socialismo representa para o pensamento conservador. No fundo a crítica , tanto ao socialimso como ao comunismo, em termos de antípodas acabam por ignorar a dimensão ética tanto de um, quanto de outro. Resta saber em que sentido pode-se falar em ética no que se refere ao capitalismo. Alguns autores consideram mesmo que o estado liberal e o capitalismo são formas de organização política e econômica, baseadas numa concepção a-ética das relações econômicas e do exercício do poder. Em virtude desses preconceitos intelectuais é que a análise da evolução da sociedade moderna - pluralista, democrática e capitalista - torna-se defeituosa e incompleta. Para que se possa superar essa dificuldade analítica, resultante de uma postura intelectual simplificada da questão, torna-se necessário distinguir as origens do liberalismo e do capitalismo, e estabelecer em que medida essas origens trouxeram para o seio da organização social e econômica valores e uma concepção particular do homem e da sociedade.
Pretendo neste texto investigar a relação entre os três temas, acima referidos, procurando demonstrar o que se entende por cada um deles e quais as possibilidades, bem como as características, de uma ética do liberalismo e do capitalismo. Para tanto, torna-se necessário situar no terreno da história das idéias e dos sistemas políticos e econômicos como o liberalismo e o capitalismo surgiram e modificaram-se, desde suas origens há quase dois séculos, sendo mesmo na atualidade considerados, por alguns saudosistas, como caricaturas de si mesmos. A questão da influência dos valores éticos na formação do ethos liberal e capitalista encontra-se plenamente estudada nos dias atuais, tendo sido uma contribuição pioneira do sociólogo alemão Max Weber no livro, hoje clássico, intitulado A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Nesse livro Weber mostra como as formas de atuação e a concepção do mundo e da sociedade encontrada no capitalismo refletiam uma visão ética específica. Procurava mostrar o sociólogo alemão como essa ética diferenciava-se da ética católica, vigente na época.
Enquanto o catolicismo repudiava a vontade de enriquecer, que tinha no lucro a sua expressão mais significativa, o protestantismo afirmava que o enriquecimento, fruto do suor e do trabalho dos homens, era o sinal da benção de Deus ao homem empreendedor. Essa riqueza, entretanto, não se identificava com a pura sede de acumular, com a busca do lucro e do dinheiro, escrevia Max Weber. O capitalismo nada tinha a ver com a avidez desmesurada do ganho. Ao contrário, afirmava Weber, o capitalismo iria caracterizar-se antes de tudo pela contenção e pela moderação racional dos nossos impulsos irracionais. O capitalismo necessita do lucro no empreendimento racional para que haja rentabilidade, sem a qual a empresa está fadada ao fracasso; é um lucro que se desdobra no crescimento da emprêsa, e somente assim justifica-se no ethos protestante.
Essa ética de fundo religioso, que Max Weber descobre nas diferentes denominações religiosas do protestantismo, expressa, entretanto, nos tempos modernos uma concepção própria do comportamento social. Essa concepção do homem e da sociedade é que servirá de alicerce ideológico do liberalismo. O ideal liberal, tanto do homem, como da sociedade liberal, exigirá para sua realização uma forma de organização do trabalho, que será implementada pelo capitalismo. O estado liberal na sua estrutura política e, principalmente, jurídica, constituirá a estrutura do funcionamento da economia capitalista. E na sociedade liberal que a ética capitalista encontrará o sistema político e social necessário a seu pleno desenvolvimento. Observe-se que ao tratarmos do liberalismo e do capitalismo, estamos trabalhando com tipos-ideais, que na terminologia de Max Weber, representam formas abstratas de organização, construídas a partir de dados empíricos, mas que não se encontram em sua forma pura na realidade histórica.
A questão a ser aprofundada refere-se à determinação das características dessa ética, fundadora do liberalismo e do capitalismo e como ela se insere na tradição da cultura ocidental. Os gregos, os primeiros sistematizadores do conhecimento dos valores éticos, entendiam por "ethos" o conjunto de condutas morais reguladoras das relações entre indivíduos na sociedade. Para os gregos, essas condutas morais serviam como instrumentos para garantir, através da fixação de padrões de convivência, a preservação e desenvolvimento da sociedade, com vistas a realizar a felicidade, a eudamonia. Essas normas de convivência antecederam as prescrições codificadas, manifestando-se nos primeiros momentos da cultura ocidental sob a forma de normas religiosas e costumes.
A ética, entendida como sendo a reflexão racional sobre o ethos, surge da necessidade sentida pelo homem em sistematizar por meio de categorias racionais a variada e múltipla manifestação dessas normas de convivência. A crise da cultura grega, que será caracterizada pela nítida separação entre o mundo da religião e o da razão, leva o homem a questionar-se sobre sí mesmo. A maior contribuição grega para o pensamento humano, talvez tenha sido a interrogação básica da antropologia: o que é o homem? Os gregos ao se interrogarem sobre essa questão construíram um conjunto de conhecimentos, que iria permitir no primeiro momento definir o que é o homem, e, num segundo, o que deve ser o homem. Os valores morais nascem precisamente dessa concepção teleológica da natureza humana, como sendo aquela que se volta para a realização de uma finalidade, que era a felicidade. Mas essa felicidade não se identificava com o simples prazer pessoal e hedonístico; ela supunha a utilização da razão humana como fator determinante na fixação das bases axiológicas da convivência humana. Desde que o homem vive para a realização de um fim, moralmente bom, que é a felicidade, em conseqüência a sua vivência deve pautar-se por valores, que para assegurarem sua finalidade própria devem ser necessariamente bons.
A primeira manifestação ética foi, portanto, a afirmação de valores construídos pela razão humana face às normas religiosas. A marca de nascença da ética ocidental consistiu na manifestação da autonomia do ser humano face ao cosmos e ao próprio Criador. A consciência moral tornou-se assim uma construção social, mas que expressa valores de uma entidade pessoal intransferível, capaz de distanciar-se criticamente do social. Logo, sem autonomia, como escreveu Victoria Camps , sem a consciência do sujeito moral de sua capacidade para criar ou aceitar livremente normas de conduta, não existe ética.
Esse entendimento da conduta ética veio, posteriormente, a ser complementado pela idéia de que a autonomia é um espaço do comportamento humano, que será preenchido pelo exercício da liberdade. Constatamos, portanto, que a própria noção de ética acha-se vinculada no pensamento filosófico do Ocidente ao exercício da autonomia e à liberdade. Entretanto, nem todas as correntes filosóficas pensaram assim. As críticas dos céticos e dos cínicos na Grécia Antiga é que levaram Sócrates, Platão e Aristóteles a estabelecer os alicerces sobre os quais erigiu-se o modelo ético predominante na tradição intelectual e política ocidental. Foi Aristóteles na Ética a Nicômaco, que formulou o primeiro tratado sistemático da ética, fundado na idéia de que o comportamento humano é regulado por valores, elaborados pela razão, com vistas a atender ao bem da coletividade, e, portanto, do indivíduo, considerado um animal essencialmente político.
O pensamento liberal como foi elaborado por seus primeiros formuladores acha-se dentro dessa tradição ética, iniciada pelos gregos. O Estado considerado como um dos instrumentos da realização do homem na Terra, surge no pensamento liberal vinculado à uma perspectiva moral. Essa perspectiva, entretanto, é construída em função de teses filosóficas, que se desdobram em teses políticas fundadoras da ideologia liberal. A essência filosófica dessa vertente do liberalismo - chamada por Richard Bellamy de "liberalismo ético", em contraposição ao "liberalismo econômico" - conferiu uma prioridade à liberdade individual na sociedade; afirmava o liberalismo ético que a estabilidade e progresso da sociedade dependiam da expansão crescente da liberdade individual.
Os fundamentos filosóficos do liberalismo basearam-se num complexo entendimento antropológico do ser humano. O homem liberal foi produto do Renascimento, quando, mais uma vez na história da cultura ocidental, a natureza humana foi explicada como sendo essencialmente antropocêntrica. Logo, a primeira tese filosófica do liberalismo foi o naturalismo, entendido como a expressão da opção do homem pela busca da felicidade na sua vida terrena, rompendo a subordinação a Deus. O naturalismo, entretanto, significou, por outro lado, a submissão à natureza, através da compreensão e do domínio do cosmos, deixando de ser o universo algo de misterioso e mágico. O objeto da inteligência humana no naturalismo abandona como preocupação prioritária a reflexão sôbre a natureza de Deus, e passa a considerar a descoberta e o contrôle das forças da natureza como prioridade.
O homem renascentista passou a empregar a sua inteligência para compreender o mundo e melhorar a sua condição. Trata-se de aplicar a razão na solução dos problemas humanos. Locke definiu a relação entre a razão humana e a busca da felicidade ao escrever que: "o poder é, em princípio, poder de liberdade. E essa liberdade é uma liberdade para a felicidade, uma liberdade para a felicidade através da razão." Dessa forma, o naturalismo submete-se ao contrôle da razão, que irá determinar quais as leis da natureza às quais o homem encontra-se submetido.
Ao lado do racionalismo e da idéia de lei natural, o individualismo é a terceira tese filosófica do liberalismo e que irá, no entendimento, de alguns autores constituir o núcleo central da ideologia liberal. A idéia básica do liberalismo é a de que do ponto de vista ontológico e ético o ser humano é, antes de tudo, um indivíduo. Por essa razão, a sua inserção na sociedade é relativizada, sendo o Estado considerado como um mal necessário. O individualismo vem a constituir-se, assim, numa afirmação do valor maior, que é o indivíduo, diante do Estado. Alguns autores propõem três etapas no surgimento do individualismo liberal: a) a Igreja é substituida pelo Estado como agente da disciplina social (Hobbes); b) o indivíduo afirma-se diante do Estado, proclamando seus direitos individuais e limitando o exercício do poder público (Locke e Montesquieu); c) o indivíduo passa a identificar-se com o Estado, na etapa final da evolução do individualismo, fazendo com que o bem comum identifique-se com a realização material e pessoal do indivíduo. A sistematização dessa evolução realizou-se através da doutrina do contrato social, que serviu como fundamento da teoria política do liberalismo.
A doutrina do contrato social foi construida em função da teses políticas do liberalismo: a liberdade, como pedra angular do pensamento liberal; o reconhecimento da igualdade de natureza, diferenciada da igualdade jurídica; o direito à propriedade, que consagra e assegura o produto do trabalho do homem; o Estado considerado responsável pela ordem e segurança; e, finalmente, o estado de direito, limitando o exercício do poder e definindo direitos e garantias dos indivíduos.
Essas teses políticas constituem o núcleo do pensamento liberal e serviram como alicerce ideológico e jurídico para a construção do estado liberal. Dessas teses nasceram direitos, consagrados nos textos constitucionais liberais, sendo que o direito de propriedade foi o que recebeu tratamento previlegiado. Os demais direitos encontravam no direito de propriedade um referencial. Assim, por exemplo, o direito de participação política - o direito de votar e ser votado - nos estados liberais clássicos dependia do nível de renda; a ação do Estado visava na ordem liberal o respeito pleno da propriedade. Pode-se então afirmar que o estado liberal clássico do início do século XIX não era democrático, isto é, excluia aqueles que não atendessem às exigências de propriedade, pois, argumentavam os liberais, os proprietários eram os membros da sociedade que mais interêsse tinham em preservar a ordem social.
O estado liberal organizou-se, assim, de forma excludente; pela liberdade e igualdade, sim, mas prioritáriamente dos proprietários. A sociedade liberal-burguesa organizou-se em função dessa relação entre as forças de produção econômica e o sistema político. Nascida de uma utopia política, a realização da liberdade e da igualdade entre os homens, o liberalismo, durante o século XIX, deixou-se ficar prisioneiro de uma utopia econômica - o capitalismo baseado na economia do mercado auto-regulador.
Os três fatores da produção capitalista - mão-de-obra, dinheiro e terra - na economia de mercado ficaram soltos, obedecendo aos ditames de uma racionalidade estritamente econômica. A sociedade liberal-burguesa não tinha uma economia, a economia capitalista é que tinha uma sociedade. Os valores fundamentais dessa sociedade deixaram de ser progressivamente éticos e passaram a ser econômicos. Nêsse sentido é que se pode falar de uma ética do capitalismo, que, como vimos na obra de Max Weber, originou-se da necessidade de criar um novo homem apto a controlar um novo sistema de produção.
O capitalismo surgiu em consequência de algumas circunstâncias históricas: a substituição do tipo de produção artesanal pela produção em série, resultado do progresso tecnológico; a ampliação dos mercados europeus, consequência da colonização da Asia, Africa e Américas; e os esfacelamento do sistema corporativo da Idade Média, que regulamentava o exercício das profissões e disciplinava a concorrência.
A ética do capitalismo primitivo caracterizou-se por depender das variações do mercado, que por sua vez respondia à lei da oferta e da procura. O espírito de concorrência que visava a auferição constante e crescente de lucros, com a diminuição dos preços de custo e a elevação dos preços de venda, foi o responsável por injustiças sociais, ocasionando o conjunto de males conhecido pelo nome de "questão social". Esse sistema econômico passou, entretanto, por crises periódicas, provocadas por defeitos insanáveis na própria estrutura do sistema. Centrado exclusivamente na produção de bens que se traduzam em dinheiro, o capitalismo deixou a fixação dos níveis de salário sujeiitos aos mecanismos da lei da oferta e da procura, retirando-se das relações de trabalho quaisquer considerações de ordem ética e social.
O capitalismo da sociedade burguesa ignorou, portanto, considerações de ordem ética e moral, substituidas pelo critério da eficácia, vale dizer do maior lucro, a qualquer custo social. Observa-se como os valores, identificados por Max Weber nas origens da economia moderna e que serviram como referencial moral na atuação de alguns empresários na história do capitalismo, foram sendo superados pelos valores estritamente econômicos. Essa nova ética atribuia primazia do capital sôbre o trabalho, consagrando do ponto de vista econômico o predomínio o indivíduo empreendedor sôbre a sociedade. O capitalismo em sua fase de afirmação e crescimento no século XIX constituiu a face econômica do liberalismo e do individualismo. Como escreveu o Padre Fernando Bastos de Avila, o capitalismo, o liberalismo e o individualismo são três faces, orgânicamente solidárias da mes realidade histórica.
A ocorrência de sucessivas crises no capitalismo, acarretando prejuizos incalculáveis aos próprios capitalistas, ao lado do agravamento da questão social, provocado pelas chamadas disfuncionalidades do sistema capitalista, levou, ainda nas últimas décadas do século XIX, a uma reformulação ideológica do credo liberal-capitalista. Essa reavaliação partiu de uma crítica às três faces da sociedade liberal-burguesa: ao individualismo, a sua filosofia; ao liberalismo, a sua ideologia política e ao capitalismo, o seu sistema econômico.
A crítica a êsses três aspectos vieram, principalmente, do movimento socialista, da Igreja e de setores do próprio pensamento liberal. O fundo moral que perpassou tôda a crítica socialista ao capitalismo do século XIX não assegurou, no entanto, que o tema da moralidade recebesse um tratamento previlegiado no pensamento socialista. A influência preponderante do marxismo fêz com que fôsse enfatizada a crítica à face econômica da sociedade liberal. Criticou-se básicamente o sistema econômico, considerado como hegemônico e, portanto, determinante na vida social. O marxismo que acabou preponderando entre as diferentes correntes socialistas, ainda que tivesse móveis morais, relegou para um segundo plano a análise mais circunstanciada das causas éticas da crise do capitalismo.
O Papa Leão XIII na encíclica Rerum Novarum mostrou que a injustiça social reduzia à condição de semi-escravidão grandes massas da sociedade liberal-burguesa. A encíclica argumentava que a causa principal dessa situação crônica de injustiça tinha sido a destruição das corporações medievais, que deixara as classes mais pobres da sociedade à mercê da ganância e da concorrência do sistema de mercado. Quarenta anos depois da publicação da encíclica de Leão XIII, em 1931,
o Papa Pio XI irá posicionar-se em relação ao regime capitalista, relacionando-o com uma concepção do homem, o "espírito individualista". O capitalismo aparece, então, como uma forma de organização da sociedade, que reflete uma concepção própria do ser humano. Na verdade, os papas da Igreja Católica, nesse século, aprofundaram a crítica ao capitalismo e às suas características individualistas e tendentes a retirar do homem a sua dimensão moral. Com João Paulo II, na encíclica Laborem Exercens, a condenação do capitalismo tornou-se explícita, quando repudia tanto o capitalismo liberal como o comunismo marxista, pelo seu economicismo, seu materialismo, seu ateísmo prático no primeiro e teórico no segundo.
O sistema capitalista na sua forma primitiva foi, entretanto, sob o impacto de forças externas, como o movimento socialista e a crítica crescente da Igreja Católica, modificando-se. Essas mudanças também foram sendo elaboradas dentro do próprio pensamento liberal, baseadas na recuperação dos princípios morais justificadores da ordem liberal, e na avaliação do nível de negação, encontrado na prática da economia capitalista liberal-individualista, dos próprios valores fundantes do liberalismo. Por essa razão, o capitalismo da atualidade perdeu os aspectos mais selvagens do reino da concorrência e do lucro a todo o custo, e apresenta-se, modernamente, sob a denominação abrangente de neocapitalismo.
Os impasses e contradições da sociedade liberal trouxeram à tona as duas teses políticas que a sociedade liberal-burguesa do século XIX procurou encobrir: a tese da liberdade e da igualdade dos homens, sacrificadas em favor do direito de propriedade. A ideologia liberal clássica teve um entendimento peculiar dêsses direitos ao restringí-los e subordinando-os ao mecanismo de uma economia de mercado auto-regulador. Subordinados à uma utopia política - a "mão invisível" de Adam Smith - esses direitos e liberdades perderam o seu significado moral e transformador da sociedade.
Dos dois direitos, o da liberdade permaneceu cultuado pelo pensamento liberal, ainda que referido, preferencialemente, ao exercício da propriedade. O direito à igualdade, por sua vez, sempre foi uma questão mal resolvida pelos pensadores clássicos liberais. O exercício pleno da liberdade e da racionalidade, entendida pelos liberais como sendo aquela que se expressa no sistema econômico, são os propulsores do contínuo progresso do homem na perspectiva do liberalismo clássico. A exclusão de setores significativos da sociedade na participação e na fruição dos benefícios da sociedade, e a crescente demanda de um maior número de consumidores, resultante do próprio progresso do sistema de produção, levantaram questões morais e políticas, que abalaram a estrutura da sociedade liberal-burguesa.
A dimensão da igualdade ressurgiu no liberalismo como uma resposta moral à crise política e econômica do sistema. A democratização do estado liberal caracterizou-se como sendo o processo através do qual foram incorporados políticamente os segmentos não-proprietários, excluidos no estado liberal clássico; o Estado passou a ter uma atuação mais intervencionista, respondendo às demandas dos novos segmentos, básicamente os assalariados, que passaram a ter seus representantes nos orgãos legislativos. A tese da igualdade que foi elaborada na obra de pensadores liberais como T.H.Green, L.T. Hobhouse e John Stuart Mill, constituiu-se, desde então, em tese política essencial do estado liberal-democrático. O Estado liberal ao incorporar a dimensão igualitária, transformou-se em estado liberal-democrático, nascido da crítica moral ao estado liberal clássico.
Nesse contexto é que se pode estabelecer os vínculos éticos entre o liberalismo-democrático e o neocapitalismo. Ambos diferenciam-se de suas formas originais, onde no primeiro excluia-se a maioria da população da participação política e social, consagrando-se, assim, uma desigualdade jurídica e de fato. O segundo origináriamente estabeleceu um sistema econômico excludente e baseado na exploração brutal do homem pelo homem. Tanto do ponto de vista político, quanto do econômico, negavam a igualdade das pessoas, valor moral fundante da sociedade. As mudanças ocorridas, durante o final do século passado e o século atual, no liberalismo e no capitalismo somente podem ser compreendidas sob o ângulo das exigências éticas dos sistemas políticos e econômicos contemporâneos. Essas modificações resultaram de uma avaliação crítica e moral das crises do capitalismo. A sociedade plural e complexa de nossos dias convive com conflitos, resultantes de concepções éticas divergentes, sôbre a melhor forma de organização social e econômica. As respostas para êsses impasses variam em função das diferentes correntes do pensamento político. Na tradição do pensamento liberal esses conflitos podem ser solucionados tendo em vista o papel dos valores éticos. Oscilando entre o moralismo político extremado e o relativismo, que termina rejeitando tôdas as formas de organização política, o pensamento liberal trouxe para o centro da debate a questão moral.
Desse ponto de vista, ou seja, da função dos valores morais na sociedade, pode-se distinguir duas correntes de pensamento principais: o liberalismo ético e o liberalismo realista. Os primeiros, sustentam que a sociedade tem um modelo consensual, defendendo a tese de que a estabilidade social depende de um conjunto de normas e valores universais e que são compartilhados ou são intrínsecos às sociedades modernas. O liberalismo realista, por sua vez, contestam a suposição liberal ética da convergência de opiniões e a possibilidade do estabelecimento de um consenso racional entre os membros da sociedade.
Autores ilustres participam de uma ou outra corrente do pensamento liberal. Entre os liberais éticos acha-se Durkheim, o primeiro dos pensadores dessa linhagem liberal, que considerava o progresso social como o fator produtor da convergência crescente para o estabelecimento de princípios gerais do comportamento social. Alguns filósofos contemporâneos, como é o caso de John Rawls, modificaram essa posição, sugerindo que existe uma moralidade mínima exigida para qualquer forma de cooperação social no mundo contemporâneo. Os liberais realistas, como Max Weber, contestam o entendimento do liberalismo ético, argumentando que não pode haver uma convergência ideal de valores na sociedade. Examinando o modo de operar de um sistema político, os liberais realistas procuram mostrar que o contrôle político traz consigo a coerção a ser empregada por grupos dirigentes, não existindo, portanto, valores universais fundadores da ordem social, mas exclusivamente procedimentos de distribuição de poder e de riqueza.
Enquanto o liberalismo ético procura disciplinar o funcionamento do sistema político e econômico através de um mínimo moral, o liberalismo realista pretende evitar o risco da política moralista separando a política da ética. Sustentam, assim, que no mundo moderno a função peculiar do sistema político é o de coordenar opiniões e interesses conflitantes. O ideal da busca de um bem comum a ser construido pelo entendimento racional dos indivíduos é considerado pelos realistas como sendo uma quimera.
Ainda que a crítica realista ao liberalismo ético contribua com uma análise importante da natureza das instituições políticas na sociedade de massas, ela afasta o tema da ética, relegando-o a plano secundário. A defesa do liberalismo ético tem a ver precisamente com a necessidade de recuperação da discussão ética a respeito dos procedimentos que levem a uma conciliação de ideais, crenças, valores e interêsses, como pretende o liberalismo realista. Os valores éticos não são transmissíveis automáticamente para as leis e políticas públicas, mas necessitam de elos institucionais. Os direitos e liberdades, que irão assegurar a materialização dos valores éticos, serão estabelecidos através do sistema político. O sistema político será, assim, o elo transmissor de valores universais para realidades políticas, sociais e econômicas específicas.
Somente com a utilização das teses políticas da liberdade e da igualdade, definidas na tradição liberal, é que se pode articular a integração - e não a identificação - dos valores éticos com o sistema político e econômico. A premissa liberal é a de que o homem é um ser ontológicamente livre, isto é autonômo e auto-suficiente. A liberdade é, portanto, o pressuposto da participação da participação na determinação da vontade da comunidade, devendo, entretanto, para ser completa estar ligada à igualdade. A contribuição mais signficativa dos liberais do final do século XIX foi o estabelecimento dessa relação necessária: não pode haver liberdade sem igualdade, como não pode haver igualdade sem liberdade. A finalidade última da sociedade será, então, estabelecida pelos membros da comunidade, em função do exercício de opções de valor. E para isto a exigência moral básica é a de que os agentes sociais sejam livres e iguais.
As transformações do sistema político liberal foram acompanhadas de mudanças no sistema econômico, que nos remetem, também, ao debate ético. O principal formulador da aplicação do modêlo do mercado, para além dos limites da economia, foi o economista e sociólogo italiano Vilfredo Pareto. Sustentava Pareto que o mercado livre faz com que o mecanismo de preço reflita o valor que os indivíduos atribuem às mercadorias. Esse modelo ideal de competição do mercado foi aplicado de forma mais abrangente, por diversos cientistas sociais, à toda extensão das questões sociais e políticas. O modelo do mercado, retirado de sua função específica de instrumento do sistema capitalismo, foi empregado por setores representativos da ciência social contemporânea para explicar os conflitos de interesses e valores em toda a sociedade. O valor principal do capitalismo, o da concorrência, passou a ser utilizado como instrumento de explicação última das relações sociais e políticas. Embutido nessa aplicação forçada, encontra-se, também, um valor ético, que justifica e explica as relações sociais, não em função de valores e crenças, mas de uma fé racionalista na excelência do funcionamento do mercado livre.
Retirou-se, assim, do âmbito da decisão de agentes sociais livres, autonomos e iguais entre sí, a tarefa de fixação dos limites e dos objetivos últimos da sociedade. Transferiu-se para um modêlo de mecanismo econômico - o mercado livre - a disciplina final de relações, que envolvem necessáriamente valores éticos. A "economização" da vida social representou, no fundo, a derradeira influência da mentalidade do capitalismo primitivo no sistema político e social. Processa-se, em última análise, um conflito entre concepções éticas calcadas no individualismo e aquelas vocacionadas para a realização de uma ordem política, jurídica e econômica solidária e justa.
O final do século XX presencia o renascimento do debate público sôbre a natureza da sociedade política e o papel reservado aos valores éticos na construção de uma ordem mais livre e mais justa. Identifica-se na maioria das sociedades a vigilância crescente face ao exercício do poder e a distribuição da riqueza, que não são mais considerados como dádivas divinas ou consequência do carisma de indivíduos, mas sim mecanismos que pertencem à sociedade como um todo. A democratização do sistema político, ao lado da democratização do sistema econômico, têm um denominador comum: a vinculação a valores morais, destinados a disciplinar o exercício da liberdade e da igualdades entre os homens.
Essas reflexões quando aplicadas ao capitalismo e ao Estado no Brasil, podem servir de instrumentos valiosos de análise. Situadas historicamente elas perdem em nitidez, em razão, precisamente, das características da formação do Estado e da cultura cívica brasileira. O forte centralismo, herdado do sistema colonial, persistiu durante o período do Brasil Monárquico e expandiu-se na medida em que crescia o Estado e sua participação na vida nacional. Essa expansão do estado deu-se num processo onde o espaço público e o privado não tiveram sua linhas de separação muito definidas. Pôr essa razão, acabou pôr preponderar uma frágil concepção do papel dos valores éticos na sociedade brasileira.
O estado democrático de direito e o modelo econômico, que se delineia para a economia do Terceiro Milênio, pressupõe para a sua implementação uma reavaliação, precisamente, do papel dos valores morais no funcionamento da sociedade. A tradição política e jurídica brasileira marcadas pelo cientificismo e o positivismo político e jurídico, ainda do século XIX, reage aos ventos da modernidade precisamente por não poder lidar com idéias, que floresceram sob a égide do processo de democratização política e liberalização econômica das últimas décadas do nosso século. Os sinais dos novos tempos aparecem na sociedade civil, que b se conforma com as bases patrimonialistas do estado nacional, e que tem realizado contra esse modelo diversas formas de protesto.
Persistem, entretanto, no sistema de produção econômica e no corpo do Estado distorções oriundas das primeiras manifestações do liberalismo e do capitalismo. No Estado o processo de democratização e moralização da atividade pública tem apresentado significativos progressos, ainda que subsista entranhado na burocracia estatal uma concepção patrimonialista do exercício do poder público. Na economia a sobrevivência de formas de individualismo possessivo, que distorcem a verdadeira natureza do sistema liberal-democrático, ou como querem alguns social-democrático, transmitindo a falsa imagem de um sistema falido e injusto. Pode-se, talvez, afirmar que subsistem dois modêlos morais no capitalismo contemporâneo: um antigo, identificado com os valores da sociedade liberal-burguesa e o moderno, que deita suas raízes no compromisso moral, necessário para a construção de uma ordem social-democrática.

Enviado: 18 Fev 2006, 16:01
por Liquid Snake
ORDEM ESPONTÂNEA
VERSUS
CONSTRUTIVISMO RACIONALISTA


"Como o liberalismo social (social-democracia) certamente não pode desejar parar, nem mesmo reduzir a formação de capital - e muito menos, provocar a depreciação do capital -, fatalmente terá de escolher entre capitalismo e socialismo. Tertium non datur (não há terceira opção)". (Ludwig von Mises)*


Os Dois Casos Polares de Organização Social, Política e Econômica

"Para compreender o funcionamento da sociedade, devemos tentar definir a natureza geral e o grau de nossa ignorância neste campo"(1). A partir desta frase de Hayek, que ratifica a postura cética quanto à plenitude do conhecimento humano que, conforme vimos no capítulo anterior, caracteriza o pensamento liberal, podemos iniciar a discussão sobre as duas formas antitéticas de organização social. Em muitos de seus trabalhos, o grande pensador austríaco criticou severamente a crença bastante generalizada, porém equivocada, no construtivismo, isto é, em que as instituições sociais e a própria civilização, uma vez que foram criadas pelo homem, podem por ele ser alteradas ao seu arbítrio, de modo a satisfazer seus desejos, suas vontades e suas aspirações.(2)

À primeira vista, a crença construtivista parece correta: quantos milhões de pessoas não nasceram, viveram e morreram acreditando piamente na idéia de que o objetivo de se construir uma sociedade melhor pode ser alcançado mediante um planejamento que substitua as normas, instituições e valores existentes por outros previamente calculados? De fato, se as instituições, normas e valores foram criados pelo homem, por que não poderiam ser alterados - para melhor - por ele? No entanto, essa opinião, na medida em que se apoia em um grande equívoco quanto às causas verdadeiras da vida em sociedade e das instituições, não tem fundamento e equivale a defender a construção de castelos de areia.

O ponto central para a compreensão do enfoque hayekiano e a idéia de que a transformação, ao longo dos séculos, das sociedades tribais primitivas nas sociedades complexas modernas, foi um processo que se verificou de forma espontânea, isto é, que, embora tenha resultado da ação humana, não foi produzido pela vontade humana, expressamente concebida. Em outras palavras, as sociedades não foram planejadas pelo homem; foram, simplesmente, evoluindo, evolvendo ao longo do tempo, desde as primeiras tribos até as formas mais modernas de vida social. Não foram, portanto, fruto exclusivo da razão, mas foram e são o resultado de um processo de mutações permanentes, de um processo evolutivo, que se pode dizer à la Darwin, mas cuja idéia em teoria social é anterior à do evolucionismo biológico de Darwin.

O conceito de evolução social é de importância fundamental para que se compreenda a idéia de ordem espontânea. Hayek(3) aponta duas fontes de confusão a respeito do evolucionismo. A primeira é que não é correto que o evolucionismo em ciências sociais seja uma extensão do evolucionismo biológico darwiniamo; na verdade, o que ocorreu foi o oposto: Charles Darwin foi quem aplicou à biologia o conceito de evolução, anteriormente usado no estudo das sociedades humanas e suas instituições, pelos filósofos-morais do século XVIII, especialmente os que estudaram as leis e a linguagem sob o ponto de vista histórico, que foram, a rigor, darwinianos antes de Darwin.

Essa precedência do evolucionismo social sobre o biológico não tem qualquer conotação com o chamado "darwinismo social", que foi uma tentativa fracassada, ocorrida já no século XIX, no sentido oposto, isto é, de levar o evolucionismo biológico para as ciências sociais. Seu fracasso deveu-se a terem seus teóricos desprezado o fato de que existem diferenças entre os processos de seleção que ocorrem na transmissão cultural e que levam à formação e mutação das instituições sociais e os processos de seleção que se realizam pelas transformações das características biológicas e que se transmitem hereditariamente. Ao ignorar essas diferenças, o "darwinismo social" enfatizou processos de seleção de caráter biológico para tentar explicar a evolução social, o que, evidentemente, resultou em fracasso.

A segunda fonte de confusão que envolve o evolucionismo, principalmente a teoria da evolução social, é a crença errada de que esta teoria consiste de "leis de evolução". Na verdade, não se pode falar em leis, no sentido que usualmente se entende, isto é, da seqüências ou fases definidas, pelas quais deveriam passar os processos de evolução das instituições sociais, que permitiriam, caso fossem identificadas, estabelecer modelos de previsão das trajetórias futuras dos fenômenos sociais. É importante que o leitor reflita sobre o fato de que é essa crença - que erra ao identificar a seleção biológica com as mutações sociais espontâneas (fruto da ação do homem, mas não de sua vontade) - que fundamenta as concepções historicistas, bem como a abordagem holística de Comte, Hegel e Marx, cujo resultado é o chamado determinismo histórico, que nada mais é do que a atitude mística de se acreditar que a evolução das sociedades deve seguir um curso pré-determinado.

Devemos entender a evolução social como um processo de tentativas e erros dos milhões de seres humanos que compõem a sociedade, a imensa maioria dos quais não se conhecem uns aos outros, mas que, mediante uma série de ações, voluntárias mas não planejadas, de aproximações graduais e sucessivas, evolui ao longo do tempo, em um ambiente necessariamente marcado por um conhecimento humano que, além de escasso, encontra-se fragmentado e disperso, o que faz necessariamente com que toda a ação humana seja efetuada sob condições dinâmicas (o tempo não espera por nossas decisões) e de incerteza.

A insuficiência e a dispersão do conhecimento humano entre milhões de pessoas e a busca - que faz parte da própria condição humana - por parte de cada indivíduo, de seus interesses particulares, em regime de liberdade (negativa) é que desencadeiam um processo espontâneo, que vai se desenrolando ao longo do tempo, de maneira essencialmente imprevisível, subordinado a regras e normas gerais. Portanto, a atitude de acreditar, com base no conceito fatal de que o homem - ou os que detêm o poder - possui conhecimentos plenos e que, portanto, pode comandar o processo evolutivo, interferindo em sua espontaneidade em nome de um alegado determinismo histórico - o que leva sempre à supressão da liberdade de escolha - apesar de não deixar de ser um exercício intelectual interessante, constitui-se no maior mal do século XX.

Dentro desse pano de fundo é que devemos examinar os dois casos polares de organização social, política e econômica. no primeiro polo, temos as sociedades de homens livres, que se organizam de acordo com uma ordem geral espontânea; no segundo, as sociedades totalitárias, organizadas deliberadamente, com base no racionalismo construtivista. É, mais uma vez, Hayek quem contribui para estabelecer de maneira clara as diferenças entre essas duas formas de organização social, encaixando cada uma delas em um aparato característico de regras de conduta(4)

Abastecendo-se na cultura clássica da Grécia antiga, Hayek denomina as duas formas de organização social de Cosmos e Taxis e as duas espécies de normas de conduta de Nomos e Thesis. A distinção entre as duas últimas já foi vista no capítulo anterior: Nomos refere-se a regras que regulam a conduta dos indivíduos, aplicáveis a um número desconhecido de situações futuras, que consistem em decorrência dos direitos individuais e às quais todos os indivíduos, indistintamente, devem subordinar-se. É, em poucas palavras, a lei garantidora da liberdade, a autoridade da lei, que deve ser descoberta, no sentido de que sua fonte básica são os usos, costumes e tradições. Já Thesis refere-se às regras derivadas do conceito positivo de lei, ou seja, a comandos, aplicáveis de modo desigual sobre as pessoas e nem sempre de modo prospectivo. Se Nomos significa a lei da liberdade, Thesis refere-se à legislação, que não tendo nascido para regular usos e costumes já consagrados, não pode ser descoberta, mas sim inventada ou criada, geralmente para servir a propósitos deliberados, para atender a grupos específicos. Essas regras não se impõem por sua autoridade intrínseca (pois não são justas), mas por sua coercitividade extrínseca: não sendo a autoridade da lei, são a lei da autoridade.

No que se refere às duas formas de organização social, Cosmos é aquela ordem espontânea, que é fruto de ação, mas não de desígnio deliberado do homem e que resulta de um permanente processo de seleção, de natureza evolutiva, como o que analisamos anteriormente. Por outro lado, Taxis são as organizações produzidas pela ação e concebidas pelo planejamento do homem, produto artificial do racionalismo construtivista.

Estamos agora preparados para reconhecer os dois casos polares de organização social, política e econômica. O primeiro, denominado de sociedades livres, ou sociedades de homens livres, tem o indivíduo como sujeito da liberdade e caracteriza-se pela combinação de Cosmos com Nomos. Daí resulta uma ordem liberal, caracterizada, entre outros atributos, pela economia de mercado, pela abertura, pelo sistema democrático representativo, pela espontaneidade, pelo respeito aos direitos individuais, sob o amparo do Estado de direito, definido como a autoridade da lei (Nomos). A ocorrência simultânea de Cosmos e Nomos - que denominamos de Ordem do Progresso - é, em última instância, o que se deve esperar das instituições, se o que se tem em vista é de fato o crescimento auto-sustentado; ambas harmonizam-se naturalmente e complementam-se espontaneamente, liberando assim as energias necessárias para que as forças geradoras do crescimento econômico entrem em permanente operação.

O segundo caso extremo de organização social, política e econômica resulta da combinação de Taxis e Thesis. São as sociedades totalitárias, semelhantes às dos insetos gregários, como as formigas, abelhas e cupins. Conforme observou o Prof. Og Leme, "...se é figura abstrata da sociedade ou do Estado que é livre, e não os cidadãos ou membros individuais, tudo se passa como se estes se subordinassem a um comportamento altruísta, imposto pelas autoridades ou por uma programação genética. Todos por um (o Estado) e um por todos (novamente o Estado ou a colméia). No caso dos insetos gregários, o altruísmo é "natural", trata-se de algo transmitido biologicamente. A fatalidade do altruísmo é parte da natureza dos cupins, das formigas e das abelhas"(5) (grifo e aspas do autor). Mas, evidentemente, impor pela força o altruísmo é violar a condição humana naquilo que ela tem de mais representativo - e, podemos dizer, de sagrado - o livre arbítrio, a busca de si mesmo, a liberdade de escolha pessoal. A combinação dos paradigmas Taxis e Thesis produz o totalitarismo: a substituição da lei pela legislação agride o Estado de direito; a democracia, enquanto simples forma de governo, pelo "democratismo", que a vê como um fim, atinge os direitos das minorias e concentra o poder; a da economia de mercado pela economia controlada pelo Estado, imobiliza o sistema de preços e desestimula a geração de riqueza; a do indivíduo pelo Estado, enquanto sujeito da liberdade, agride a condição humana, pois, ao pretender impor o "altruísmo" (busca desenfreada pela igualdade de resultados) pela força, nada mais faz do que forçar seres humanos a se comportarem como insetos. É o caminho mais seguro para a estagnação econômica, para a opressão e para a infelicidade individual (e, paradoxalmente, a coletiva).

Uma vez estabelecidos os traços distintivos das duas formas polares de organização, resta-nos mostrar ao leitor que não existe - a não ser apenas durante algum tempo - possibilidade de uma terceira via, que combine Cosmos com Thesis, ou Taxis com Nomos.

"Tertium non Datur" (ou a Contraditoriedade dos Muros)

O resultado da aplicação dos comandos do tipo Thesis ao conceito de Cosmos resultaria, em termos objetivos, na tentativa de se implantar uma ordem espontânea, caracterizada principalmente por uma economia de livre mercado, mas que fosse regida por comandos ou instruções. O resultado seria semelhante ao que alguns chamam de "economia de mercado socialmente controlada" e, outros, de "liberalismo social". Tal sistema, como é fácil perceber, apresenta um claro conflito interno, que o condena de antemão ao fracasso, uma vez que o funcionamento de uma economia de mercado tem como característica marcante a atividade empresarial - "entrepreneurship" - que se caracteriza essencialmente, já que ela se efetiva em um ambiente marcado pela insuficiência e pela dispersão de conhecimentos e pela passagem do tempo, pelo que Israel Kirzner chamou de descoberta(6). Em um processo de mercado, que deve caracterizar uma economia livre e competitiva, a ética dos lucros empresariais é justificada pelo êxito de cada empresário, que, necessariamente, deve assumir todos os riscos inerentes ao processo de descoberta de oportunidades inexploradas: aquele que tiver êxito nesse processo satisfará melhor os desejos dos consumidores e receberá destes um prêmio, que se refletirá em lucros; aquele que falhar em atender à demanda dos consumidores, será punido com prejuízos.

O conflito se dá na medida em que o processo de mercado que caracteriza uma economia livre e competitiva deve necessariamente ser suportado por um aparato jurídico-institucional baseado em normas de conduta do tipo Nomos, isto é, em regras de justo comportamento que sejam gerais, impessoais e prospectivas, cujo objetivo maior seja a garantia dos direitos individuais, entre os quais o direito de cada "entrepreneur" (empresário "descobridor") de participar competitivamente, em igualdade de condições com os demais, do processo de descoberta. Como o paradigma Thesis expressa comandos e ordens dirigidas, pessoais, desiguais e inibidoras, por definição, da competição que deve caracterizar a economia de mercado, estabelece-se o conflito. Mais cedo ou mais tarde, se houver insistência na manutenção da ordem geral Thesis-Cosmos, o que se verificará será sua destruição, com a substituição de Cosmos por Taxis: com efeito, as normas jurídicas centralizadoras envenenarão a competição, interferirão no processo de mercado e comprometerão a liberdade econômica. Assim, um sistema Thesis-Cosmos convergirá, ao longo do tempo, para um sistema Thesis-Taxis, isto é, para o intervencionismo econômico pleno. Conforme demonstrou Hayek(7), ao interferir-se, mediante a aplicação de comandos específicos, em uma economia de mercado, cria-se desordem e agride-se a justiça. O resultado é que a economia de mercado deixa de ter os atributos que se exigem de uma economia de mercado. Os consumidores deixam de dirigir o processo de alocação de recursos.

Por outro lado, a tentativa de aplicar às normas do tipo Nomos o paradigma Taxis resultaria objetivamente na implantação de uma "economia socialmente controlada", mas que fosse regida por normas de justa conduta. Ou, em outras palavras, na tentativa de se impor a coexistência do liberalismo político com o anti-liberalismo econômico, o que corresponde, em suas linhas gerais, às propostas da denominada "social-democracia".

Tal sistema intermediário também é internamente contraditório, uma vez que o intervencionismo econômico que o caracteriza não tem condições de ser sustentado permanentemente por regras de justa conduta, o que levará paulatinamente à supressão destas por comandos centrais. Em outras palavras, um sistema "social-democrático" do tipo Nomos-Taxis converge necessariamente para um sistema Thesis-Taxis, isto é, converge também para a supressão da liberdade política.

Para Mises, três razões explicam essa convergência:

"Primeira: as medidas restritivas sempre diminuem a produção e a quantidade de bens disponíveis para consumo. Quaisquer que sejam os argumentos apresentados em favor de determinadas restrições ou proibições, tais medidas em si não podem jamais constituir um sistema social de produção.

Segunda: todas as variedades de interferência nos fenômenos de mercado não só deixam de alcançar os objetivos desejados como também provocam um estado de coisas que o próprio autor da intervenção, do ponto de vista do seu próprio julgamento de valor, considera pior do que pretendia alterar. Se, para corrigir os indesejados efeitos de uma intervenção, recorre-se a intervenções cada vez maiores, acaba-se destruindo a economia de mercado, substituindo-a pelo socialismo.

Terceira: o intervencionismo pretende confiscar o que uma parte da população tem de "excelente" e distribuí-lo a uma outra parte. Uma vez que esse excedente já tenha sido confiscado, torna-se impossível prosseguir com essa política"(8)

Existe, como o leitor pode perceber, uma inconsistência lógica fatal nos dois sistemas híbridos que acabamos de comentar. Tal deficiência, contudo, pode ser entendida de modo claro a partir da famosa demonstração, estabelecida por Mises em 1922(9), de que , no regime socialista de produção, é impossível realizar-se o cálculo econômico. As linhas gerais da demonstração são as seguintes: se a liberdade econômica (propriedade privada) é condição necessária para a existência da economia de mercado, se a economia de mercado é condição necessária para a formação de preços, se a formação de preços é condição necessária para o cálculo econômico, então, se não existe liberdade econômica, não pode realizar o cálculo econômico, isto é, não permite que se averigue, entre os múltiplos métodos de produção colocados para opção, o que apresenta menores custos. Isto inviabiliza o sistema socialista enquanto sistema econômico, porque nesse sistema não há como existir preços, o que há são pseudo-preços, que nada mais são do que números estabelecidos pelas autoridades planejadoras, sem qualquer significado econômico. Em outras palavras, como não existem preços econômicos, apenas e necessariamente "preços" políticos, o socialismo é um sistema que se guia às cegas.

E que dizer sob o ponto de vista da lógica, da possibilidade de existência de um terceiro sistema, híbrido entre o liberalismo e o socialismo, dos tipos Thesis-Cosmos e Nomos-Taxis, como o social-liberalismo e a social democracia? Esquecendo a enorme impropriedade semântica dessas duas últimas expressões, que ganharam tanta popularidade, e atendo-nos apenas às exigência da lógica, a resposta é que a possibilidade de um terceiro caminho não existe, porque os problemas de organização econômica da sociedade não se apresentam em termos contrários, mas em termos contraditórios, conforme observou Zanotti(10)

Termos contrários admitem um termo intermediário: entre frio e quente, existe "morno"; entre fechado e aberto existe "semi-aberto"; entre branco e preto, existe "cinza", etc. Mas o princípio lógico da exclusão dos terceiros mostra que, quando os termos são contraditórios, não existe uma terceira possibilidade intermediária entre eles: por exemplo, entre chover e não chover, entre frio e não frio, entre economia de mercado e economia controlada. A formulação metafísica desse princípio é que a única possibilidade intermediária entre ser e não ser, entre dois termos contraditórios, é ser e não ser a um só tempo, o que viola o princípio de não contradição. Logo, não existe uma terceira opção entre economia de mercado e "economia não de mercado". Como os sistemas intervencionistas diferem do socialismo em grau, mas não em essência, ou seja, o que diferencia ambos são graus diferentes de controle estatal sobre a economia, a disjuntiva, portanto, é: se o Estado controla a economia ou não a controla, se os consumidores dirigem o uso dos recursos ou não dirigem, se, enfim, existe economia de mercado ou não existe. Como escreveu enfaticamente Zanotti, "buscar terceiros sistemas é atentar contra a lógica".

Não se trata, como vimos, de ser liberal ou não ser liberal, mas de que o liberalismo sem adjetivos - Nomos-Cosmos - é um dos dois sistemas de organização social, política e econômica que apresenta consistência e é logicamente correto. O outro é o totalitarismo - Thesis-Taxis - que, mesmo sendo coerente internamente, é um sistema que se guia às cegas, por não conter um sistema de preços. Trata-se, portanto, de escolher entre viver de um dos lados do muro, sabendo-se que em um dos lados existem a liberdade e as condições propícias à geração de riqueza, sob o comando de normas justas, enquanto que, do outro, estaremos condenados, cedo (Thesis-Taxis) ou tarde ( na medida em que tanto Thesis-Cosmos como Nomos-Thesis convergem para Thesis-Taxis), a viver mecanicamente, como formigas, abelhas e cupins, talvez iguais na pobreza, mas certamente iguais na infelicidade. Contrariamente ao que os pretensos "teólogos" da "libertação" apregoam, e de acordo como o que escreveu São Paulo aos coríntios, embora a felicidade, por si só, não garanta a felicidade, a primeira é uma condição necessária para que a segunda se realize plenamente: "Ubi autem Spiritus Domini, ibi libertas" (onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade)(11). Liberdade responsável, liberdade de, liberdade negativa, liberdade individual. E não "liberdade" (positiva), imposta por comandos, sinônimo de "altruísmo" imposto pela polícia, ou de "caridade" garantida por canhões... ou por "el parédon".

O Estado: Servo ou Senhor

Desde que o homem descobriu a possibilidade de viver em sociedade, ele percebeu que se via necessariamente diante de um dilema: usando a metáfora de Homero, ele deveria oscilar entre o "Scyllas" do isolamento, proporcionador de liberdade total, porém incompatível com a divisão do trabalho e, portanto, limitador do progresso, e o "Caribdes" da vida em grupo, limitador da liberdade, mas gerador de incontestáveis benefícios que deveriam, contudo, variar de acordo com o êxito, a capacidade, a boa sorte ou o poder obtidos por cada indivíduo. A fórmula encontrada para conciliar o dilema foi a criação de um acordo comunitário, que implicasse a cessão de parte da liberdade total, em troca de garantias aos direitos individuais básicos, para que os mais fortes, inteligentes, capazes e perspicazes não dominassem os mais fracos, néscios, incapazes e broncos, o que resultaria na concentração do poder nas mãos de poucos.

Assim, a criação do referido acordo comunitário proporcionou o nascimento de uma entidade que se colocasse acima de todos, dos fracos e dos fortes, dos tolos e dos inteligentes, dos preguiçosos e dos diligentes e que viesse a exercer a função de zelar, imparcialmente, pelos interesses da sociedade. Esta é, em linhas gerais, a origem do Estado e de seu braço executivo, o governo, com a finalidade de evitar que alguém, ou que algum grupo, transforme-se em opressor dos demais, a sociedade aceita a existência de um ente superior, neutro, eqüidistante e preocupado em zelar pelos interesses de todos, pelo bem comum dos cidadãos.

Entretanto, o crescimento exagerado que o Estado, experimentou, especialmente a partir do século XX, fez com que ele, que nascera para prevenir um mal - o da concentração de poder nas mãos de poucos indivíduos - acabasse produzindo outro mal - o da concentração de poder, não mais apenas político, mas econômico e cultural, em suas próprias mãos.

É a partir dessas considerações que devemos entender a visão de Estado da Escola Austríaca de economia que, embora tenha diversos pontos em comum com o liberalismo clássico do século XIX, procura enfatizar a natureza do Estado e suas relações com o indivíduo. Tal postura reflete, sem dúvida, a preferência metodológica que os economistas da Escola Austríaca têm pelos mercados livres como sistemas de alocação de recursos, bem como sua convicção na superioridade moral do individualismo sobre o coletivismo.

Mises e Hayek manifestaram visões bastante semelhantes a respeito da questão, embora Hayek tenha sido um tanto mais condescendente, na medida em que, mais do que Mises, admitida a idéia de que, sob condições de desespero, o Estado poderia, excepcional e temporariamente, estabelecer políticas de rendas. Ambos aceitavam a tese de que o Estado deve ser forte e que, para isso, a extensão de seus poderes deve ser severamente limitada, uma vez que o conceito de Estado não pode ser separado da defesa liberal da liberdade individual responsável como um bem supremo, o que conduz à defesa do papel que a lei deve desempenhar para garantir a liberdade.

A essência da visão hayekiana do Estado é que ele deve ser contido, tanto quanto for possível, limitando-se à manutenção das instituições (como o judiciário, por exemplo) e as regras que regem sua administração devem ser estabelecidas como normas gerais de justa conduta (Nomos, como vimos). Quando a legislação (Thesis) adquire dominância sobre a lei, os cidadãos, tornando-se servos do Estado, ingressam no que ele chamou de "caminho da servidão"(12).

Murray Rothbard, seguidor de Mises, adota uma posição mais libertária, rejeitando inteiramente os conceitos aristotélicos e platônicos do Estado como a personificação dos esforços morais mais elevados. Seu argumento parte da proposição de que o homem é um ser social e que, portanto, o Estado é aquela instituição "natural", através da qual o homem torna-se capaz de completar sua verdadeira natureza. Como ele frisa em "Power and Market"(13), isto não é uma defesa do Estado, uma vez que Estado e "sociedade" são co-extensivos: o ponto de vista dos libertários é que o Estado representa, na realidade, um instrumento anti-social.

Podemos resumir em alguns pontos a visão de Rothbard a respeito do Estado. Primeiro, ele não aceita a tese de que "nós" somos o governo, em decorrência do poder do nosso voto democrático. Em "The Anatomy of the State", Rothbard argumenta que o Estado não é uma associação voluntária, como um clube ou um sindicato: ele é aquela organização que "procura manter um monopólio do uso da força... em uma determinada área territorial"(14). Segundo, ele enxerga a noção, algo mística, de que o Estado é uma grande "família humana", reunida para solucionar os problemas de todos, como uma falácia: o Estado é visto por Rothbard como um canal legalizado para a apropriação da propriedade privada, que é anterior à criação do próprio Estado. Terceiro, ele desmistifica a idéia, ingenuamente difundida, por exemplo, entre os economistas de formação keynesiana, que ressalta as boas intenções e os "motivos superiores" que levam o Estado a intervir na economia. E quarto, ele sustenta sua convicção de que o Estado, sendo composto por homens e, portanto, reflexo de suas fraquezas, interessa-se mais por seus próprios assuntos e pela preservação do poder do que pela busca do bem comum com um desafio, no sentido de que olhemos para as atitudes em relação aos crimes cometidos contra ele, como por exemplo, a falsificação de moeda e a sonegação de impostos, e os crimes cometidos contra os cidadãos privados, como roubos, assaltos, estelionatos e assassinatos, aos quais podemos acrescentar os cometidos pelo Estado contra os cidadãos, como os congelamentos de preços, desindexações e confiscos de poupanças e depósitos à vista, que caracterizaram o Brasil a partir de 1986.

Em suma, o ponto de vista da Escola Austríaca a respeito da natureza e das funções do Estado é que ele, tendo sido criado pelos indivíduos para ser um ente neutro, eqüidistante e voltado para proteger os direitos individuais básicos à vida, à liberdade e à propriedade, deve ater-se, essencialmente, a manter a autoridade da lei, através do direcionamento de seu poder coercitivo para o estabelecimento e garantia do cumprimento das regras gerais de justa conduta e, em segundo lugar, deve restringir-se a tentar corrigir as verdadeiras falhas de mercado, provendo bens públicos e reduzindo (pois solucionar ele não consegue) os efeitos das chamadas externalidades, conforme veremos no capítulo 5.

O Estado não é nosso senhor, ele é nosso servo! Por isso, as instituições devem ser modeladas com o objetivo de garantir a contenção de seu poder. No dia em que nós, brasileiros, conseguirmos entender este fato tão simples, poderemos começar a esboçar as instituições que farão de nosso país aquilo que almejamos, para ele e para nós.







Referências bibliográficas

* Mises, L. von, "Uma Crítica ao Intervencionismo" (publicado originalmente em 1929, por Gustav Fisher, em Jena e Stuttgart, com o título Kritik des Interventionismus), Instituto Liberal, Rio de Janeiro, s/data, pág.101. Mises usava as designações liberalismo social, social-democracia, economia de mercado socialmente controlada e socialismo de cátedra como sinôminos, na medida em que todas expressam a crença explícita em uma "terceira via", um misto de capitalismo e socialismo. Um aspecto sem dúvida notável em Mises, bem como em Hayek, é que, ainda nos anos 20 - em plena fase de implantação do chamado "socialismo real", portanto - ambos já mostravam porque tal sistema não seria viável, bem como a "terceira via" que, na década seguinte, receberia na teoria econômica a designação de keynesianismo. Liberalismo social e democracia social, conforme mencionamos na Introdução, são, no entendimento da Escola Austríaca, expressões redundantes, uma vez que não se pode conceber liberalismo nem democracia que não sejam sociais.

1. Hayek, F.A., "Os Fundamentos da Liberdade", pag.20.

2. Ver, por exemplo, o volume I ("Rules and Order") cap.1, págs.8/34, da trilogia "Law, Legislation and Liberty", referida na nota relativa à epígrafe do capítulo anterior.

3. Ibid., págs. 22/24.

4. Ibid., especialmente caps. 2,5 e 6 e também no ensaio "The Confusion of Language in Political Thought" (in: Hayek, F.A., "New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas, The University of Chicago Press, Chicago, 1978.

5. Para uma excelente exposição dos contrastes entre as sociedades livres e as totalitárias, recomendamos o volume 6 da série Pensamento Liberal, "Entre os Cupins e os Homens", de Og F. Leme, editado pela José Olympio, em conjunto com o Instituto Liberal do Rio de Janeiro, em 1988. (Em especial, o quadro sinótico das diferenças, págs. 46/47. A citação está na página 48).

6. Kirzner, I., "Competição e Atividade Empresarial", Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1986, especialmente os capítulos I e II e Kirzner, I., “The Meaning of Market Process - Essays in the Development of Modern Austrian Economics", Rizzo, M. e White, L. (eds), Routledge, New York, 1992.

7. Hayek, F.A., "Law, Legislation and Liberty", vol.2,"The Mirage of Social Justice", págs. 128/129.

8. Mises, L. von, "Ação Humana", pág. 846.

9. Mises, L. von, "Socialism", Liberty Class, Indianapolis, 1981. Ver, também do mesmo autor, "Uma Crítica ao Intervencionismo" e "Ação Humana" (5ª e 6ª partes, caps. XXV a XXXV).

10. Zanotti, Gabriel, "Introduccion a la Escuela Austríaca de Economia", Centro de Estudios sobre la Libertad, Buenos Aires, 1981, págs. 151/152.

11. São Paulo, II Cor., 3,17.

12. Hayek, F.A., "O Caminho da Servidão", Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 5ª ed., 1990.

13. Rothbard, M.N., "Power & Market", Sheed, Andrews & Mc Meel, Kansas City, 2ª ed., 1977, pág. 237.

14. Rothbard, M.N., "The Anatomy of the State", in: Machan, T.R. (ed.), "The Libertarian Alternative", Nelson Hall, Chicago, 1974, pág. 70.

Re.: Racionalismo Crítico vs. Arrogância Utópica

Enviado: 18 Fev 2006, 16:22
por rapha...
O tópico seria mais interessante se não fizessem esta peleja de artigos, visto que o artigo do enunciado é bastante interessante, ainda mais para os que possuem pouco ou nenhum conhecimento do assunto, como eu.

Enviado: 18 Fev 2006, 16:28
por Dante, the Wicked
Muito bom o primeiro texto, Liquid Snake.

Re.: Racionalismo Crítico vs. Arrogância Utópica

Enviado: 18 Fev 2006, 18:01
por Enfant Terrible
O meu Tópico sobre o fim da Economia nao é Utopia Liquid. Confira:
http://antigo.religiaoeveneno.com.br/viewtopic.php?t=2483&start=20 :emoticon12:

Re: Re.: Racionalismo Crítico vs. Arrogância Utópica

Enviado: 18 Fev 2006, 22:39
por Samael
rapha... escreveu:O tópico seria mais interessante se não fizessem esta peleja de artigos, visto que o artigo do enunciado é bastante interessante, ainda mais para os que possuem pouco ou nenhum conhecimento do assunto, como eu.


Não foi peleja alguma. Eu li uma parte do primeiro texto, discordei de algumas coisas e concordei com outras, mas não tenho saco pra ficar quotando e respondendo a um texto imenso desses.

Depois, me recordei de um texto que tenho aqui e gosto muito e postei.

Re.: Racionalismo Crítico vs. Arrogância Utópica

Enviado: 19 Fev 2006, 11:03
por user f.k.a. Cabeção
O primeiro texto é primoroso, além de ser bastante conveniente para o ambiente do fórum, já que a maioria das pessoas aqui se sente desconfortável com menções à moral judaico-cristã, o que faz com que torçam o nariz para textos de orientação liberal que as mencionem diretamente. É claro que ela está lá, apenas não convém ao interesse pragmático mencioná-la.

Meu único ponto de divergência, que nem é tão grande, trata da questão de como o autor vê a democracia do ponto de vista liberal. Fica claro que ele adota a visão do pragmatismo liberal, segundo a qual a democracia é melhor simplesmente por ter se mostrado mais eficiente que as outras opções. Isso se reflete bem no aforismo de Sir Winston Churchill: "A democracia é a pior forma de governo imaginável, a excessão de todas as outras já experimentadas".

Eu via as coisas por esse ângulo, mas hoje acho importante elevar o aspecto moral inerente a democracia e ao capitalismo. Não só a democracia representativa ocidental, e aqui cabe ressalvar que não estamos tratando de 'democracias' incipientes e populistas em países sub-capitalistas, é a menos pior das formas de governo experimentadas, como é a menos pior das formas de governo possíveis, do ponto de vista liberal. Se todo o governo é invasivo, e às vezes até agressivo à sociedade, submeter a sociedade a qualquer forma de governo que não permita sua participação, ou que a restrinja severamente, é lógica e moralmente incompatível com o liberalismo. Não existem alternativas liberais à democracia. Alguns diriam a completa ausência de Estado, esquecendo-se que "não há liberdade sem leis".

ps: só li o primeiro dos três textos, pretendo ler os outros dois ainda.