Um século XXI religioso?

Fórum de discussão de assuntos relevantes para o ateísmo, agnosticismo, humanismo e ceticismo. Defesa da razão e do Método Científico. Combate ao fanatismo e ao fundamentalismo religioso.
Avatar do usuário
spink
Mensagens: 3106
Registrado em: 08 Nov 2005, 11:10
Gênero: Masculino
Contato:

Um século XXI religioso?

Mensagem por spink »

http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/ ... u1915.jhtm


05/04/2006
Um século 21 religioso?
Fontes de ódio e destruição, as religiões avançam na contramão da globalização e da abertura de espírito que esta pressupõe

Editorial de André Fontaine

Será este um século religioso?... Malraux (André Malraux, 1901-1976,
escritor francês, autor de "A Condição Humana") negou veementemente ter
previsto que o século 21 "seria religioso ou não seria", e declarou até
mesmo que esta afirmação era "ridícula". Será ela tão ridícula assim?

Cem anos depois da morte de Nietzsche (Friedrich Nietzsche, 1844-1900,
filósofo alemão) que se achara competente para constatar a de Deus, 59% dos franceses, segundo informa uma pesquisa do instituto CSA realizada em setembro-outubro de 2005, consideram que as religiões são fatores de
complicações excessivas, fardos difíceis de carregar.

O fato de Bento 16 chamar menos as atenções do que João Paulo 2º não deve fazer esquecer que este último havia se tornado a estrela principal do box-office planetário e que os seus funerais provocaram, nas ruas e na televisão, um afluxo sem precedente para Roma.

Um cristão "re-nascido" ("born again"), George W. Bush invoca a toda hora o nome do Senhor. Os "evangélicos" que compartilham suas convicções seriam mais de trezentos milhões entre a Ásia, a África e a América Latina, enquanto os Estados Unidos contam, sozinhos, mais de 140.000 missionários pelo mundo afora.

Um crente que não esconde sua condição, Tony Blair passa por ter abraçado o catolicismo da sua mulher. A ortodoxia recuperou toda a sua importância sobre as ruínas do império dos sem-Deus. O budismo vem ganhando terreno no Ocidente. Mais de um bilhão de fiéis se reclamam do Islã, que vem registrando um fluxo crescente de conversões. Entre outros, no sul do Saara, onde a fé se impõe quase sempre como o único remédio às condições de vida assustadoras.

Tudo isso não apresentaria problema algum, uma vez que a religião diz
respeito exclusivamente à consciência de cada um de nós, não fossem os
atritos gerados pelas religiões que terminam com freqüência em banho de
sangue. Não só no Afeganistão e no Iraque, como também na Índia, no
Paquistão, nas Filipinas, em diferentes pontos da África, e até mesmo em diversos subúrbios da velha Europa, onde estamos assistindo, além de tudo, a um certo despertar do anti-semitismo. Em todo caso, nenhum país pode se considerar protegido dos atentados da Al Qaeda...

A bem da verdade, não existe nenhuma grande religião - com a exceção do
budismo - que não tenha tido suas fases de fanatismo. Por mais que o Cristo tivesse respondido a Pilatos que o seu reino não era deste mundo, o poder temporal dos papas subsistiu até a assinatura por Pio 9º e Mussolini, em 1929, dos acordos de Latran.

Por mais que o Cristo tivesse ordenado a Simão-Pedro de pôr de volta na
bainha o gládio com o qual este último tentava defendê-lo contra os guardas que vieram para prendê-lo, o menos que se possa dizer é que esta palavra foi compreendida de maneira desigual no decorrer dos séculos, e que em relação ao extenso martirológio das Igrejas cristãs, que resultou de perseguições recorrentes na história, desde o Império romano até os de Stalin e de Mao, pesaram na balança por muito tempo a extensa lista das vítimas dos cruzados, da Inquisição, das guerras de religiões, do etnocídio dos índios americanos.

Ainda estão quentes as cinzas deixadas pelas guerras atrozes que
dilaceraram, no final do século passado, as nações iugoslavas. Que eles
fossem ortodoxos sérvios, católicos croatas ou muçulmanos bósnios, as suas motivações eram tão religiosas quanto nacionais, mesmo se, tanto neste caso quanto naqueles da guerra do Líbano, da Irlanda do Norte ou da Tchetchênia, a vinculação confessional era - e ainda é - mais uma questão de identidade do que de metafísica.

O atroz genocídio ruandês não encerrou o capítulo africano das guerras de religiões. Até hoje o papa não pôde ir a Moscou e a Pequim. Ortodoxos gregos e muçulmanos turcos até hoje não conseguiram se entender em torno do estatuto de Chipre. Os mestres atuais do Irã xiita proferem discursos incendiários. E um tribunal afegão, que felizmente foi desautorizado a tempo, não hesitou a condenar à morte um homem culpado de ter se convertido ao cristianismo. É verdade que uma célebre colunista conservadora americana, Ann Coulter, citada recentemente pelo "The Economist" de Londres, havia declarado um dia depois dos atentados de 11 de setembro de 2001: "Nós deveríamos invadir seus países, matar seus dirigentes e convertê-los à cristandade" ("christianity").

Depois de uma longa e estafante guerra fria, o Leste e o Oeste conseguiram se entender, apesar do antagonismo profundo das suas visões do mundo, em torno de um mínimo necessário para a coexistência. Será que não poderíamos esperar o mesmo das grandes religiões que têm tantas coisas em comum, a começar pelo monoteísmo? A globalização impõe isso, à medida que ela torna completamente impossível o que reclamam os extremistas islâmicos: um fechamento total do Dar al-Islam, da terra muçulmana, para retomar seu vocabulário, "para os judeus e os cruzados".

Degradação da imagem do Ocidente

Nesse sentido, as enormes migrações da época contemporânea provocaram uma certa osmose, o que acabou relativizando convicções e práticas. Dezenas de milhões de pessoas não vêem nenhuma contradição em se dizerem ao mesmo tempo crentes e não-praticantes. Se considerarmos, entre outras tendências, a queda vertiginosa dos nascimentos em países latinos, um grande número de católicos parece ter se apoderado do princípio do livre exame, tão prezado pelos protestantes.

Muitos dirão que a proporção dos fundamentalistas é bem mais importante
entre os muçulmanos. Mas ainda falta muito para que eles sejam majoritários na sua diáspora, conforme pode ser comprovado pela maneira com que foi desatado, por assim dizer, o caso do véu. Assim como faz um bom número de cristãos, muitos muçulmanos reagem como bem entendem em relação às prescrições do Livro, assumindo o que lhes convém e descartando o resto. Eles agem assim inclusive em relação à proibição do álcool, inclusive nas mais altas esferas da sociedade, inclusive no Golfo...

É verdade que o uso do véu em questão, que havia regredido consideravelmente no século passado, no Oriente Médio e no Maghreb (países da África do Norte), recrudesceu de maneira espetacular na Turquia, no Egito, e até mesmo - num efeito inesperado da intervenção americana - no Iraque. Atatürk ("Pai dos turcos", apelido de Mustapha Kemal, 1881-1938, homem de Estado) deve estar se revirando dentro do túmulo ao constatar que um partido islâmico - ainda que moderado - está no poder em Ancara.

Da mesma forma, os movimentos nacionalistas árabes chegaram a se afastar com freqüência das concepções laicas dos seus fundadores, dos quais muitos eram cristãos. O comportamento tipicamente imperialista da Grã-Bretanha e da França na região entre as duas guerras mundiais, a criação de Israel, a guerra da Argélia, assim como a liberação dos costumes, que choca inúmeros fiéis do Profeta, provocaram uma degradação da imagem dos países ocidentais.

A trágica experiência do Iraque é suficiente para provar que ninguém
conseguirá pôr fim aos dilaceramentos e aos ódios por meio de belos
discursos, e ainda menos por meio do recurso à força, e sim por meio da
abertura de espírito, da busca do outro, do espírito de doação. As
religiões, à medida que todas elas proferem advertências, a começar pelo judaísmo, contra o culto do Bezerro de ouro, estão bem colocadas para contribuir para essa mudança. Foi para lhes propor isso que João Paulo 2º as convidou, em 1986, por ocasião do grande encontro de Assis, e é com este espírito que trabalha a muito viva comunidade de Sant'Egidio, que foi fundada nos dias que se seguiram ao concílio Vaticano II.
"Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma." (Joseph Pulitzer).

Trancado