Lógica paraconsistente
Enviado: 11 Mar 2006, 22:48
http://www.criticanarede.com/log_paraconsistente.html
Lógica paraconsistente
Décio Krause
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Acredito que a paraconsistência seja uma das maiores novidades em lógica da segunda metade do século XX.
G. H. von Wright
Tradicionalmente, a presença de contradições em teorias, sistemas matemáticos ou mesmo no discurso usual sempre foi considerada como sintoma de erro. A própria idéia de racionalidade, de difícil explicação, parece passar pelo requisito da ausência de contradição. Alguém que se contradiz não pode ser "racional", é o que geralmente se pensa. Como então pode haver sistemas teóricos dedutivos que admitam teses contraditórias, e em particular contradições? Que utilidade teriam esses sistemas? Na maioria dos sistemas lógicos, a presença de dois teoremas contraditórios (ou seja, um deles sendo a negação do outro) acarreta sua trivialização (todas as expressões bem formadas de sua linguagem podem ser derivadas como teoremas), e então a sua aplicação torna-se questionável.
Isso significa o seguinte: chamemos de S um sistema dedutivo baseado na lógica tradicional. Suponha que em S se possam provar dois teoremas contraditórios, B e sua negação, não-B. Resulta então que se pode formar a sua conjunção, "B e não-B", e então, pelo chamado princípio da explosão (ou Lei de Scotus), que vale nessa lógica, em S pode-se derivar como teorema qualquer expressão que seja formulada em sua linguagem (chamada de "fórmula" de S) de acordo com as suas regras gramaticais. Um sistema que prove todas as suas fórmulas aparentemente não tem qualquer utilidade, pois em tais S, dito de modo abreviado, não se poderia distinguir entre o verdadeiro e o falso. É preciso, então, ao que tudo indica, evitar contradições a todo custo. Esse sempre foi um desejo, ao menos inconsciente, de qualquer teórico. Aliás, o grande matemático alemão David Hilbert (1862-1943) associava a idéia de "existência" em matemática precisamente à consistência dos variados sistemas, ou seja, à ausência de contradições internas a eles.
Aplicações
Adiante, veremos com mais detalhe como tais sistemas que incluem contradições podem ser erigidos e um pouco de sua história. Por ora, vale salientar que as aplicações da lógica paraconsistente não se limitam a aspectos teóricos ou filosóficos, envolvendo a possibilidade ou impossibilidade de admitir contradições. Alguns dos campos mais férteis aplicação dessas lógicas têm sido a ciência da computação, a engenharia e a medicina. Por exemplo, na inteligência artificial essas lógicas foram usadas a partir da década de 1980 por H. Blair e V. S. Subrahmanian, da Universidade de Siracusa, Estados Unidos, e colaboradores, na elaboração de sistemas para serem utilizados especialmente em medicina. De forma simplificada, a idéia básica é a seguinte. É possível imaginar situações em que um paciente pode "se entrevistar" com um computador e este, mediante perguntas e respostas, devidamente municiado com uma base de dados adequada e com um programa que lhe permita "fazer inferências", poderia chegar a diagnosticar e a medicar o paciente, ou então remetê-lo ao médico nos casos mais sérios. Isso poderia reduzir consideravelmente as filas nos postos de saúde (sistemas desse tipo existem nos Estados Unidos desde a década de 1970, porém, ao menos idealmente, sem envolver bases de dados contraditórias).
Na elaboração de tais sistemas, que devem ser erigidos em linguagens nas quais se possam fazer determinadas inferências — em suma, tirar conclusões a partir de certas premissas —, os cientistas em geral entrevistam vários especialistas. O que acontece é que, para o programa funcionar, cria-se um banco de dados que contenha as opiniões dos diversos médicos entrevistados, e é a partir desse banco de dados que o sistema vai "tirar conclusões", valendo-se das regras de alguma lógica. Porém, devido principalmente à grande complexidade envolvida com sua ciência, os médicos podem ter opiniões divergentes (e mesmo contraditórias) sobre um certo assunto, ou sobre a causa de um certo mal. Logo, se no banco de dados há duas informações que se contradizem, se o sistema opera com a lógica clássica, pode ocorrer a dedução de duas proposições contraditórias, o que torna trivial — ou inviabiliza — o sistema como um todo. Para que seja possível considerar bancos de dados amplos, que eventualmente contenham informações contraditórias, e sem que se corra o risco de trivialização, a lógica a ser utilizada deve ser paraconsistente, como constataram Blair e Subrahmanian. Desta forma, é possível absorver inconsistências nos bancos de dados sem ter de eliminá-las (o que pode ser impossível).
Pode-se ainda mostrar de que forma as lógicas paraconsistentes (na verdade, certas teorias de conjuntos que delas se originam) generalizam a teoria de conjuntos nebulosos (fuzzy sets). Isso traz uma outra variedade de aplicações, onde é possível que se construam mecanismos (para-analisadores e para-processadores) que permitem considerar uma variedade de situações, muito mais abrangentes do que os "sim" e "não" da lógica tradicional.Isso pode ser entendido do seguinte modo; relativamente aos conjuntos tradicionais, tem-se o fato que: dado um conjunto X e um objeto a, tem-se que a pertence a X ou a não pertence a X. Pelo princípio do terceiro excluído, uma dessas proposições tem de ser verdadeira. Em um conjunto nebuloso, no entanto, há muito mais possibilidades além de "pertence a X" e "não pertence a X", surgindo a possibilidade de se ter elementos que "estejam mais para dentro de X" do que outros. A analogia com uma nuvem é imediata: para certos objetos (um pássaro, por exemplo) pode-se afirmar que eles estão "dentro" da nuvem, enquanto outros estão "fora", mas devido ao seu contorno impreciso, alguns objetos podem estar em regiões intermediárias. Algumas lógicas paraconsistentes ganham essa característica fuzzy.
A partir desse fato, têm sido feitos ensaios de aplicações (principalmente por cientistas brasileiros e japoneses) no controle de qualidade, na robótica, no de tráfego aéreo e urbano e, mais recentemente, em várias questões em medicina, em que certas decisões não podem ser tomadas a partir de um mero "sim" ou de um mero "não". Um exemplo simples, em robótica: um robô está equipado com vários tipos de sensores, que geram informações contraditórias. Um dos casos é o de um visor óptico, que talvez não consiga detectar uma parede de vidro, dizendo "posso passar", enquanto um sonar a detecta, dizendo "não posso passar".
Um robô "clássico", isto é, funcionando com a lógica clássica, e tendo ambos os sensores, terá dificuldades óbvias na presença de uma informação do tipo "passe e não passe", mas isso é superado com o uso das lógicas paraconsistentes (o robô não "trivializa"). Da mesma forma, para que o tráfego em uma rua flua melhor, seria conveniente que os sinaleiros não ficassem simplesmente abertos ou fechados durante tempos fixos, mas que abrissem ou fechassem por tempos maiores ou menores em função do fluxo de veículos. É sabido que essas aplicações já vêm sendo realizadas há algum tempo (até os controles remotos de televisão vêm com a designação fuzzy logic), mas as lógicas paraconsistentes têm oferecido possibilidades de elaboração de sistemas alternativos.
Vários outros assuntos relacionados às lógicas paraconsistentes surgem da aplicação das lógicas paraconsistentes à ciência do direito e à ética. Nas lógicas deônticas, noções como "obrigatório" e "permitido" podem ser tratadas formalmente, e esses operadores podem ser interpretados como obrigatoriedade ou permissividade perante a lei, ou em conformidade com algum sistema moral ou ético. Por exemplo, a tomada de decisões que envolvem a possibilidade da existência "real" dos chamados dilemas deônticos é de interesse filosófico e científico.
Um dilema deôntico, falando por alto, seria como: "algo é obrigatório, mas sua negação também o é", como na recente discussão sobre a anencefalia de certos fetos, caso em que a obrigatoriedade (ética) da gestação até o fim conflita com a obrigatoriedade da saúde física e psicológica da mãe. Nesses há conflito de normas, de modo que dilemas deônticos surgem como "reais", e não como algo apenas aparente.
As lógicas paraconsistentes vêm auxiliar na discussão de como podemos compatibilizar sistemas éticos e jurídicos conflitantes (e até contraditórios) sem sermos tachados de irracionais. Aliás, a possibilidade dessas lógicas (e de outras não-clássicas) traz à tona uma discussão interessante sobre a própria questão da racionalidade, que tradicionalmente sempre esteve ligada a alguma noção de consistência (ou ausência de contradição).
Há vários outros exemplos importantes de usos dessas lógicas. Por exemplo, o desenvolvimento recente de lógicas quânticas paraconsistentes. Ou a aplicação de algumas lógicas paraconsistentes (ditas lógicas paraclássicas) em física, em especial para possibilitar a existência de proposições "complementares", que são proposições que devem ambas ser consideradas numa certa teoria, mas tais que uma delas implique a negação da outra. Ou, então, na análise de questões que envolvem crença e aceitabilidade, entre outros. Importa ainda mencionar que têm sido desenvolvidas as bases de uma "matemática paraconsistente", mas que ainda precisa ser devidamente explorada. Tais estudos acham-se enquadrados no campo da matemática pura,mas o tema é promissor e, com toda certeza, não desconsiderando o seu valor como atividade teórica, alcançará mais destaque no meio científico na medida em que forem sendo encontradas outras aplicações relevantes.
Lógica paraconsistente
Décio Krause
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Acredito que a paraconsistência seja uma das maiores novidades em lógica da segunda metade do século XX.
G. H. von Wright
Tradicionalmente, a presença de contradições em teorias, sistemas matemáticos ou mesmo no discurso usual sempre foi considerada como sintoma de erro. A própria idéia de racionalidade, de difícil explicação, parece passar pelo requisito da ausência de contradição. Alguém que se contradiz não pode ser "racional", é o que geralmente se pensa. Como então pode haver sistemas teóricos dedutivos que admitam teses contraditórias, e em particular contradições? Que utilidade teriam esses sistemas? Na maioria dos sistemas lógicos, a presença de dois teoremas contraditórios (ou seja, um deles sendo a negação do outro) acarreta sua trivialização (todas as expressões bem formadas de sua linguagem podem ser derivadas como teoremas), e então a sua aplicação torna-se questionável.
Isso significa o seguinte: chamemos de S um sistema dedutivo baseado na lógica tradicional. Suponha que em S se possam provar dois teoremas contraditórios, B e sua negação, não-B. Resulta então que se pode formar a sua conjunção, "B e não-B", e então, pelo chamado princípio da explosão (ou Lei de Scotus), que vale nessa lógica, em S pode-se derivar como teorema qualquer expressão que seja formulada em sua linguagem (chamada de "fórmula" de S) de acordo com as suas regras gramaticais. Um sistema que prove todas as suas fórmulas aparentemente não tem qualquer utilidade, pois em tais S, dito de modo abreviado, não se poderia distinguir entre o verdadeiro e o falso. É preciso, então, ao que tudo indica, evitar contradições a todo custo. Esse sempre foi um desejo, ao menos inconsciente, de qualquer teórico. Aliás, o grande matemático alemão David Hilbert (1862-1943) associava a idéia de "existência" em matemática precisamente à consistência dos variados sistemas, ou seja, à ausência de contradições internas a eles.
Aplicações
Adiante, veremos com mais detalhe como tais sistemas que incluem contradições podem ser erigidos e um pouco de sua história. Por ora, vale salientar que as aplicações da lógica paraconsistente não se limitam a aspectos teóricos ou filosóficos, envolvendo a possibilidade ou impossibilidade de admitir contradições. Alguns dos campos mais férteis aplicação dessas lógicas têm sido a ciência da computação, a engenharia e a medicina. Por exemplo, na inteligência artificial essas lógicas foram usadas a partir da década de 1980 por H. Blair e V. S. Subrahmanian, da Universidade de Siracusa, Estados Unidos, e colaboradores, na elaboração de sistemas para serem utilizados especialmente em medicina. De forma simplificada, a idéia básica é a seguinte. É possível imaginar situações em que um paciente pode "se entrevistar" com um computador e este, mediante perguntas e respostas, devidamente municiado com uma base de dados adequada e com um programa que lhe permita "fazer inferências", poderia chegar a diagnosticar e a medicar o paciente, ou então remetê-lo ao médico nos casos mais sérios. Isso poderia reduzir consideravelmente as filas nos postos de saúde (sistemas desse tipo existem nos Estados Unidos desde a década de 1970, porém, ao menos idealmente, sem envolver bases de dados contraditórias).
Na elaboração de tais sistemas, que devem ser erigidos em linguagens nas quais se possam fazer determinadas inferências — em suma, tirar conclusões a partir de certas premissas —, os cientistas em geral entrevistam vários especialistas. O que acontece é que, para o programa funcionar, cria-se um banco de dados que contenha as opiniões dos diversos médicos entrevistados, e é a partir desse banco de dados que o sistema vai "tirar conclusões", valendo-se das regras de alguma lógica. Porém, devido principalmente à grande complexidade envolvida com sua ciência, os médicos podem ter opiniões divergentes (e mesmo contraditórias) sobre um certo assunto, ou sobre a causa de um certo mal. Logo, se no banco de dados há duas informações que se contradizem, se o sistema opera com a lógica clássica, pode ocorrer a dedução de duas proposições contraditórias, o que torna trivial — ou inviabiliza — o sistema como um todo. Para que seja possível considerar bancos de dados amplos, que eventualmente contenham informações contraditórias, e sem que se corra o risco de trivialização, a lógica a ser utilizada deve ser paraconsistente, como constataram Blair e Subrahmanian. Desta forma, é possível absorver inconsistências nos bancos de dados sem ter de eliminá-las (o que pode ser impossível).
Pode-se ainda mostrar de que forma as lógicas paraconsistentes (na verdade, certas teorias de conjuntos que delas se originam) generalizam a teoria de conjuntos nebulosos (fuzzy sets). Isso traz uma outra variedade de aplicações, onde é possível que se construam mecanismos (para-analisadores e para-processadores) que permitem considerar uma variedade de situações, muito mais abrangentes do que os "sim" e "não" da lógica tradicional.Isso pode ser entendido do seguinte modo; relativamente aos conjuntos tradicionais, tem-se o fato que: dado um conjunto X e um objeto a, tem-se que a pertence a X ou a não pertence a X. Pelo princípio do terceiro excluído, uma dessas proposições tem de ser verdadeira. Em um conjunto nebuloso, no entanto, há muito mais possibilidades além de "pertence a X" e "não pertence a X", surgindo a possibilidade de se ter elementos que "estejam mais para dentro de X" do que outros. A analogia com uma nuvem é imediata: para certos objetos (um pássaro, por exemplo) pode-se afirmar que eles estão "dentro" da nuvem, enquanto outros estão "fora", mas devido ao seu contorno impreciso, alguns objetos podem estar em regiões intermediárias. Algumas lógicas paraconsistentes ganham essa característica fuzzy.
A partir desse fato, têm sido feitos ensaios de aplicações (principalmente por cientistas brasileiros e japoneses) no controle de qualidade, na robótica, no de tráfego aéreo e urbano e, mais recentemente, em várias questões em medicina, em que certas decisões não podem ser tomadas a partir de um mero "sim" ou de um mero "não". Um exemplo simples, em robótica: um robô está equipado com vários tipos de sensores, que geram informações contraditórias. Um dos casos é o de um visor óptico, que talvez não consiga detectar uma parede de vidro, dizendo "posso passar", enquanto um sonar a detecta, dizendo "não posso passar".
Um robô "clássico", isto é, funcionando com a lógica clássica, e tendo ambos os sensores, terá dificuldades óbvias na presença de uma informação do tipo "passe e não passe", mas isso é superado com o uso das lógicas paraconsistentes (o robô não "trivializa"). Da mesma forma, para que o tráfego em uma rua flua melhor, seria conveniente que os sinaleiros não ficassem simplesmente abertos ou fechados durante tempos fixos, mas que abrissem ou fechassem por tempos maiores ou menores em função do fluxo de veículos. É sabido que essas aplicações já vêm sendo realizadas há algum tempo (até os controles remotos de televisão vêm com a designação fuzzy logic), mas as lógicas paraconsistentes têm oferecido possibilidades de elaboração de sistemas alternativos.
Vários outros assuntos relacionados às lógicas paraconsistentes surgem da aplicação das lógicas paraconsistentes à ciência do direito e à ética. Nas lógicas deônticas, noções como "obrigatório" e "permitido" podem ser tratadas formalmente, e esses operadores podem ser interpretados como obrigatoriedade ou permissividade perante a lei, ou em conformidade com algum sistema moral ou ético. Por exemplo, a tomada de decisões que envolvem a possibilidade da existência "real" dos chamados dilemas deônticos é de interesse filosófico e científico.
Um dilema deôntico, falando por alto, seria como: "algo é obrigatório, mas sua negação também o é", como na recente discussão sobre a anencefalia de certos fetos, caso em que a obrigatoriedade (ética) da gestação até o fim conflita com a obrigatoriedade da saúde física e psicológica da mãe. Nesses há conflito de normas, de modo que dilemas deônticos surgem como "reais", e não como algo apenas aparente.
As lógicas paraconsistentes vêm auxiliar na discussão de como podemos compatibilizar sistemas éticos e jurídicos conflitantes (e até contraditórios) sem sermos tachados de irracionais. Aliás, a possibilidade dessas lógicas (e de outras não-clássicas) traz à tona uma discussão interessante sobre a própria questão da racionalidade, que tradicionalmente sempre esteve ligada a alguma noção de consistência (ou ausência de contradição).
Há vários outros exemplos importantes de usos dessas lógicas. Por exemplo, o desenvolvimento recente de lógicas quânticas paraconsistentes. Ou a aplicação de algumas lógicas paraconsistentes (ditas lógicas paraclássicas) em física, em especial para possibilitar a existência de proposições "complementares", que são proposições que devem ambas ser consideradas numa certa teoria, mas tais que uma delas implique a negação da outra. Ou, então, na análise de questões que envolvem crença e aceitabilidade, entre outros. Importa ainda mencionar que têm sido desenvolvidas as bases de uma "matemática paraconsistente", mas que ainda precisa ser devidamente explorada. Tais estudos acham-se enquadrados no campo da matemática pura,mas o tema é promissor e, com toda certeza, não desconsiderando o seu valor como atividade teórica, alcançará mais destaque no meio científico na medida em que forem sendo encontradas outras aplicações relevantes.