Ouvindo white metal
Enviado: 17 Mar 2006, 23:06
Ouvindo white metal
Por Acauan
Estou eu lá no meu sacrossanto chope das sextas-feiras.
Uma destas ironias do destino cismou de colocar uma igreja evangélica bem acima do local onde o dito ato sacrossanto semanal é realizado.
Mas como dizem que Deus sabe o que faz, não tem culto lá às sextas-feiras, me poupando dos hinos de louvor e a eles de terem a mim tão próximo, o que poderia levar o Espírito Santo a questionar se vale a pena baixar por ali.
Assim, viveríamos todos felizes em meu etílico silêncio contemplativo se não fosse um "teeeiiinnnn" soando logo acima da minha cabeça.
Não sou nenhum especialista no assunto, mas reconheço o som de um prato de bateria quando ouço um.
E me preparo para o pior.
Se em uma igreja de crentes, situada três metros acima do meu copo, alguém bateu um prato de bateria enquanto tomo meu chope, é que o pior ainda está por vir.
Não dá outra.
À primeira batida segue-se o esperado.
Caixa, chimbau, pratos, bumbo, surdo soam em meus indígenas ouvidos.
Vou passar a beber em outro lugar é meu primeiro pensamento.
Mas fico lá, ouvindo.
Afinal, estou bem embaixo de uma igreja evangélica.
O que poderia ficar pior?
A bateria segue.
Acompanho o ritmo.
Blues ou rock'n'roll.
Algum crente destas igrejas por aí toca blues?
Última chance...
Ninguém?
Então é o tal do white metal mesmo. Aquela versão esquisita do rock que algumas igrejas crentes tocam durante o que eles chamam de louvor.
Bem, é de graça, estou aqui mesmo, ouçamos.
A batida não é ruim.
Ritmada e correta, mas falta alguma coisa.
Ouço o tum, tum, tum típico.
Alguém afina o baixo.
Logo em seguida o baixo entra na batida do surdo da bateria.
Parece afinadinho e ritmado.
Mas falta alguma coisa.
Quase ao mesmo tempo entram guitarra e teclado.
Devem ter afinado antes.
Alguém errou no ajuste de volume, pois é difícil distinguir o teclado e a guitarra, abafados pela bateria e baixo.
Mas sigo ouvindo.
Para minha felicidade parece que o vocalista não veio e sou poupado de ouvir aquelas letrinhas bregas e piegas, que nunca fogem ao Jesus isto, Jesus aquilo e suas poucas variantes.
Após um tempo meu veredicto é que os caras não são ruins.
Os instrumentos estão bem afinados, a melodia está no compasso e o ritmo segue a batida correta.
Mas falta alguma coisa.
O que?
Entre um chope e outro ouço várias tentativas, repetidas várias vezes, como é o esperado em ensaios.
Reconheço que é preciso alguns anos de estudo para chegar ao domínio técnico que os caras demonstram no manuseio de seus instrumentos.
Mas...
Putz...., claro...
Rebeldia.
Não existe rock'n'roll de qualidade sem uma alta dose de rebeldia.
O finado Hendrix que o diga.
Só então entendi.
Não é que a guitarra estivesse abafada por uma má regulagem dos volumes.
O guitarrista não ousava, não improvisava.
Não havia os solos alucinados, ou uma imitação esforçada deles, que são imprescindíveis a uma banda de rock que quer ser reconhecida como tal.
O improviso no blues (ou no jazz) é um ato de sublimação artística, na qual cada instrumento, rompendo com a partitura a frente, busca seu próprio caminho e nisto encontra com os demais, que fazem o mesmo, a suprema harmonia, que termina por arrebatar o ouvinte para o estado emocional que é a razão de ser deste estilo.
No rock'n'roll o improviso é algo como "sai da frente galera, que eu me empolguei", que no fim acaba resultando no mesmo efeito.
Os músicos crentes que eu ouvia desconheciam o improviso e a rebeldia.
A sublimação do blues é encontrada no black spiritual, a transposição da rebeldia passional para a música religiosa.
A complementação dos opostos se dá no canto gregoriano católico, onde todas as paixões se submetem à aceita como suprema e manifestam-se assim em um canto monódico.
A conclusão é que os crentes tiraram a alma do rock em sua pretensão de torna-lo um canto de louvor ao Espírito.
Louvar o Espírito com uma música sem alma é, obviamente, contraditório.
Os chopes seguem.
O som silencia.
Após algum tempo aparecem na calçada os músicos crentes que tocavam com técnica e sem alma sobre minha cabeça.
Exemplares típicos daquela denominação evangélica cuja missão era trazer para Jesus as almas de classe média para cima.
As grifes dos tênis, bermudas, camisetas e acessórios dos semi-roqueiros confirmaram isto.
Exposto à luz, o reflexo do brinco de um deles chegou a me ofuscar.
Visualmente aqueles espécimes eram muito diferentes do estereótipo do crente de terno surrado com a bíblia embaixo do braço.
O irônico é que quando tocam parecem vestir, mesmo que espiritualmente, aquela vestimenta padrão que permite a qualquer um saber que deles nada virá de imprevisível,
Jamais um solo de guitarra atravessando os compassos.
Para quem não sabia, isto é o white metal.
Não sei por que tem crente que reclama quando aquilo é tocado nas igrejas deles.
Um é a cara do outro.
Por Acauan
Estou eu lá no meu sacrossanto chope das sextas-feiras.
Uma destas ironias do destino cismou de colocar uma igreja evangélica bem acima do local onde o dito ato sacrossanto semanal é realizado.
Mas como dizem que Deus sabe o que faz, não tem culto lá às sextas-feiras, me poupando dos hinos de louvor e a eles de terem a mim tão próximo, o que poderia levar o Espírito Santo a questionar se vale a pena baixar por ali.
Assim, viveríamos todos felizes em meu etílico silêncio contemplativo se não fosse um "teeeiiinnnn" soando logo acima da minha cabeça.
Não sou nenhum especialista no assunto, mas reconheço o som de um prato de bateria quando ouço um.
E me preparo para o pior.
Se em uma igreja de crentes, situada três metros acima do meu copo, alguém bateu um prato de bateria enquanto tomo meu chope, é que o pior ainda está por vir.
Não dá outra.
À primeira batida segue-se o esperado.
Caixa, chimbau, pratos, bumbo, surdo soam em meus indígenas ouvidos.
Vou passar a beber em outro lugar é meu primeiro pensamento.
Mas fico lá, ouvindo.
Afinal, estou bem embaixo de uma igreja evangélica.
O que poderia ficar pior?
A bateria segue.
Acompanho o ritmo.
Blues ou rock'n'roll.
Algum crente destas igrejas por aí toca blues?
Última chance...
Ninguém?
Então é o tal do white metal mesmo. Aquela versão esquisita do rock que algumas igrejas crentes tocam durante o que eles chamam de louvor.
Bem, é de graça, estou aqui mesmo, ouçamos.
A batida não é ruim.
Ritmada e correta, mas falta alguma coisa.
Ouço o tum, tum, tum típico.
Alguém afina o baixo.
Logo em seguida o baixo entra na batida do surdo da bateria.
Parece afinadinho e ritmado.
Mas falta alguma coisa.
Quase ao mesmo tempo entram guitarra e teclado.
Devem ter afinado antes.
Alguém errou no ajuste de volume, pois é difícil distinguir o teclado e a guitarra, abafados pela bateria e baixo.
Mas sigo ouvindo.
Para minha felicidade parece que o vocalista não veio e sou poupado de ouvir aquelas letrinhas bregas e piegas, que nunca fogem ao Jesus isto, Jesus aquilo e suas poucas variantes.
Após um tempo meu veredicto é que os caras não são ruins.
Os instrumentos estão bem afinados, a melodia está no compasso e o ritmo segue a batida correta.
Mas falta alguma coisa.
O que?
Entre um chope e outro ouço várias tentativas, repetidas várias vezes, como é o esperado em ensaios.
Reconheço que é preciso alguns anos de estudo para chegar ao domínio técnico que os caras demonstram no manuseio de seus instrumentos.
Mas...
Putz...., claro...
Rebeldia.
Não existe rock'n'roll de qualidade sem uma alta dose de rebeldia.
O finado Hendrix que o diga.
Só então entendi.
Não é que a guitarra estivesse abafada por uma má regulagem dos volumes.
O guitarrista não ousava, não improvisava.
Não havia os solos alucinados, ou uma imitação esforçada deles, que são imprescindíveis a uma banda de rock que quer ser reconhecida como tal.
O improviso no blues (ou no jazz) é um ato de sublimação artística, na qual cada instrumento, rompendo com a partitura a frente, busca seu próprio caminho e nisto encontra com os demais, que fazem o mesmo, a suprema harmonia, que termina por arrebatar o ouvinte para o estado emocional que é a razão de ser deste estilo.
No rock'n'roll o improviso é algo como "sai da frente galera, que eu me empolguei", que no fim acaba resultando no mesmo efeito.
Os músicos crentes que eu ouvia desconheciam o improviso e a rebeldia.
A sublimação do blues é encontrada no black spiritual, a transposição da rebeldia passional para a música religiosa.
A complementação dos opostos se dá no canto gregoriano católico, onde todas as paixões se submetem à aceita como suprema e manifestam-se assim em um canto monódico.
A conclusão é que os crentes tiraram a alma do rock em sua pretensão de torna-lo um canto de louvor ao Espírito.
Louvar o Espírito com uma música sem alma é, obviamente, contraditório.
Os chopes seguem.
O som silencia.
Após algum tempo aparecem na calçada os músicos crentes que tocavam com técnica e sem alma sobre minha cabeça.
Exemplares típicos daquela denominação evangélica cuja missão era trazer para Jesus as almas de classe média para cima.
As grifes dos tênis, bermudas, camisetas e acessórios dos semi-roqueiros confirmaram isto.
Exposto à luz, o reflexo do brinco de um deles chegou a me ofuscar.
Visualmente aqueles espécimes eram muito diferentes do estereótipo do crente de terno surrado com a bíblia embaixo do braço.
O irônico é que quando tocam parecem vestir, mesmo que espiritualmente, aquela vestimenta padrão que permite a qualquer um saber que deles nada virá de imprevisível,
Jamais um solo de guitarra atravessando os compassos.
Para quem não sabia, isto é o white metal.
Não sei por que tem crente que reclama quando aquilo é tocado nas igrejas deles.
Um é a cara do outro.