Fim da prostituição.
Enviado: 14 Abr 2006, 01:47
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/ ... 4u194.jhtm
14/04/2006
Viagem ao fim da prostituição
Maricel Chavarra
Em Estocolmo
Considerar a prostituição uma prática de risco para a sexualidade e a própria integridade das pessoas é uma posição que hoje não é politicamente correta. Ao contrário, é muito discutida por círculos autodenominados de novas feministas -- incluindo algumas juízas e letradas espanholas --, que defendem uma diferenciação entre a prostituição forçada e a que é exercida em liberdade, ambas majoritariamente femininas.
Elas preferem ver as que se inscrevem nesse segundo grupo como sujeitos de direito injustamente estigmatizados ou vitimizadas por uma sociedade que consideram puritana, antes que como parte explorada de um consumismo que leva a tirar facilmente a carteira -- a cenoura de nossos tempos -- em troca de uma satisfação sexual ou um exercício de poder. É exatamente esse hábito, eminente e historicamente masculino, que a lei sueca considera inaceitável de uma perspectiva de direitos humanos e igualdade. Ninguém tem o direito a comprar o corpo de outra pessoa, afirma.
Desde 1999, todo cliente de prostituição na Suécia -- país símbolo de igualdade e liberdade sexual -- é passível de ser multado ou inclusive ter de passar até seis meses na prisão. A pessoa prostituída é livre de continuar exercendo. Ela é considerada explorada tanto por seus proxenetas quanto pelos que compram o serviço sexual, e conta com excelentes serviços sociais. Se for estrangeira, aplica-se a implacável lei de imigração sueca: depois de depor deverá voltar a seu país.
Essa é uma lei moralista que se imiscui na vida privada dos cidadãos? Oitenta por cento da sociedade sueca a aplaudem, e no Parlamento todos os grupos, incluindo conservadores e liberais, que se mostraram reticentes a aprová-la, dizem sentir "orgulho dela".
Jens Orbacks, ministro da Igualdade e Imigração do governo sueco -- um caso raro em que um homem ocupa essa pasta de gênero --, explica que é o modo como os suecos observam a prostituição que os levou a ilegalizar somente a compra. "Comprar o corpo de outra pessoa é uma forma de violência, pois não é um negócio entre iguais, mas uma venda a partir de uma posição de inferioridade."
O governo sueco não faz distinção entre a luta contra o tráfico de pessoas para o comércio sexual e a luta contra a prostituição. "É que sem esta não haveria tráfico, pois sem demanda para a prostituição não haveria tráfico", diz Orbacks. "Não consigo entender como é possível não entender isso: na Holanda, onde o negócio é legal, há muitas pessoas prostituídas de outros países, e nossos vizinhos noruegueses e finlandeses têm muito mais prostituição e tráfico que nós."
A Suécia poderia, numa visão simples, estar conseguindo seus propósitos abolicionistas. Deixou de contar 2.500 nativas que se prostituíam em 1998 para 1.500 em 2003. Um terço delas na rua. As estonianas e lituanas eram um novo fenômeno pelas facilidades de visto. A polícia de Estocolmo estima que antes de ser aprovada a lei havia 40 delas. Hoje, a histórica rua das prostitutas, Malmskillnad, não está muito ativa. A Internet é a nova via, mas não passam de cem as mulheres que se anunciam, embora em 25 sites.
"Puritanos, nós? Os suecos adoram sexo", diz Orbacks. Esse ex-jornalista que fez sucesso na política afirma que a Suécia foi o país da liberdade e do sexo e deve continuar sendo, mas adverte que isso não tem nada a ver com a prostituição.
"Na Europa de 2006 há milhares de mulheres transportadas e exploradas; é nosso maior problema. Se eu tivesse vivido no século 18, teria lutado contra a escravidão, e isto é pior. Deveríamos nos envergonhar", disse, sem se exaltar.
Na verdade a lei sueca não criminaliza a prostituição; só a compra, e não sem antes promover longas discussões com mulheres contrárias à medida. O debate é mais ou menos igual em toda parte: os adversários consideram que se deve dar direitos trabalhistas às pessoas prostituídas para que ganhem poder e tornar sua prática mais visível, e assim mais segura. Criminalizar, segundo elas, é moralista e implica estigmatizar e perder a oportunidade de dignificar a prostituição... um atraso nas liberdades sexuais.
"Me perdoe, mas esse discurso é obsoleto", disse a deputada européia de esquerda Marianne Eriksson, autora do relatório "A indústria do sexo na Europa". "Para vocês talvez a Igreja tenha maior peso", assinala diante de um prato de macarrão num restaurante de Estocolmo, "ou ainda perdure a febre da nudez em sua curta democracia, mas aqui a religião está muito distante da sociedade e já nos libertamos sexualmente nos anos 60. E nos 80 tínhamos 500 bordéis. Não posso ser a favor dos direitos humanos e contra a prostituição? Mas trata-se de defender a liberdade sexual das prostitutas, seu direito à integridade!" Eriksson mostra um broche contra a prostituição na Copa do Mundo: "Você não pode fazer um jogo limpo", diz. "Comprar ou não comprar, essa é questão; o comprador é quem decide."
O assunto da Copa, mal ventilado pelo governo alemão, que não exigirá vistos durante o campeonato para não pedi-lo só às mulheres, preocupa o ministro da Justiça sueco: Thomas Bodström, ex-jogador profissional nos anos 80, sabe que "com muita gente fora de casa, a prostituição e o tráfico tendem a aumentar". Segundo o governo, a nova lei agradou aos jovens. Na frente do clube de strip-tease Privé, em Estocolmo, alguns se unem para impedir que potenciais clientes do sexo desçam de seus táxis. A mesma polícia que persegue o comprador se comparece para dispersá-los. "A lei muda as normas de relação: aconteceu em 1979, com a proibição de bater nas crianças. Também houve protestos, dizia-se que era para o bem delas. E agora ninguém justifica esse maltrato", diz Orbacks.
A Noruega tentou sem sucesso seguir o exemplo sueco, e a Finlândia o discute diante da profusão de estonianas e russas no negócio sexual. Poderia ser o início de uma plataforma nórdica abolicionista. A Suécia, porém, tem vantagens: consenso político, dinheiro para políticas sociais, pouca prostituição praticada e uma quantidade moderada de clientes habituais entre seus 8 milhões de habitantes. Um em cada oito homens comprou sexo pelo menos uma vez na vida. Na Espanha, estima-se que um em cada três.
"Mais importantes que a lei em si são os princípios que a inspiram", afirma Gunilla Ekberg, assessora do governo sueco. "A pessoa deve saber se quer mudar as coisas ou deixá-las como estão: podemos nos resignar a pensar que sempre haverá prostituição, que é a profissão mais antiga do mundo, que o homem sempre comprará, que precisa disso, sua sexualidade é diferente... temas errados. Posso concordar com os que decidiram legalizá-la em que a prostituição clandestina é um perigo para as mulheres, mas é a prostituição que é um perigo para elas."
O abolicionismo não é novo na Europa. Iniciado no século 20, o feminismo clamou contra o tráfico de européias para a América do Sul. A Argentina era o destino por excelência. Os países advertiam que legalizar ou regulamentar a prostituição aumentava o tráfico, e pela primeira vez se enfocou o problema no cliente. Mas a Segunda Guerra Mundial eclipsou a idéia de penalizar a compra.
"Nenhuma relação sexual tem lugar sem um terceiro: os padrões sociais sobre o que é natural ou não, que, por exemplo, sempre discriminaram os homossexuais", indica a líder da Iniciativa Feminista, Gudrum Schyman. "Mas falar de liberdade sexual na prostituição é trazer um problema estrutural para o campo individual, pois ninguém pode falar de mulheres livres em uma sociedade que as discrimina no salário e as obriga a escolher setores pior pagos e menos regulamentados. Tem a ver com como se subvalorizou as mulheres como indivíduos: eles tiveram o controle e elas estavam para servir. Como não lhes reconhecem uma sexualidade própria, vêem seus serviços como os do dentista ou do advogado."
A estatística diz que a maioria dos que se prostituem surgem da pobreza, de etnias oprimidas, da dependência de drogas, de abusos. "Se não se entender que existe uma diferença de poder entre um homem que compra e a mulher comprada é que não entendemos nenhum outro poder do homem", insiste Ekberg. "Queremos um mundo que usa os clássicos argumentos liberais para dizer que numa sociedade igualitária temos um acordo de sexo em troca de dinheiro? O feminismo não é um estilo de vida, é entender a diferença de poder. Se você quiser uma sociedade democrática e moderna, é preciso equiparar ambos os sexos; não se pode isolar um grupo para dar prazer sexual. E isso não tem nada a ver com sexo, mas com invasão sexual, com masturbar se em uma vagina", acrescenta. "Um dia me perguntaram numa conferência sobre a abolição: O que os homens vão fazer? Eu respondi: Que fiquem em suas próprias mãos."
14/04/2006
Viagem ao fim da prostituição
Maricel Chavarra
Em Estocolmo
Considerar a prostituição uma prática de risco para a sexualidade e a própria integridade das pessoas é uma posição que hoje não é politicamente correta. Ao contrário, é muito discutida por círculos autodenominados de novas feministas -- incluindo algumas juízas e letradas espanholas --, que defendem uma diferenciação entre a prostituição forçada e a que é exercida em liberdade, ambas majoritariamente femininas.
Elas preferem ver as que se inscrevem nesse segundo grupo como sujeitos de direito injustamente estigmatizados ou vitimizadas por uma sociedade que consideram puritana, antes que como parte explorada de um consumismo que leva a tirar facilmente a carteira -- a cenoura de nossos tempos -- em troca de uma satisfação sexual ou um exercício de poder. É exatamente esse hábito, eminente e historicamente masculino, que a lei sueca considera inaceitável de uma perspectiva de direitos humanos e igualdade. Ninguém tem o direito a comprar o corpo de outra pessoa, afirma.
Desde 1999, todo cliente de prostituição na Suécia -- país símbolo de igualdade e liberdade sexual -- é passível de ser multado ou inclusive ter de passar até seis meses na prisão. A pessoa prostituída é livre de continuar exercendo. Ela é considerada explorada tanto por seus proxenetas quanto pelos que compram o serviço sexual, e conta com excelentes serviços sociais. Se for estrangeira, aplica-se a implacável lei de imigração sueca: depois de depor deverá voltar a seu país.
Essa é uma lei moralista que se imiscui na vida privada dos cidadãos? Oitenta por cento da sociedade sueca a aplaudem, e no Parlamento todos os grupos, incluindo conservadores e liberais, que se mostraram reticentes a aprová-la, dizem sentir "orgulho dela".
Jens Orbacks, ministro da Igualdade e Imigração do governo sueco -- um caso raro em que um homem ocupa essa pasta de gênero --, explica que é o modo como os suecos observam a prostituição que os levou a ilegalizar somente a compra. "Comprar o corpo de outra pessoa é uma forma de violência, pois não é um negócio entre iguais, mas uma venda a partir de uma posição de inferioridade."
O governo sueco não faz distinção entre a luta contra o tráfico de pessoas para o comércio sexual e a luta contra a prostituição. "É que sem esta não haveria tráfico, pois sem demanda para a prostituição não haveria tráfico", diz Orbacks. "Não consigo entender como é possível não entender isso: na Holanda, onde o negócio é legal, há muitas pessoas prostituídas de outros países, e nossos vizinhos noruegueses e finlandeses têm muito mais prostituição e tráfico que nós."
A Suécia poderia, numa visão simples, estar conseguindo seus propósitos abolicionistas. Deixou de contar 2.500 nativas que se prostituíam em 1998 para 1.500 em 2003. Um terço delas na rua. As estonianas e lituanas eram um novo fenômeno pelas facilidades de visto. A polícia de Estocolmo estima que antes de ser aprovada a lei havia 40 delas. Hoje, a histórica rua das prostitutas, Malmskillnad, não está muito ativa. A Internet é a nova via, mas não passam de cem as mulheres que se anunciam, embora em 25 sites.
"Puritanos, nós? Os suecos adoram sexo", diz Orbacks. Esse ex-jornalista que fez sucesso na política afirma que a Suécia foi o país da liberdade e do sexo e deve continuar sendo, mas adverte que isso não tem nada a ver com a prostituição.
"Na Europa de 2006 há milhares de mulheres transportadas e exploradas; é nosso maior problema. Se eu tivesse vivido no século 18, teria lutado contra a escravidão, e isto é pior. Deveríamos nos envergonhar", disse, sem se exaltar.
Na verdade a lei sueca não criminaliza a prostituição; só a compra, e não sem antes promover longas discussões com mulheres contrárias à medida. O debate é mais ou menos igual em toda parte: os adversários consideram que se deve dar direitos trabalhistas às pessoas prostituídas para que ganhem poder e tornar sua prática mais visível, e assim mais segura. Criminalizar, segundo elas, é moralista e implica estigmatizar e perder a oportunidade de dignificar a prostituição... um atraso nas liberdades sexuais.
"Me perdoe, mas esse discurso é obsoleto", disse a deputada européia de esquerda Marianne Eriksson, autora do relatório "A indústria do sexo na Europa". "Para vocês talvez a Igreja tenha maior peso", assinala diante de um prato de macarrão num restaurante de Estocolmo, "ou ainda perdure a febre da nudez em sua curta democracia, mas aqui a religião está muito distante da sociedade e já nos libertamos sexualmente nos anos 60. E nos 80 tínhamos 500 bordéis. Não posso ser a favor dos direitos humanos e contra a prostituição? Mas trata-se de defender a liberdade sexual das prostitutas, seu direito à integridade!" Eriksson mostra um broche contra a prostituição na Copa do Mundo: "Você não pode fazer um jogo limpo", diz. "Comprar ou não comprar, essa é questão; o comprador é quem decide."
O assunto da Copa, mal ventilado pelo governo alemão, que não exigirá vistos durante o campeonato para não pedi-lo só às mulheres, preocupa o ministro da Justiça sueco: Thomas Bodström, ex-jogador profissional nos anos 80, sabe que "com muita gente fora de casa, a prostituição e o tráfico tendem a aumentar". Segundo o governo, a nova lei agradou aos jovens. Na frente do clube de strip-tease Privé, em Estocolmo, alguns se unem para impedir que potenciais clientes do sexo desçam de seus táxis. A mesma polícia que persegue o comprador se comparece para dispersá-los. "A lei muda as normas de relação: aconteceu em 1979, com a proibição de bater nas crianças. Também houve protestos, dizia-se que era para o bem delas. E agora ninguém justifica esse maltrato", diz Orbacks.
A Noruega tentou sem sucesso seguir o exemplo sueco, e a Finlândia o discute diante da profusão de estonianas e russas no negócio sexual. Poderia ser o início de uma plataforma nórdica abolicionista. A Suécia, porém, tem vantagens: consenso político, dinheiro para políticas sociais, pouca prostituição praticada e uma quantidade moderada de clientes habituais entre seus 8 milhões de habitantes. Um em cada oito homens comprou sexo pelo menos uma vez na vida. Na Espanha, estima-se que um em cada três.
"Mais importantes que a lei em si são os princípios que a inspiram", afirma Gunilla Ekberg, assessora do governo sueco. "A pessoa deve saber se quer mudar as coisas ou deixá-las como estão: podemos nos resignar a pensar que sempre haverá prostituição, que é a profissão mais antiga do mundo, que o homem sempre comprará, que precisa disso, sua sexualidade é diferente... temas errados. Posso concordar com os que decidiram legalizá-la em que a prostituição clandestina é um perigo para as mulheres, mas é a prostituição que é um perigo para elas."
O abolicionismo não é novo na Europa. Iniciado no século 20, o feminismo clamou contra o tráfico de européias para a América do Sul. A Argentina era o destino por excelência. Os países advertiam que legalizar ou regulamentar a prostituição aumentava o tráfico, e pela primeira vez se enfocou o problema no cliente. Mas a Segunda Guerra Mundial eclipsou a idéia de penalizar a compra.
"Nenhuma relação sexual tem lugar sem um terceiro: os padrões sociais sobre o que é natural ou não, que, por exemplo, sempre discriminaram os homossexuais", indica a líder da Iniciativa Feminista, Gudrum Schyman. "Mas falar de liberdade sexual na prostituição é trazer um problema estrutural para o campo individual, pois ninguém pode falar de mulheres livres em uma sociedade que as discrimina no salário e as obriga a escolher setores pior pagos e menos regulamentados. Tem a ver com como se subvalorizou as mulheres como indivíduos: eles tiveram o controle e elas estavam para servir. Como não lhes reconhecem uma sexualidade própria, vêem seus serviços como os do dentista ou do advogado."
A estatística diz que a maioria dos que se prostituem surgem da pobreza, de etnias oprimidas, da dependência de drogas, de abusos. "Se não se entender que existe uma diferença de poder entre um homem que compra e a mulher comprada é que não entendemos nenhum outro poder do homem", insiste Ekberg. "Queremos um mundo que usa os clássicos argumentos liberais para dizer que numa sociedade igualitária temos um acordo de sexo em troca de dinheiro? O feminismo não é um estilo de vida, é entender a diferença de poder. Se você quiser uma sociedade democrática e moderna, é preciso equiparar ambos os sexos; não se pode isolar um grupo para dar prazer sexual. E isso não tem nada a ver com sexo, mas com invasão sexual, com masturbar se em uma vagina", acrescenta. "Um dia me perguntaram numa conferência sobre a abolição: O que os homens vão fazer? Eu respondi: Que fiquem em suas próprias mãos."