Sociedade secreta.
Enviado: 31 Mar 2006, 13:00
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/ ... 2u113.jhtm
31/03/2006
Uma comunidade de fé e medo
Matthias Gebauer em Cabul, Afeganistão
Os afegãos convertidos ao cristianismo levam vidas perigosas e devem manter sua fé em segredo para evitar a perserguição da polícia, dos muçulmanos ou mesmo de seus vizinhos. Os membros dessa sociedade secreta precisam estar constantemente olhando por cima dos ombros.
Hashim Kabar*, 36, está nervoso. Ele se remexe na cadeira de plástico em seu pequeno escritório, olhando repetidamente para o relógio. Seu telefone celular toca sem parar e a cada poucos minutos ele se levanta e vai até a porta do pequeno prédio. "Está tudo bem?", pergunta ao guarda armado agachado junto à pesada porta metálica com uma pequena fenda por onde ele pode espiar. O guarda faz um sinal e Kabar volta. "Não tenho uma boa sensação sobre isso hoje", ele diz, esfregando os olhos. "Algo me diz que vamos ter uma visita."
É difícil arranjar encontros com pessoas como Kabar. Várias vezes ele adiou o compromisso, depois pediu para mudar o local. Finalmente o encontro ocorre em seu escritório. Nele, há diversas brochuras e um computador zumbe ao fundo, mas nada indicaria o tema da conversa. Não há crucifixos na parede, nem Bíblias nas prateleiras. Qualquer coisa que pudesse identificá-lo como cristão foi escondida, por medo. Ele teme que o que aconteceu com Abdul Rahman, outro convertido ao cristianismo, possa acontecer com ele.
O caso de Rahman serve como prova para os cristãos afegãos de que sua vida corre extremo perigo, simplesmente por causa de sua crença. Apesar de a pressão internacional ter evitado que Rahman fosse condenado e talvez executado pela justiça afegã, sua história ilustra a extrema tensão que os que se afastam do islamismo no Afeganistão experimentam todos os dias.
"Devemos reconhecer que a liberdade religiosa, como é prometida pela Constituição afegã, não existe", disse Kabar, com tristeza. "Mas talvez seja bom que agora a comunidade internacional esteja ciente disso."
Perseguição dos taliban
Kabar se converteu ao cristianismo 20 anos atrás, quando isso não era um tabu como hoje. "Havia muitas igrejas, tanto em Cabul como no interior", ele diz. "Na época, as duas religiões coexistiam quase pacificamente." Mas tudo isso mudou quando os taliban chegaram ao poder, em meados da década de 90. O líder supremo taliban , mulá Omar, ordenou que seus homens arrasassem as igrejas, linchassem os afegãos cristãos e matassem ou expulsassem os estrangeiros que seguiam Jesus Cristo.
Muitos amigos de Kabar perderam a vida nesse período. "Eles torturavam os prisioneiros até fazê-los dizer os nomes de outros cristãos. Então os taliban os matavam e saíam em busca de novas vítimas." Como ele mesmo sobreviveu, não sabe. Foi preso duas vezes e interrogado durante horas, mas seus perseguidores não encontraram provas. "Eu conheço de cor os suras e as orações do Corão. Então fingi ser um bom muçulmano", ele diz, com certo orgulho na voz.
Mas o desaparecimento dos taliban não fez muita diferença para pessoas como Kabar. Os convertidos continuam sendo caçados, atirados na prisão ou até mortos por seus vizinhos. O Ocidente não tinha grande consciência da situação, e foi só por coincidência que o caso de Rahman chamou a atenção internacional. A Constituição afegã de 2004, que garante a liberdade religiosa, tem pouca utilidade para os cristãos. "Muitos no poder judiciário são imãs ou clérigos que têm pouco interesse pela Constituição", disse Kabar.
Jogo de esconder
Kabar é obrigado a renunciar a sua identidade todos os dias. Existe um nome islâmico em seu cartão de visita, embora em particular ele use o nome de um dos apóstolos. Somente sua família e os amigos mais próximos conhecem seu segredo. Às vezes, ele diz, precisa agir como se estivesse orando para Alá.
"Quando parceiros comerciais vêm à minha casa e de repente querem orar, eu tenho de acompanhá-los", ele diz, acrescentando que espera que seu Deus entenda.
Ninguém sabe quantos afegãos convertidos existem realmente. Como não há igrejas, também não há registros. Tudo é realizado em segredo; só os cristãos conhecem outros cristãos. Kabar diz que conhece algumas centenas em Cabul e em muitas outras cidades do país, estimando que haja provavelmente entre mil e 2 mil pessoas da fé cristã no Afeganistão, contra uma maioria muçulmana de quase 20 milhões. Os sites cristãos na web estimam esse número em 10 mil, que parece exagerado.
Até estrangeiros cristãos no Afeganistão sentem a opressão exercida pela sociedade islâmica. Enquanto os cristãos em Cabul, que vêm na maioria das Filipinas, podem realizar missas, eles têm de fazê-lo em segredo. O chefe de uma pequena congregação estrangeira, um oftalmologista americano, não quis falar sobre o assunto na semana passada. Grupos cristãos são muitas vezes suspeitos de missionários, portanto é melhor manter um perfil discreto. Sua igreja é completamente irreconhecível, a não ser pelo alto-relevo de um peixe no muro externo.
A perseguição e o constante perigo transformaram a comunidade de convertidos afegãos em uma organização subterrânea muito unida. Ironicamente, a opressão reforçou a fé de muitos.
Nada pode acontecer abertamente, e Kabar e seus correligionários realizam os serviços religiosos em dias diferentes da semana. "Seria perigoso demais fazer isso aos domingos, porque seria fácil eles nos observarem." Os convertidos são contatados pouco antes de um serviço, muitas vezes por mensagens de texto de aspecto inocente pelos telefones celulares. "Vamos tomar chá às 11 horas", é uma que Kabar mostra.
O local dos serviços também muda constantemente, e sempre são realizados em residências particulares, onde tudo tem de ser preparado com antecedência.
Os empregados da casa devem ter saído; os vizinhos não devem notar nada; e tudo precisa ter 100% de confiança de todos os outros. É perigoso até ter uma Bíblia na maioria dos serviços, diz Kabar, que sabe as orações de cor. A polícia vasculhou sua casa três vezes, mas não encontrou nada recriminador.
"Eles sabem que sou cristão", diz. "Mas não dou qualquer motivo para que me levem a julgamento."
Embora o Afeganistão tenha encerrado o caso contra Abdul Rahman, isso não é de grande conforto para Kabar. Ele e seus amigos temem que a raiva dos islâmicos pela libertação de Rahman possa levá-los a assumir as coisas em suas próprias mãos e reagir com brutalidade ainda maior contra os convertidos. "A libertação de Rahman foi uma boa coisa", ele diz. "Mas a comunidade internacional precisa manter os olhos abertos."
Segundo Kabar, a pior coisa seria se a solução do caso deixar a impressão de que agora tudo está bem para os convertidos que vivem no Afeganistão. Se isso acontecer, ele diz, o caso seria mais prejudicial que benéfico. "Vamos manter nossa fé", ele acrescenta ao partir. "Qualquer tipo de apoio nos ajudaria muito."
* Devido ao perigo de perseguição, o nome foi trocado.
31/03/2006
Uma comunidade de fé e medo
Matthias Gebauer em Cabul, Afeganistão
Os afegãos convertidos ao cristianismo levam vidas perigosas e devem manter sua fé em segredo para evitar a perserguição da polícia, dos muçulmanos ou mesmo de seus vizinhos. Os membros dessa sociedade secreta precisam estar constantemente olhando por cima dos ombros.
Hashim Kabar*, 36, está nervoso. Ele se remexe na cadeira de plástico em seu pequeno escritório, olhando repetidamente para o relógio. Seu telefone celular toca sem parar e a cada poucos minutos ele se levanta e vai até a porta do pequeno prédio. "Está tudo bem?", pergunta ao guarda armado agachado junto à pesada porta metálica com uma pequena fenda por onde ele pode espiar. O guarda faz um sinal e Kabar volta. "Não tenho uma boa sensação sobre isso hoje", ele diz, esfregando os olhos. "Algo me diz que vamos ter uma visita."
É difícil arranjar encontros com pessoas como Kabar. Várias vezes ele adiou o compromisso, depois pediu para mudar o local. Finalmente o encontro ocorre em seu escritório. Nele, há diversas brochuras e um computador zumbe ao fundo, mas nada indicaria o tema da conversa. Não há crucifixos na parede, nem Bíblias nas prateleiras. Qualquer coisa que pudesse identificá-lo como cristão foi escondida, por medo. Ele teme que o que aconteceu com Abdul Rahman, outro convertido ao cristianismo, possa acontecer com ele.
O caso de Rahman serve como prova para os cristãos afegãos de que sua vida corre extremo perigo, simplesmente por causa de sua crença. Apesar de a pressão internacional ter evitado que Rahman fosse condenado e talvez executado pela justiça afegã, sua história ilustra a extrema tensão que os que se afastam do islamismo no Afeganistão experimentam todos os dias.
"Devemos reconhecer que a liberdade religiosa, como é prometida pela Constituição afegã, não existe", disse Kabar, com tristeza. "Mas talvez seja bom que agora a comunidade internacional esteja ciente disso."
Perseguição dos taliban
Kabar se converteu ao cristianismo 20 anos atrás, quando isso não era um tabu como hoje. "Havia muitas igrejas, tanto em Cabul como no interior", ele diz. "Na época, as duas religiões coexistiam quase pacificamente." Mas tudo isso mudou quando os taliban chegaram ao poder, em meados da década de 90. O líder supremo taliban , mulá Omar, ordenou que seus homens arrasassem as igrejas, linchassem os afegãos cristãos e matassem ou expulsassem os estrangeiros que seguiam Jesus Cristo.
Muitos amigos de Kabar perderam a vida nesse período. "Eles torturavam os prisioneiros até fazê-los dizer os nomes de outros cristãos. Então os taliban os matavam e saíam em busca de novas vítimas." Como ele mesmo sobreviveu, não sabe. Foi preso duas vezes e interrogado durante horas, mas seus perseguidores não encontraram provas. "Eu conheço de cor os suras e as orações do Corão. Então fingi ser um bom muçulmano", ele diz, com certo orgulho na voz.
Mas o desaparecimento dos taliban não fez muita diferença para pessoas como Kabar. Os convertidos continuam sendo caçados, atirados na prisão ou até mortos por seus vizinhos. O Ocidente não tinha grande consciência da situação, e foi só por coincidência que o caso de Rahman chamou a atenção internacional. A Constituição afegã de 2004, que garante a liberdade religiosa, tem pouca utilidade para os cristãos. "Muitos no poder judiciário são imãs ou clérigos que têm pouco interesse pela Constituição", disse Kabar.
Jogo de esconder
Kabar é obrigado a renunciar a sua identidade todos os dias. Existe um nome islâmico em seu cartão de visita, embora em particular ele use o nome de um dos apóstolos. Somente sua família e os amigos mais próximos conhecem seu segredo. Às vezes, ele diz, precisa agir como se estivesse orando para Alá.
"Quando parceiros comerciais vêm à minha casa e de repente querem orar, eu tenho de acompanhá-los", ele diz, acrescentando que espera que seu Deus entenda.
Ninguém sabe quantos afegãos convertidos existem realmente. Como não há igrejas, também não há registros. Tudo é realizado em segredo; só os cristãos conhecem outros cristãos. Kabar diz que conhece algumas centenas em Cabul e em muitas outras cidades do país, estimando que haja provavelmente entre mil e 2 mil pessoas da fé cristã no Afeganistão, contra uma maioria muçulmana de quase 20 milhões. Os sites cristãos na web estimam esse número em 10 mil, que parece exagerado.
Até estrangeiros cristãos no Afeganistão sentem a opressão exercida pela sociedade islâmica. Enquanto os cristãos em Cabul, que vêm na maioria das Filipinas, podem realizar missas, eles têm de fazê-lo em segredo. O chefe de uma pequena congregação estrangeira, um oftalmologista americano, não quis falar sobre o assunto na semana passada. Grupos cristãos são muitas vezes suspeitos de missionários, portanto é melhor manter um perfil discreto. Sua igreja é completamente irreconhecível, a não ser pelo alto-relevo de um peixe no muro externo.
A perseguição e o constante perigo transformaram a comunidade de convertidos afegãos em uma organização subterrânea muito unida. Ironicamente, a opressão reforçou a fé de muitos.
Nada pode acontecer abertamente, e Kabar e seus correligionários realizam os serviços religiosos em dias diferentes da semana. "Seria perigoso demais fazer isso aos domingos, porque seria fácil eles nos observarem." Os convertidos são contatados pouco antes de um serviço, muitas vezes por mensagens de texto de aspecto inocente pelos telefones celulares. "Vamos tomar chá às 11 horas", é uma que Kabar mostra.
O local dos serviços também muda constantemente, e sempre são realizados em residências particulares, onde tudo tem de ser preparado com antecedência.
Os empregados da casa devem ter saído; os vizinhos não devem notar nada; e tudo precisa ter 100% de confiança de todos os outros. É perigoso até ter uma Bíblia na maioria dos serviços, diz Kabar, que sabe as orações de cor. A polícia vasculhou sua casa três vezes, mas não encontrou nada recriminador.
"Eles sabem que sou cristão", diz. "Mas não dou qualquer motivo para que me levem a julgamento."
Embora o Afeganistão tenha encerrado o caso contra Abdul Rahman, isso não é de grande conforto para Kabar. Ele e seus amigos temem que a raiva dos islâmicos pela libertação de Rahman possa levá-los a assumir as coisas em suas próprias mãos e reagir com brutalidade ainda maior contra os convertidos. "A libertação de Rahman foi uma boa coisa", ele diz. "Mas a comunidade internacional precisa manter os olhos abertos."
Segundo Kabar, a pior coisa seria se a solução do caso deixar a impressão de que agora tudo está bem para os convertidos que vivem no Afeganistão. Se isso acontecer, ele diz, o caso seria mais prejudicial que benéfico. "Vamos manter nossa fé", ele acrescenta ao partir. "Qualquer tipo de apoio nos ajudaria muito."
* Devido ao perigo de perseguição, o nome foi trocado.