Mil e uma utilidades para a cocaína.
Enviado: 29 Mar 2006, 16:16
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/ ... 2u111.jhtm
29/03/2006
Uma guerra política das drogas na Bolívia
A coca seria a nova maconha?
Jens Gluesing
O presidente boliviano Evo Morales cancelou a erradicação das plantações de coca, gerando em Washington temores de que venha aí uma nova onda de tráfico ilegal de drogas.
O vinho, um pouco adocicado, é supostamente um remédio contra o mal de Parkinson e a impotência e, segundo o rótulo, ele é especialmente recomendado para "atletas e cantores". Mas isto em pequenas doses, já que a bebida é feita a partir de folhas prensadas de coca, o que potencializa o efeito do álcool. "Se você ficar embriagado, não precisa se preocupar com o dia seguinte, porque o vinho de coca não causa ressaca", afirma Melby Paz.
Paz, uma empresária de Cochabamba, o centro de produção de coca da Bolívia, engarrafa mensalmente algumas centenas de litros de vinho de coca. A bebida de cor escura é o produto mais vendido da companhia, a Coincoca. Ela também vende sabonetes, xampus, cremes dentais e biscoitos feitos com coca, e tem planos de desenvolver no futuro sopas instantâneas e granolas feitas com a planta. De fato, Paz está falando sério ao dizer que "a coca é um alimento e um remédio incrivelmente valioso".
No passado as pessoas zombavam de Paz, chamando-a de "La Loca de La Coca". Durante anos, ela vem desenvolvendo produtos baseados na coca, que são vendidos na sua loja no centro de Cochabamba. O ritmo dos negócios era medíocre até que um índio sul-americano representante dos plantadores de coca - Evo Morales - foi eleito presidente do país. Agora o novo presidente da Bolívia pretende usar o poder de auxílio governamental para promover a venda de produtos a base de coca.
"Coca sí, Cocaína no", era um dos slogans de campanha de Morales. O objetivo do seu novo programa é dissociar a planta que fornece a substância usada para fazer a cocaína do estigma associado à droga. Nos Andes, a coca é usada como remédio há milhares de anos, e essa planta maravilhosa chegou a ser cultivada pelos incas. Milhões de bolivianos pobres mascam as folhas porque ela reduz a sensação de fome e torna o trabalho intenso mais suportável. As autoridades bolivianas estão até avaliando a idéia de adicionar coca à merenda escolar.
Morales pretende construir uma fábrica estatal de produtos derivados da coca, um projeto no qual Paz é a sua maior aliada. Ela foi contratada para realizar um estudo sobre a produção de coca em escala industrial. A sua companhia processa 350 quilos da planta por mês. "Mas essa quantidade poderia ser maior se as folhas não fossem tão caras", reclama ela. Até a posse de Morales, no final de janeiro passado, o exército destruía sistematicamente as plantações, fazendo com que a coca, um alimento básico para os bolivianos, se tornasse escassa e cara.
Agora que o presidente cancelou a destruição das plantações, os plantadores de coca esperam uma nova onda de prosperidade no setor. Os especialistas acreditam que a extensão atual de 3.200 hectares de plantações legais de coca na região de Chapare,- uma grande área de cultivo de coca no sopé dos Andes - poderá triplicar segundo a nova política. Mas eles temem também que a máfia da droga acabe sendo a maior beneficiária da guinada oficial na política do governo em relação à coca. "A Bolívia inundará os países vizinhos com cocaína", adverte o jornal "Los Tiempos".
Especialistas militares em Washington já estão prevendo um cenário de pesadelo, a emergência de um "narco-Estado" socialista sob o governo do líder camponês e populista Morales. Eles acreditam que Morales, com a ajuda dos seus amigos, o presidente venezuelano Hugo Chávez e o ditador cubano Fidel Castro, poderia desestabilizar toda a região andina.
Ironicamente, os próprios norte-americanos são parcialmente responsáveis pela ascensão do homem outrora qualificado de "narco-terrorista". Na década passada, quando o país andino se transformou em um dos maiores produtores de coca da América Latina, os norte-americanos experimentaram uma nova abordagem com relação à guerra contra as drogas em Chapare, prometendo ao governo um generoso auxílio para o desenvolvimento em troca de um acordo para a erradicação das plantações de coca. O objetivo daquele auxílio seria estimular o cultivo de produtos alternativos, como abacaxi, banana, café e laranja. A satisfação de Washington com o programa foi tamanha que o governo dos Estados Unidos apresentou a sua aliança com La Paz como um modelo global.
Desde então, organizações norte-americanas e européias de auxílio injetaram cerca de US$ 700 milhões em ajuda para o desenvolvimento em Chapare. Mas os projetos de desenvolvimento fracassaram quando ficou claro que a distância da região aos grandes centros tornava o transporte de abacaxi e banana demasiadamente caro, e que os preços desses produtos eram incapazes de competir com os da coca. A guerra contra as drogas só trouxe violência e pobreza para os agricultores da região, alimentando animosidade contra os gringos - os agentes antidroga e os especialistas militares norte-americanos que assessoraram as forças de segurança bolivianas na tarefa de erradicação das plantações de coca. De fato, tropas governamentais chegaram a usar a tortura durante as suas campanhas contra os plantadores de coca, e dezenas de camponeses desapareceram sem deixar traço. Esse tratamento brutal quase gerou uma revolta em Chapare, onde o movimento de resistência contra o governo foi liderado por um perspicaz líder sindical: Evo Morales.
Morales mal havia tomado posse quando foi ele próprio renomeado presidente da poderosa organização de plantadores de coca, gerando um conflito de interesses no qual o presidente aparentemente não enxerga motivo para preocupação. "Continuarei a ser o líder de vocês", ele anunciou inocentemente. "Dessa forma, não perderei contato com o povo". Foi como se o presidente se apresentasse como o padrinho dos pobres.
Cada plantador de coca recebe um cato, ou cerca de 1.600 metros quadrados, para plantar coca. "Os militares não destroem mais o excesso de arbustos de coca, porque nós próprios nos certificamos de que ninguém exceda a cota estabelecida", explica o presidente do sindicato, Asterio Romero.
No entanto, os especialistas duvidam que uma guerra contra as drogas baseada no automonitoramento possa funcionar. Washington já está ameaçando cortar a ajuda financeira à Bolívia.
Um próspero comércio de drogas
Os predecessores de Morales fracassaram consistentemente nas suas tentativas de regulamentar o comércio da coca. A agência do governo que concede licenças de transporte da coca "legal", por exemplo, é considerada corrupta. Somente uma fração da colheita de Chapare chega ao mercado de coca, controlado pelo governo, em Cochabamba, afirma o especialista em desenvolvimento Oscar Coca, que chama Chapare de um "triângulo das Bermudas". Folhas de coca confiscadas pela polícia, que deveriam ser incineradas, são freqüentemente revendidas às máfias da droga.
Enquanto isso, o comércio da droga continua prosperando. Desde o início deste ano, a polícia antidrogas descobriu 339 laboratórios de cocaína em Chapare, e confiscou 250 quilos de drogas ilícitas. "Os transportadores da droga sequer resistem ao serem presos", conta o chefe de polícia René Salazar. "Eles sabem que na maioria dos casos serão libertados rapidamente". Os tribunais são lentos em julgar os casos, e o tráfico de drogas é tratado como uma pequena infração.
Os transportadores se dispõem a levar a droga - de ônibus, bicicleta ou táxi - por um punhado de dólares. O trabalho é bem mais lucrativo do que o plantio de frutas ou café. Os sinais das fracassadas políticas econômicas estão por toda parte: estruturas arruinadas, originalmente projetadas para serem mercados de hortifrutigranjeiros, e financiadas pela União Européia, ou plantações de abacaxi altamente subsidiadas, nas quais as frutas apodrecem nos pés porque os agricultores não conseguem encontrar compradores.
Funcionários de instituições estrangeiras de auxílio, muitos dos quais ganham salários enormes, são alvo da inveja e da raiva dos camponeses. "Os gringos se locupletam com o dinheiro da ajuda para o desenvolvimento", reclama a plantadora de coca Juana Quispe. "Mas nós nunca vemos esse dinheiro". Quispe, uma lenda viva na Bolívia, muitas vezes se juntou a Evo Morales durante demonstrações e bloqueios de estradas a fim de protestar contra as ações da polícia antidrogas. Ela e Morales são amigos há 14 anos.
Os soldados invadiram o barraco de Quispe na pequena aldeia de Chimoré dois anos atrás. Eles arrancaram os pés de coca no seu jardim, roubaram galinhas e molestaram a filha de Quispe. Um ativista seu amigo, o líder sindicalista Feliciano Mamani, foi torturado na base militar de Chimoré por ter supostamente fomentado sentimentos antimilitares entre os camponeses. Durante um protesto quatro anos atrás, Mamani foi baleado, e teve a tíbia fraturada. Ele alega que "agentes norte-americanos antidrogas" lideraram os ataques.
Agora as antigas vítimas dessas perseguições estão no poder na Bolívia. Quispe representa o partido governista socialista, o Movimento al Socialismo (MAS), no congresso boliviano. Mamani foi eleito prefeito de Villa Tunari, uma cidade de Chapare. Os funcionários estrangeiros das agências de auxílio foram expulsos, e as prefeituras locais estão atualmente administrando o dinheiro proveniente da ajuda externa. Como um próximo passo, os ex-ativistas Mamani e Quispe querem a retirada dos agentes norte-americanos antidrogas.
Mas essa é uma medida radical que nem mesmo o presidente Morales está muito disposto a tomar. Como presidente de um pobre país andino dependente de auxílio estrangeiro, Morales dificilmente sobreviveria a um confronto com os poderosos norte-americanos. Para evitar uma ruptura com os Estados Unidos, Morales prometeu publicamente respeitar todos os acordos internacionais relativos ao combate ao narcotráfico. Ele chegou até mesmo a tentar convencer a secretária de Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, sobre o caráter pacífico dos seus planos referentes às plantações de coca. Em um encontro na cidade chilena de Valparaiso, Morales ofertou a Rice um violão decorado com folhas de coca.
Até o momento, a sua estratégia parece estar funcionando. Mais de 70% dos bolivianos apóiam o novo presidente. No início de março, o Congresso aprovou o mais importante projeto político de Morales, uma nova constituição. Um conjunto influente de lideranças empresariais da província de Santa Cruz, um grupo que se opôs ferrenhamente a Morales durante a campanha eleitoral, está atualmente cortejando assiduamente o novo herói nacional.
A sua campanha contra a corrupção tem sido especialmente popular entre os cidadãos comuns. Morales reduziu pela metade o seu salário presidencial e conseguiu impor uma redução no salário dos parlamentares. Várias autoridades de alto escalão, acusadas de corruptas por Morales, foram demitidas.
Atualmente, a vida no palácio presidencial da Bolívia lembra aquela de uma comuna. O presidente, o vice-presidente e vários ministros moram todos no prédio, e as reuniões de gabinete muitas vezes têm início bem cedo, já às 5h. Embora Morales tenha vários filhos, ele não é casado, e a sua irmã geralmente o acompanha nas solenidades oficiais.
A empresária da coca Melby Paz também capitalizou a nova popularidade do presidente, exibindo uma enorme fotografia de Morales na sua loja em Cochabamba. Aparentemente, a fórmula funciona. "Desde que Evo assumiu a presidência, as minhas vendas de produtos de coca duplicaram", afirma Paz.
29/03/2006
Uma guerra política das drogas na Bolívia
A coca seria a nova maconha?
Jens Gluesing
O presidente boliviano Evo Morales cancelou a erradicação das plantações de coca, gerando em Washington temores de que venha aí uma nova onda de tráfico ilegal de drogas.
O vinho, um pouco adocicado, é supostamente um remédio contra o mal de Parkinson e a impotência e, segundo o rótulo, ele é especialmente recomendado para "atletas e cantores". Mas isto em pequenas doses, já que a bebida é feita a partir de folhas prensadas de coca, o que potencializa o efeito do álcool. "Se você ficar embriagado, não precisa se preocupar com o dia seguinte, porque o vinho de coca não causa ressaca", afirma Melby Paz.
Paz, uma empresária de Cochabamba, o centro de produção de coca da Bolívia, engarrafa mensalmente algumas centenas de litros de vinho de coca. A bebida de cor escura é o produto mais vendido da companhia, a Coincoca. Ela também vende sabonetes, xampus, cremes dentais e biscoitos feitos com coca, e tem planos de desenvolver no futuro sopas instantâneas e granolas feitas com a planta. De fato, Paz está falando sério ao dizer que "a coca é um alimento e um remédio incrivelmente valioso".
No passado as pessoas zombavam de Paz, chamando-a de "La Loca de La Coca". Durante anos, ela vem desenvolvendo produtos baseados na coca, que são vendidos na sua loja no centro de Cochabamba. O ritmo dos negócios era medíocre até que um índio sul-americano representante dos plantadores de coca - Evo Morales - foi eleito presidente do país. Agora o novo presidente da Bolívia pretende usar o poder de auxílio governamental para promover a venda de produtos a base de coca.
"Coca sí, Cocaína no", era um dos slogans de campanha de Morales. O objetivo do seu novo programa é dissociar a planta que fornece a substância usada para fazer a cocaína do estigma associado à droga. Nos Andes, a coca é usada como remédio há milhares de anos, e essa planta maravilhosa chegou a ser cultivada pelos incas. Milhões de bolivianos pobres mascam as folhas porque ela reduz a sensação de fome e torna o trabalho intenso mais suportável. As autoridades bolivianas estão até avaliando a idéia de adicionar coca à merenda escolar.
Morales pretende construir uma fábrica estatal de produtos derivados da coca, um projeto no qual Paz é a sua maior aliada. Ela foi contratada para realizar um estudo sobre a produção de coca em escala industrial. A sua companhia processa 350 quilos da planta por mês. "Mas essa quantidade poderia ser maior se as folhas não fossem tão caras", reclama ela. Até a posse de Morales, no final de janeiro passado, o exército destruía sistematicamente as plantações, fazendo com que a coca, um alimento básico para os bolivianos, se tornasse escassa e cara.
Agora que o presidente cancelou a destruição das plantações, os plantadores de coca esperam uma nova onda de prosperidade no setor. Os especialistas acreditam que a extensão atual de 3.200 hectares de plantações legais de coca na região de Chapare,- uma grande área de cultivo de coca no sopé dos Andes - poderá triplicar segundo a nova política. Mas eles temem também que a máfia da droga acabe sendo a maior beneficiária da guinada oficial na política do governo em relação à coca. "A Bolívia inundará os países vizinhos com cocaína", adverte o jornal "Los Tiempos".
Especialistas militares em Washington já estão prevendo um cenário de pesadelo, a emergência de um "narco-Estado" socialista sob o governo do líder camponês e populista Morales. Eles acreditam que Morales, com a ajuda dos seus amigos, o presidente venezuelano Hugo Chávez e o ditador cubano Fidel Castro, poderia desestabilizar toda a região andina.
Ironicamente, os próprios norte-americanos são parcialmente responsáveis pela ascensão do homem outrora qualificado de "narco-terrorista". Na década passada, quando o país andino se transformou em um dos maiores produtores de coca da América Latina, os norte-americanos experimentaram uma nova abordagem com relação à guerra contra as drogas em Chapare, prometendo ao governo um generoso auxílio para o desenvolvimento em troca de um acordo para a erradicação das plantações de coca. O objetivo daquele auxílio seria estimular o cultivo de produtos alternativos, como abacaxi, banana, café e laranja. A satisfação de Washington com o programa foi tamanha que o governo dos Estados Unidos apresentou a sua aliança com La Paz como um modelo global.
Desde então, organizações norte-americanas e européias de auxílio injetaram cerca de US$ 700 milhões em ajuda para o desenvolvimento em Chapare. Mas os projetos de desenvolvimento fracassaram quando ficou claro que a distância da região aos grandes centros tornava o transporte de abacaxi e banana demasiadamente caro, e que os preços desses produtos eram incapazes de competir com os da coca. A guerra contra as drogas só trouxe violência e pobreza para os agricultores da região, alimentando animosidade contra os gringos - os agentes antidroga e os especialistas militares norte-americanos que assessoraram as forças de segurança bolivianas na tarefa de erradicação das plantações de coca. De fato, tropas governamentais chegaram a usar a tortura durante as suas campanhas contra os plantadores de coca, e dezenas de camponeses desapareceram sem deixar traço. Esse tratamento brutal quase gerou uma revolta em Chapare, onde o movimento de resistência contra o governo foi liderado por um perspicaz líder sindical: Evo Morales.
Morales mal havia tomado posse quando foi ele próprio renomeado presidente da poderosa organização de plantadores de coca, gerando um conflito de interesses no qual o presidente aparentemente não enxerga motivo para preocupação. "Continuarei a ser o líder de vocês", ele anunciou inocentemente. "Dessa forma, não perderei contato com o povo". Foi como se o presidente se apresentasse como o padrinho dos pobres.
Cada plantador de coca recebe um cato, ou cerca de 1.600 metros quadrados, para plantar coca. "Os militares não destroem mais o excesso de arbustos de coca, porque nós próprios nos certificamos de que ninguém exceda a cota estabelecida", explica o presidente do sindicato, Asterio Romero.
No entanto, os especialistas duvidam que uma guerra contra as drogas baseada no automonitoramento possa funcionar. Washington já está ameaçando cortar a ajuda financeira à Bolívia.
Um próspero comércio de drogas
Os predecessores de Morales fracassaram consistentemente nas suas tentativas de regulamentar o comércio da coca. A agência do governo que concede licenças de transporte da coca "legal", por exemplo, é considerada corrupta. Somente uma fração da colheita de Chapare chega ao mercado de coca, controlado pelo governo, em Cochabamba, afirma o especialista em desenvolvimento Oscar Coca, que chama Chapare de um "triângulo das Bermudas". Folhas de coca confiscadas pela polícia, que deveriam ser incineradas, são freqüentemente revendidas às máfias da droga.
Enquanto isso, o comércio da droga continua prosperando. Desde o início deste ano, a polícia antidrogas descobriu 339 laboratórios de cocaína em Chapare, e confiscou 250 quilos de drogas ilícitas. "Os transportadores da droga sequer resistem ao serem presos", conta o chefe de polícia René Salazar. "Eles sabem que na maioria dos casos serão libertados rapidamente". Os tribunais são lentos em julgar os casos, e o tráfico de drogas é tratado como uma pequena infração.
Os transportadores se dispõem a levar a droga - de ônibus, bicicleta ou táxi - por um punhado de dólares. O trabalho é bem mais lucrativo do que o plantio de frutas ou café. Os sinais das fracassadas políticas econômicas estão por toda parte: estruturas arruinadas, originalmente projetadas para serem mercados de hortifrutigranjeiros, e financiadas pela União Européia, ou plantações de abacaxi altamente subsidiadas, nas quais as frutas apodrecem nos pés porque os agricultores não conseguem encontrar compradores.
Funcionários de instituições estrangeiras de auxílio, muitos dos quais ganham salários enormes, são alvo da inveja e da raiva dos camponeses. "Os gringos se locupletam com o dinheiro da ajuda para o desenvolvimento", reclama a plantadora de coca Juana Quispe. "Mas nós nunca vemos esse dinheiro". Quispe, uma lenda viva na Bolívia, muitas vezes se juntou a Evo Morales durante demonstrações e bloqueios de estradas a fim de protestar contra as ações da polícia antidrogas. Ela e Morales são amigos há 14 anos.
Os soldados invadiram o barraco de Quispe na pequena aldeia de Chimoré dois anos atrás. Eles arrancaram os pés de coca no seu jardim, roubaram galinhas e molestaram a filha de Quispe. Um ativista seu amigo, o líder sindicalista Feliciano Mamani, foi torturado na base militar de Chimoré por ter supostamente fomentado sentimentos antimilitares entre os camponeses. Durante um protesto quatro anos atrás, Mamani foi baleado, e teve a tíbia fraturada. Ele alega que "agentes norte-americanos antidrogas" lideraram os ataques.
Agora as antigas vítimas dessas perseguições estão no poder na Bolívia. Quispe representa o partido governista socialista, o Movimento al Socialismo (MAS), no congresso boliviano. Mamani foi eleito prefeito de Villa Tunari, uma cidade de Chapare. Os funcionários estrangeiros das agências de auxílio foram expulsos, e as prefeituras locais estão atualmente administrando o dinheiro proveniente da ajuda externa. Como um próximo passo, os ex-ativistas Mamani e Quispe querem a retirada dos agentes norte-americanos antidrogas.
Mas essa é uma medida radical que nem mesmo o presidente Morales está muito disposto a tomar. Como presidente de um pobre país andino dependente de auxílio estrangeiro, Morales dificilmente sobreviveria a um confronto com os poderosos norte-americanos. Para evitar uma ruptura com os Estados Unidos, Morales prometeu publicamente respeitar todos os acordos internacionais relativos ao combate ao narcotráfico. Ele chegou até mesmo a tentar convencer a secretária de Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, sobre o caráter pacífico dos seus planos referentes às plantações de coca. Em um encontro na cidade chilena de Valparaiso, Morales ofertou a Rice um violão decorado com folhas de coca.
Até o momento, a sua estratégia parece estar funcionando. Mais de 70% dos bolivianos apóiam o novo presidente. No início de março, o Congresso aprovou o mais importante projeto político de Morales, uma nova constituição. Um conjunto influente de lideranças empresariais da província de Santa Cruz, um grupo que se opôs ferrenhamente a Morales durante a campanha eleitoral, está atualmente cortejando assiduamente o novo herói nacional.
A sua campanha contra a corrupção tem sido especialmente popular entre os cidadãos comuns. Morales reduziu pela metade o seu salário presidencial e conseguiu impor uma redução no salário dos parlamentares. Várias autoridades de alto escalão, acusadas de corruptas por Morales, foram demitidas.
Atualmente, a vida no palácio presidencial da Bolívia lembra aquela de uma comuna. O presidente, o vice-presidente e vários ministros moram todos no prédio, e as reuniões de gabinete muitas vezes têm início bem cedo, já às 5h. Embora Morales tenha vários filhos, ele não é casado, e a sua irmã geralmente o acompanha nas solenidades oficiais.
A empresária da coca Melby Paz também capitalizou a nova popularidade do presidente, exibindo uma enorme fotografia de Morales na sua loja em Cochabamba. Aparentemente, a fórmula funciona. "Desde que Evo assumiu a presidência, as minhas vendas de produtos de coca duplicaram", afirma Paz.