http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticia ... mog1.shtml
Um choque de civilizações?
Chandra Muzaffar
Presidente do Movimento Internacional para um Mundo Justo (Just)
Depois de 11 de setembro, da subsequente ofensiva no Afeganistão, da ocupação americana do Iraque, a idéia de um 'choque de civilizações' entre o Ocidente e o mundo islâmico foi exumada em alguns círculos.
Um punhado de políticos, cristãos evangelistas e comentaristas no Ocidente, por exemplo, vêem os muçulmanos e sua fé como 'inclinadas para a violência' e, portanto, com tendência de destruir seu 'estilo de vida civilizado'.
Dentro do mundo muçulmano há grupos que estão convencidos de que o Ocidente, especificamente os Estados Unidos, fizeram do mundo islâmico e de seu povo como seu principal alvo e não vão descansar enquanto não os subjugar totalmente.
Mas a realidade mostra que ambas essas visões estão erradas.
Não é só gente no Ocidente que encara os ataques suicidas contra o World Trade Centre e o Pentágono como atos abomináveis. Muçulmanos em toda parte condenaram a matança de inocentes.
Dicotomia
Da mesma forma, não foram apenas muçulmanos que se revoltaram contra a invasão do Afeganistão e do Iraque.
Milhões de pessoas no Ocidente protestaram. De fato, seus protestos, especialmente no caso do Iraque, foram muito mais maciços do que o que transpirou nos países muçulmanos.
Isso mostra que nas questões fundamentais de justiça, de certo e errado, que confrontam a humanidade hoje, não há dicotomia entre o Ocidente e o mundo islâmico.
Se houver alguma dicotomia, é entre as elites dominantes e o povo.
A crise do Iraque expôs essa nova divisão em vários países muçulmanos e em algumas sociedades do Ocidente.
É importante que as pessoas no Ocidente e no mundo muçulmano tomem consciência disso e se recusem a ser arrastados para uma briga falsa e artificial entre as civilizações.
A ameaça real ao nosso bem-estar emana de interesses ocultos que estão determinados a perpetuar sua hegemonia global, militar, política, econômica e cultural.
Embora o ponto-focal dessa hegemonia global seja Washington, seu poder é sustentado por toda uma rede de elites, inclusive governantes do mundo muçulmano!
Objetivos compartilhados
Como reação a este poder hegemônico coletivo, uma facção dentro do mundo muçulmano optou por confrontar injustiças globais e domésticas através da malévola arma da violência e do terror.
Em meio a este desafio duplo de hegemonia e terror, as pessoas nas sociedades ocidentais e nos países muçulmanos que estão genuinamente comprometidas com um mundo justo, deveriam reafirmar sua fé em mudanças políticas pacíficas.
Isso deveria se tornar o objetivo compartilhado dos povos em ambas as civilizações, e dos seres humanos em toda parte.
Recentes eventos mostraram que nós, os povos do mundo, somos capazes de transcender barreiras étnicas, religiosas, culturais e de civilização na busca de justiça e paz.
Quando uma luta de significação tão monumental para o futuro da raça humana nos aguarda, como nós podemos permitir que um choque de civilizações falso desvie nossas energias?
Faz realmente sentido falar em "Ocidente" e "mundo islâmico" como duas entidades separadas, distintas?
O Ocidente, como uma criação de civilização, não existiria dentro do mundo muçulmano? Instituições políticas, sistemas econômicos e valores culturais associados à civilização ocidental se tornaram parte das sociedades muçulmanas ao longo dos últimos dois séculos.
Da mesma forma, os muçulmanos constituem uma importante minoria em quase todos os países da Europa e da América do Norte hoje.
Além disso, a civilização islâmica desempenhou, no passado, um grande papel em moldar a renascença européia. Como o islamismo foi parte do Ocidente e o Ocidente foi parte do mundo islâmico, isso não é a única razão pela qual nós devemos parar de dar credibilidade à tese de "choque de civilizações".
Estruturas de poder
Numa situação onde as fronteiras geográficas estão se tornando mais relevantes e as fronteiras culturais estão se tornando menos reais, de nada serve reforçar as barreiras de civilização que, de qualquer forma, não existem.
Para entender a evolução do cenário global, pode ser mais útil pensar em termos de estuturas globais de poder e interesses globais.
Essa abordagem vai esclarecer melhor as realidades existentes no Ocidente e no mundo muçulmano e o relacionamento entre as duas civilizações.
É quando nos deparamos com essas realidades que nós percebemos que não é o choque de civilizações que é a questão real, mas a luta por um mundo justo onde todos os seres humanos podem viver em paz e com dignidade.