Dois olhares.
Enviado: 30 Mar 2006, 20:52
http://veja.abril.uol.com.br/220306/p_088.html
Salão de banquetes do Palácio de Buckingham, 1997. Circundado por Elizabeth II e pela rainha-mãe, o então presidente Fernando Henrique Cardoso ouve a rainha da Inglaterra elogiar o renascimento do Brasil – um país que deixara a condição de pária na comunidade internacional, graças às recentes e profundas reformas econômicas que possibilitaram a renegociação da dívida externa, criaram uma moeda forte, colocaram um ponto final na inflação galopante e tiraram milhões de cidadãos da pobreza absoluta. Depois do discurso de Elizabeth II, chega a vez de Fernando Henrique fazer o seu, tomando cuidado para que a condecoração real que atravessa seu peito numa faixa vermelha não caia sobre o texto que está lendo. O banquete segue no leito da formalidade, até que a rainha-mãe começa a fazer graça, quebrando por um momento a rigidez protocolar. Com a palavra, Fernando Henrique:
"Como presente oficial, eu lhe oferecera um pássaro de pedras brasileiras e bico prateado – esses discutíveis presentes que nossa avareza de meios impõe como se de preciosidades se tratassem. E ela se entusiasmou com o nome que atribuí ao pássaro. Perguntado sobre como se chamava, respondi de pronto, do fundo de minha ignorância:
– Jaburu, madame.
Ela repetia com delícia, trocando o 'u' por 'a', o nome daquele pássaro imaginário".
O episódio está narrado no décimo capítulo de A Arte da Política: a História que Vivi (Civilização Brasileira; 699 páginas; 70 reais), do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o lançamento mais esperado do ano, que chega às livrarias nesta terça-feira, dia 21. Trata-se, é evidente, de uma passagem absolutamente lateral num livro repleto de reminiscências, revelações e análises de um dos protagonistas mais importantes – se não o mais importante – da cena nacional no último quarto de século. Mas a historinha com a rainha-mãe foi escolhida para abrir esta reportagem por ser, além de curiosa, reveladora da personalidade de Fernando Henrique Cardoso. O ex-presidente é, sobretudo, um sedutor – e o que A Arte da Política mostra é exatamente isto: como seu autor fez uso dessa capacidade inata e lapidada na vida acadêmica e pública, para atrair eleitores, correligionários e adversários (nem todos, é verdade) para o caminho da razão. Pode-se apontar muitos defeitos e malfeitos em seus oito anos de governo, como esta revista (e este repórter) fez. Pode-se afirmar, com dados e estatísticas, que ele não realizou tudo a que se propôs. Pode-se jurar nunca mais dar um voto ao ex-presidente, seja por decepção, seja simplesmente por aquele mesmo cansaço que levou os atenienses a afastar Péricles do governo da cidade. Pouco importa. Resta o fato de que, nos anos FHC, o Brasil deixou para trás a improvisação na economia, começou a desvincular o conceito de Estado daquele de nação, integrou-se ao mercado mundial e traçou ao menos um esboço promissor de futuro (cabe à sociedade e ao governo completar o desenho). Para não falar do privilégio de ter um presidente com o savoir-faire de contar uma mentirinha simpática à rainha-mãe inglesa.
É a primeira vez que um ex-presidente brasileiro escreve um livro sobre o seu período de governo. Como o ex-presidente em questão é o sociólogo Fernando Henrique, o leitor ganha de brinde reflexões que se alternam com os fatos relatados. De certa maneira, é possível estabelecer um paralelo estrutural com O Príncipe, realização máxima do pensador italiano Nicolau Maquiavel, de quem Fernando Henrique é grande conhecedor. O autor de O Príncipe ilustra a teoria com exemplos históricos; o de A Arte da Política ilustra a história com a teoria. Ilustração, aqui, não tem o sentido prosaico de apêndice, e sim de elucidação – não apenas a dos motivos que o levaram a tomar certas decisões, entre as quais a de tecer alianças com setores associados ao fisiologismo (veja entrevista), como a de um sistema desordenado e confuso, o qual o autor define uma "contrafação do presidencialismo de coalizão". Para explicar o seu governo e ele próprio como político, Fernando Henrique recorre a pensadores como Platão, Giambattista Vico, Max Weber, Norberto Bobbio e, claro, Maquiavel. Por esse motivo, o de desejar ir além do factual, ele resistiu a chamar o livro de "memórias", apesar de também sê-lo.
Em que pese a ambição intelectual, A Arte da Política está longe de ser impenetrável. É legibilíssimo, graças também ao didatismo e à relativa parcimônia com que são citados filósofos e pensadores políticos – embora por vezes dê tédio por causa da preocupação em detalhar as composições e recomposições ministeriais e as realizações nas diversas áreas estatais. Esse pecado é desculpável: A Arte da Política quer-se documento, obra de referência e, óbvio, peça de defesa. Aliás, como tal, deverá ser um prato cheio tanto para adversários respeitáveis como para meros detratores do ex-presidente – aquele pessoal do "Delenda FHC", para usar a expressão do próprio Fernando Henrique. Na confecção do livro, o ex-presidente contou com o auxílio do jornalista Ricardo Setti, que foi editor de VEJA, diretor do Jornal do Brasil em São Paulo e de várias publicações da Editora Abril. Com a experiência acumulada em quarenta anos de profissão, Setti encarregou-se, entre outras coisas, de checar se todas as situações relevantes ocorridas nos anos FHC haviam sido abordadas de modo suficiente e de sugerir mudanças no texto que facilitassem a leitura ou avivassem mais o interesse do leitor. O livro estava inconcluso quando o jornalista começou a colaborar. "Foram cinco meses de um trabalho intenso e prazeroso. Eu e o presidente nos comunicávamos principalmente via e-mail, já que sua agenda continua a ser impressionante. Ele deve ter feito umas oito viagens internacionais durante esse período, sempre a trabalho. A salvação foi que FHC é ótimo de e-mail: responde rápido e com precisão", diz Setti.
Fabiano Accorsi
O jornalista Ricardo Setti: coordenador editorial do livro
Antes de adentrar o período presidencial, o livro detém-se brevemente na história da família de Fernando Henrique – cujo avô militar, por ocasião da proclamação da República, propôs fuzilar o imperador Pedro II, caso o monarca impusesse resistência à nova ordem. Um Cardoso radical, ora veja só. O ex-presidente relembra o início de sua carreira pública e os acontecimentos que o levaram a ser ministro da Fazenda de Itamar Franco e, em seguida, a candidatar-se à Presidência. Quando o livro chega à fase do Planalto, é exposta a voracidade de parlamentares e caciques partidários por cargos e verbas. Além disso, Fernando Henrique conta em pormenores a história da elaboração e implementação do Plano Real, que salvou a economia brasileira da hiperinflação e propiciou que o país entrasse nos eixos da modernidade, e como foram enfrentadas as quatro borrascas financeiras nas quais o Brasil quase naufragou – a do México, a da Ásia, a da Rússia e a causada pela proximidade da eleição de Lula. Uma das curiosidades dos capítulos sobre economia é que, diante das dúvidas sobre a eficácia do plano, Stanley Fischer, o então número 2 do Fundo Monetário Internacional (FMI), sugeriu que se fizesse um congelamento de preços no Brasil por dois a três meses. Nada mais heterodoxo e esquerdista.
Algumas revelações de sua trajetória e governo encontram-se nos excertos transcritos ao longo desta reportagem. Mas há muitas outras. Sobre Itamar Franco, o personagem mais citado no livro, Fernando Henrique conta, por exemplo, que ele apoiou sua candidatura à Presidência sem jamais terem falado sobre o assunto; que Itamar leu superficialmente a minuta da medida provisória que instituiu a URV, ponto de partida do Plano Real; e que o então presidente quase cancelou o acordo com a Bolívia para a construção do gasoduto que atravessa o território dos dois países. Itamar simplesmente não acreditava que a Bolívia tivesse gás suficiente para tanto. Há ex-presidentes e ex-presidentes, como se vê.
Na cena nacional, Fernando Henrique incorporou a passagem da causa da democracia, que motivou sua geração, para a da estabilização da economia, ainda não plenamente alcançada. Nessa transição de causas não excludentes, embaralharam-se posições ideológicas anacrônicas, com as quais ele teve de haver-se. Saiu-se bem, mas bastante chamuscado pelas denúncias dos que se viram derrotados nesse processo – ou de certa forma assimilados, quando se verifica a mudança ocorrida no PT. Fernando Henrique admite erros, mas não as desonestidades que lhe foram atribuídas. No livro, reafirma que seu governo não pagou a deputados para que votassem a favor da emenda da reeleição, uma das acusações mais graves que lhe foram dirigidas, e que o processo de privatização nada teve de "privataria". Sabe, no entanto, que não mudará convicções formadíssimas a respeito desses assuntos, como disse na entrevista a VEJA.
Nos últimos tempos, Fernando Henrique andou envolvido em outro projeto editorial: a publicação nos Estados Unidos de The Accidental President of Brazil (O Presidente Acidental do Brasil), que terá uma noite de autógrafos na Universidade Colúmbia, em Nova York, no próximo dia 27, e outra em Washington, no dia 30. A idéia de um livro destinado ao público americano surgiu no fim de 2003, durante um almoço num elegante restaurante nova-iorquino em que o editor Sérgio Machado, do Grupo Record, do qual faz parte a Civilização Brasileira, apresentou Fernando Henrique a Peter Osnos, na ocasião presidente da editora Public Affairs. O objetivo era vender os direitos de tradução de A Arte da Política, que ainda estava por ser escrito. Mas Osnos encantou-se com um projeto diferente – um livro destinado especialmente ao público americano. "Ele propôs que Fernando Henrique mostrasse ao leitor, por meio de uma biografia, como funciona uma nação grande e complexa como o Brasil", diz Machado. O que o convenceu do interesse da obra foi um episódio com o presidente americano George W. Bush e o venezuelano Hugo Chávez, também descrito no livro brasileiro. The Accidental President contou com um ghostwriter, Brian Winter, jornalista da agência Reuters no México e especialista em América Latina. Osnos acreditava que Fernando Henrique deveria ter um interlocutor com alguma familiaridade com o Brasil, mas não demais, de maneira a ser capaz de formular as perguntas que um americano médio poderia ter na cabeça a respeito do país.
A história com Bush e Chávez que cativou o editor Peter Osnos é das mais divertidas de A Arte da Política. Ei-la contada por Fernando Henrique:
"Às vésperas de me receber na Casa Branca, o Presidente Bush dissera à imprensa que gostaria de olhar-me 'olho no olho', como é de seu estilo. Encontrei-o em seu gabinete de trabalho, o Oval Office, local que conhecia do tempo de Clinton. Ele me esperava em pé, cumprimentou-me e mostrou-se muito afável, embora sua linguagem corporal – a forma um tanto rígida de movimentar-se e de andar, e algo nos olhos, talvez um leve estrabismo –, lhe confiram, à primeira impressão, um ar de certa arrogância, de certo distanciamento. (...)
Mostrou-se um tanto ansioso com a reunião de Québec. Seria seu début internacional e tinha preocupações de que o presidente da Venezuela lhe pudesse ser hostil. Disse-lhe que mantinha boas relações com Hugo Chávez e que não acreditava que ele tivesse tal propósito. Em todo caso, acrescentei, eu teria um encontro em Brasília com o Presidente Chávez e lhe faria a ponderação.
Cumpri o prometido. Expus a Chávez a opinião de que, se ele fosse cortês, desarmaria o interlocutor, mesmo porque não acreditava que o Presidente da Venezuela viesse a ser agressivo com o Presidente norte-americano. Chávez respondeu-me, sorrindo matreiro:
– Você me conhece. Eu sou ardoroso. Quando, nas reuniões da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), começo a me entusiasmar, o sultão de Qatar, que é meu amigo, tem uma combinação comigo: olha para mim com as mãos postas perto do rosto, em forma de oração, e eu modero minha fala, antes de proclamar a República nas monarquias árabes.
E acrescentou:
– Vamos fazer o mesmo em Québec.
Na cúpula hemisférica, coube-me fazer o discurso de abertura. Transmiti uma mensagem clara e firme: 'A Alca será bem-vinda se a sua criação for um passo para dar acesso aos mercados mais dinâmicos (...).'
Quando terminei o discurso sob os aplausos dos mais de mil presentes, Hugo Chávez saltou da fila em que se encontrava atrás de mim, aproximou-se da cadeira para onde eu voltava para sentar-me e, com as mãos em sentido de oração, me saudou efusivamente. Nós, latino-americanos, podemos até não ser bons negociadores, mas não perdemos o senso de humor."
Ao final do livro, conclui-se que Fernando Henrique soube combinar a arte da política com outra arte difícil e até certo ponto inata – a de viver. Joie-de-vivre, como diria ele, que gosta de brincar que "tem o pé na cozinha, sim... mas francesa". Seus aliados certamente incluirão isso no rol de virtudes do melhor presidente que o Brasil já teve. Quanto a seus adversários, não há como deixar de reconhecer: essa é uma qualidade do melhor ex-presidente que o país já produziu.
http://cartamaior.uol.com.br/templates/ ... na_id=3021
Nem veja. Nem leia
Se você quiser saber tudo sobre o governo FHC, não leia o livro de auto-ajuda “A arte da política”, assinado pelo ex-presidente. Não leia, porque ali nada se explica sobre as privatizações, conluio com a grande mídia, a explosão da dívida pública e aprovação da emenda da reeleição.
Emir Sader
Se você quiser saber como FHC foi fabricado como candidato para o Plano Real e não o Plano para o candidato;
Se você quiser saber como a inflação foi transformada na multiplicação da dívida pública em 11 vezes, pelo candidato que dizia que “o Estado gasta muito, o Estado gasta mal”, mas entregou o Estado falido a seu sucessor;
Se você quiser saber como o presidente dos EUA mandou seu assessor para apoiar a candidatura de FHC e ganhou, de quebra, o Sivam, para uma empresa financiadora de sua campanha;
Se você quiser saber como parlamentares foram comprados para que a Constituição fosse reformada e a emenda da reeleição, reformada;
Se você quiser saber como o conluio entre a grade mídia privada e o governo de FHC impediu que houvesse CPI da compra de votos;
Se você quiser saber como o país foi quebrado três vezes durante o governo de FHC, ao seguir rigorosamente as normas do FMI;
Se você quiser saber quanto e como se multiplicaram fortunas com a privatização das empresas públicas – o maior negócio de corrupção da história do Brasil;
Se você quiser saber quanto e como se multiplicaram fortunas com a brutal desvalorização da moeda em janeiro de 1999;
Se você quiser saber como e por que fracassou o governo de FHC, derrotado estrepitosamente nas eleições para sua sucessão;
Se você quiser saber estas e outras verdades fundamentais para entender o Brasil contemporâneo e por que o ex-presidente FHC é o mais rejeitado de todos os nomes aventados como candidatos à presidência da República;
Se você quiser saber por que seus correligionários disseram a FHC que calasse a boca, porque suas intervenções desastrosas ajudavam a recuperação eleitoral de Lula;
Se você quiser saber por que FHC não conseguiu nenhum cargo internacional – como era seu sonho – e tem que se contentar com o luxuoso escritório no Vale do Anhangabaú, montado por grandes empresários paulistas, em agradecimento pelo que lucraram durante seu governo;
Se você quiser saber por que FHC se tornou tão rancoroso diante do sucesso de Lula e de sua política externa;
Se você quiser saber dos vínculos sorrateiros da “Veja” com o ex-presidente, que deram – na única resenha da imprensa – capa do seu livro, apresentada por um escriba de plantão;
Se você quiser saber tudo isso e muito mais sobre o governo FHC, não leia o livro de auto-ajuda (para ele levantar sua decaída auto-estima), recém publicado pelo ex-presidente, decadente e marginalizado.
Não leia, porque nada disso está ali, senão autobajulações, autojustificativas, perfeitamente adequadas a que se esqueça antes mesmo de ler. Nem veja, nem leia.
Emir Sader é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de “A vingança da História".
Salão de banquetes do Palácio de Buckingham, 1997. Circundado por Elizabeth II e pela rainha-mãe, o então presidente Fernando Henrique Cardoso ouve a rainha da Inglaterra elogiar o renascimento do Brasil – um país que deixara a condição de pária na comunidade internacional, graças às recentes e profundas reformas econômicas que possibilitaram a renegociação da dívida externa, criaram uma moeda forte, colocaram um ponto final na inflação galopante e tiraram milhões de cidadãos da pobreza absoluta. Depois do discurso de Elizabeth II, chega a vez de Fernando Henrique fazer o seu, tomando cuidado para que a condecoração real que atravessa seu peito numa faixa vermelha não caia sobre o texto que está lendo. O banquete segue no leito da formalidade, até que a rainha-mãe começa a fazer graça, quebrando por um momento a rigidez protocolar. Com a palavra, Fernando Henrique:
"Como presente oficial, eu lhe oferecera um pássaro de pedras brasileiras e bico prateado – esses discutíveis presentes que nossa avareza de meios impõe como se de preciosidades se tratassem. E ela se entusiasmou com o nome que atribuí ao pássaro. Perguntado sobre como se chamava, respondi de pronto, do fundo de minha ignorância:
– Jaburu, madame.
Ela repetia com delícia, trocando o 'u' por 'a', o nome daquele pássaro imaginário".
O episódio está narrado no décimo capítulo de A Arte da Política: a História que Vivi (Civilização Brasileira; 699 páginas; 70 reais), do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o lançamento mais esperado do ano, que chega às livrarias nesta terça-feira, dia 21. Trata-se, é evidente, de uma passagem absolutamente lateral num livro repleto de reminiscências, revelações e análises de um dos protagonistas mais importantes – se não o mais importante – da cena nacional no último quarto de século. Mas a historinha com a rainha-mãe foi escolhida para abrir esta reportagem por ser, além de curiosa, reveladora da personalidade de Fernando Henrique Cardoso. O ex-presidente é, sobretudo, um sedutor – e o que A Arte da Política mostra é exatamente isto: como seu autor fez uso dessa capacidade inata e lapidada na vida acadêmica e pública, para atrair eleitores, correligionários e adversários (nem todos, é verdade) para o caminho da razão. Pode-se apontar muitos defeitos e malfeitos em seus oito anos de governo, como esta revista (e este repórter) fez. Pode-se afirmar, com dados e estatísticas, que ele não realizou tudo a que se propôs. Pode-se jurar nunca mais dar um voto ao ex-presidente, seja por decepção, seja simplesmente por aquele mesmo cansaço que levou os atenienses a afastar Péricles do governo da cidade. Pouco importa. Resta o fato de que, nos anos FHC, o Brasil deixou para trás a improvisação na economia, começou a desvincular o conceito de Estado daquele de nação, integrou-se ao mercado mundial e traçou ao menos um esboço promissor de futuro (cabe à sociedade e ao governo completar o desenho). Para não falar do privilégio de ter um presidente com o savoir-faire de contar uma mentirinha simpática à rainha-mãe inglesa.
É a primeira vez que um ex-presidente brasileiro escreve um livro sobre o seu período de governo. Como o ex-presidente em questão é o sociólogo Fernando Henrique, o leitor ganha de brinde reflexões que se alternam com os fatos relatados. De certa maneira, é possível estabelecer um paralelo estrutural com O Príncipe, realização máxima do pensador italiano Nicolau Maquiavel, de quem Fernando Henrique é grande conhecedor. O autor de O Príncipe ilustra a teoria com exemplos históricos; o de A Arte da Política ilustra a história com a teoria. Ilustração, aqui, não tem o sentido prosaico de apêndice, e sim de elucidação – não apenas a dos motivos que o levaram a tomar certas decisões, entre as quais a de tecer alianças com setores associados ao fisiologismo (veja entrevista), como a de um sistema desordenado e confuso, o qual o autor define uma "contrafação do presidencialismo de coalizão". Para explicar o seu governo e ele próprio como político, Fernando Henrique recorre a pensadores como Platão, Giambattista Vico, Max Weber, Norberto Bobbio e, claro, Maquiavel. Por esse motivo, o de desejar ir além do factual, ele resistiu a chamar o livro de "memórias", apesar de também sê-lo.
Em que pese a ambição intelectual, A Arte da Política está longe de ser impenetrável. É legibilíssimo, graças também ao didatismo e à relativa parcimônia com que são citados filósofos e pensadores políticos – embora por vezes dê tédio por causa da preocupação em detalhar as composições e recomposições ministeriais e as realizações nas diversas áreas estatais. Esse pecado é desculpável: A Arte da Política quer-se documento, obra de referência e, óbvio, peça de defesa. Aliás, como tal, deverá ser um prato cheio tanto para adversários respeitáveis como para meros detratores do ex-presidente – aquele pessoal do "Delenda FHC", para usar a expressão do próprio Fernando Henrique. Na confecção do livro, o ex-presidente contou com o auxílio do jornalista Ricardo Setti, que foi editor de VEJA, diretor do Jornal do Brasil em São Paulo e de várias publicações da Editora Abril. Com a experiência acumulada em quarenta anos de profissão, Setti encarregou-se, entre outras coisas, de checar se todas as situações relevantes ocorridas nos anos FHC haviam sido abordadas de modo suficiente e de sugerir mudanças no texto que facilitassem a leitura ou avivassem mais o interesse do leitor. O livro estava inconcluso quando o jornalista começou a colaborar. "Foram cinco meses de um trabalho intenso e prazeroso. Eu e o presidente nos comunicávamos principalmente via e-mail, já que sua agenda continua a ser impressionante. Ele deve ter feito umas oito viagens internacionais durante esse período, sempre a trabalho. A salvação foi que FHC é ótimo de e-mail: responde rápido e com precisão", diz Setti.
Fabiano Accorsi
O jornalista Ricardo Setti: coordenador editorial do livro
Antes de adentrar o período presidencial, o livro detém-se brevemente na história da família de Fernando Henrique – cujo avô militar, por ocasião da proclamação da República, propôs fuzilar o imperador Pedro II, caso o monarca impusesse resistência à nova ordem. Um Cardoso radical, ora veja só. O ex-presidente relembra o início de sua carreira pública e os acontecimentos que o levaram a ser ministro da Fazenda de Itamar Franco e, em seguida, a candidatar-se à Presidência. Quando o livro chega à fase do Planalto, é exposta a voracidade de parlamentares e caciques partidários por cargos e verbas. Além disso, Fernando Henrique conta em pormenores a história da elaboração e implementação do Plano Real, que salvou a economia brasileira da hiperinflação e propiciou que o país entrasse nos eixos da modernidade, e como foram enfrentadas as quatro borrascas financeiras nas quais o Brasil quase naufragou – a do México, a da Ásia, a da Rússia e a causada pela proximidade da eleição de Lula. Uma das curiosidades dos capítulos sobre economia é que, diante das dúvidas sobre a eficácia do plano, Stanley Fischer, o então número 2 do Fundo Monetário Internacional (FMI), sugeriu que se fizesse um congelamento de preços no Brasil por dois a três meses. Nada mais heterodoxo e esquerdista.
Algumas revelações de sua trajetória e governo encontram-se nos excertos transcritos ao longo desta reportagem. Mas há muitas outras. Sobre Itamar Franco, o personagem mais citado no livro, Fernando Henrique conta, por exemplo, que ele apoiou sua candidatura à Presidência sem jamais terem falado sobre o assunto; que Itamar leu superficialmente a minuta da medida provisória que instituiu a URV, ponto de partida do Plano Real; e que o então presidente quase cancelou o acordo com a Bolívia para a construção do gasoduto que atravessa o território dos dois países. Itamar simplesmente não acreditava que a Bolívia tivesse gás suficiente para tanto. Há ex-presidentes e ex-presidentes, como se vê.
Na cena nacional, Fernando Henrique incorporou a passagem da causa da democracia, que motivou sua geração, para a da estabilização da economia, ainda não plenamente alcançada. Nessa transição de causas não excludentes, embaralharam-se posições ideológicas anacrônicas, com as quais ele teve de haver-se. Saiu-se bem, mas bastante chamuscado pelas denúncias dos que se viram derrotados nesse processo – ou de certa forma assimilados, quando se verifica a mudança ocorrida no PT. Fernando Henrique admite erros, mas não as desonestidades que lhe foram atribuídas. No livro, reafirma que seu governo não pagou a deputados para que votassem a favor da emenda da reeleição, uma das acusações mais graves que lhe foram dirigidas, e que o processo de privatização nada teve de "privataria". Sabe, no entanto, que não mudará convicções formadíssimas a respeito desses assuntos, como disse na entrevista a VEJA.
Nos últimos tempos, Fernando Henrique andou envolvido em outro projeto editorial: a publicação nos Estados Unidos de The Accidental President of Brazil (O Presidente Acidental do Brasil), que terá uma noite de autógrafos na Universidade Colúmbia, em Nova York, no próximo dia 27, e outra em Washington, no dia 30. A idéia de um livro destinado ao público americano surgiu no fim de 2003, durante um almoço num elegante restaurante nova-iorquino em que o editor Sérgio Machado, do Grupo Record, do qual faz parte a Civilização Brasileira, apresentou Fernando Henrique a Peter Osnos, na ocasião presidente da editora Public Affairs. O objetivo era vender os direitos de tradução de A Arte da Política, que ainda estava por ser escrito. Mas Osnos encantou-se com um projeto diferente – um livro destinado especialmente ao público americano. "Ele propôs que Fernando Henrique mostrasse ao leitor, por meio de uma biografia, como funciona uma nação grande e complexa como o Brasil", diz Machado. O que o convenceu do interesse da obra foi um episódio com o presidente americano George W. Bush e o venezuelano Hugo Chávez, também descrito no livro brasileiro. The Accidental President contou com um ghostwriter, Brian Winter, jornalista da agência Reuters no México e especialista em América Latina. Osnos acreditava que Fernando Henrique deveria ter um interlocutor com alguma familiaridade com o Brasil, mas não demais, de maneira a ser capaz de formular as perguntas que um americano médio poderia ter na cabeça a respeito do país.
A história com Bush e Chávez que cativou o editor Peter Osnos é das mais divertidas de A Arte da Política. Ei-la contada por Fernando Henrique:
"Às vésperas de me receber na Casa Branca, o Presidente Bush dissera à imprensa que gostaria de olhar-me 'olho no olho', como é de seu estilo. Encontrei-o em seu gabinete de trabalho, o Oval Office, local que conhecia do tempo de Clinton. Ele me esperava em pé, cumprimentou-me e mostrou-se muito afável, embora sua linguagem corporal – a forma um tanto rígida de movimentar-se e de andar, e algo nos olhos, talvez um leve estrabismo –, lhe confiram, à primeira impressão, um ar de certa arrogância, de certo distanciamento. (...)
Mostrou-se um tanto ansioso com a reunião de Québec. Seria seu début internacional e tinha preocupações de que o presidente da Venezuela lhe pudesse ser hostil. Disse-lhe que mantinha boas relações com Hugo Chávez e que não acreditava que ele tivesse tal propósito. Em todo caso, acrescentei, eu teria um encontro em Brasília com o Presidente Chávez e lhe faria a ponderação.
Cumpri o prometido. Expus a Chávez a opinião de que, se ele fosse cortês, desarmaria o interlocutor, mesmo porque não acreditava que o Presidente da Venezuela viesse a ser agressivo com o Presidente norte-americano. Chávez respondeu-me, sorrindo matreiro:
– Você me conhece. Eu sou ardoroso. Quando, nas reuniões da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), começo a me entusiasmar, o sultão de Qatar, que é meu amigo, tem uma combinação comigo: olha para mim com as mãos postas perto do rosto, em forma de oração, e eu modero minha fala, antes de proclamar a República nas monarquias árabes.
E acrescentou:
– Vamos fazer o mesmo em Québec.
Na cúpula hemisférica, coube-me fazer o discurso de abertura. Transmiti uma mensagem clara e firme: 'A Alca será bem-vinda se a sua criação for um passo para dar acesso aos mercados mais dinâmicos (...).'
Quando terminei o discurso sob os aplausos dos mais de mil presentes, Hugo Chávez saltou da fila em que se encontrava atrás de mim, aproximou-se da cadeira para onde eu voltava para sentar-me e, com as mãos em sentido de oração, me saudou efusivamente. Nós, latino-americanos, podemos até não ser bons negociadores, mas não perdemos o senso de humor."
Ao final do livro, conclui-se que Fernando Henrique soube combinar a arte da política com outra arte difícil e até certo ponto inata – a de viver. Joie-de-vivre, como diria ele, que gosta de brincar que "tem o pé na cozinha, sim... mas francesa". Seus aliados certamente incluirão isso no rol de virtudes do melhor presidente que o Brasil já teve. Quanto a seus adversários, não há como deixar de reconhecer: essa é uma qualidade do melhor ex-presidente que o país já produziu.
http://cartamaior.uol.com.br/templates/ ... na_id=3021
Nem veja. Nem leia
Se você quiser saber tudo sobre o governo FHC, não leia o livro de auto-ajuda “A arte da política”, assinado pelo ex-presidente. Não leia, porque ali nada se explica sobre as privatizações, conluio com a grande mídia, a explosão da dívida pública e aprovação da emenda da reeleição.
Emir Sader
Se você quiser saber como FHC foi fabricado como candidato para o Plano Real e não o Plano para o candidato;
Se você quiser saber como a inflação foi transformada na multiplicação da dívida pública em 11 vezes, pelo candidato que dizia que “o Estado gasta muito, o Estado gasta mal”, mas entregou o Estado falido a seu sucessor;
Se você quiser saber como o presidente dos EUA mandou seu assessor para apoiar a candidatura de FHC e ganhou, de quebra, o Sivam, para uma empresa financiadora de sua campanha;
Se você quiser saber como parlamentares foram comprados para que a Constituição fosse reformada e a emenda da reeleição, reformada;
Se você quiser saber como o conluio entre a grade mídia privada e o governo de FHC impediu que houvesse CPI da compra de votos;
Se você quiser saber como o país foi quebrado três vezes durante o governo de FHC, ao seguir rigorosamente as normas do FMI;
Se você quiser saber quanto e como se multiplicaram fortunas com a privatização das empresas públicas – o maior negócio de corrupção da história do Brasil;
Se você quiser saber quanto e como se multiplicaram fortunas com a brutal desvalorização da moeda em janeiro de 1999;
Se você quiser saber como e por que fracassou o governo de FHC, derrotado estrepitosamente nas eleições para sua sucessão;
Se você quiser saber estas e outras verdades fundamentais para entender o Brasil contemporâneo e por que o ex-presidente FHC é o mais rejeitado de todos os nomes aventados como candidatos à presidência da República;
Se você quiser saber por que seus correligionários disseram a FHC que calasse a boca, porque suas intervenções desastrosas ajudavam a recuperação eleitoral de Lula;
Se você quiser saber por que FHC não conseguiu nenhum cargo internacional – como era seu sonho – e tem que se contentar com o luxuoso escritório no Vale do Anhangabaú, montado por grandes empresários paulistas, em agradecimento pelo que lucraram durante seu governo;
Se você quiser saber por que FHC se tornou tão rancoroso diante do sucesso de Lula e de sua política externa;
Se você quiser saber dos vínculos sorrateiros da “Veja” com o ex-presidente, que deram – na única resenha da imprensa – capa do seu livro, apresentada por um escriba de plantão;
Se você quiser saber tudo isso e muito mais sobre o governo FHC, não leia o livro de auto-ajuda (para ele levantar sua decaída auto-estima), recém publicado pelo ex-presidente, decadente e marginalizado.
Não leia, porque nada disso está ali, senão autobajulações, autojustificativas, perfeitamente adequadas a que se esqueça antes mesmo de ler. Nem veja, nem leia.
Emir Sader é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de “A vingança da História".