
Jean-Sylvain Bailly, primeiro prefeito da Paris revolucionária
A Atlântida do nacionalismo nascente
A Atlântida continua a ser um mito do qual o homem moderno não quer se desprender. Não se passa um ano sem a publicação de novas teorias sobre sua localização. Mesmo se o relato tradicional a situava em uma vasta ilha do Atlântico, há hoje quem pretenda tê-la encontrado no mar Egeu, na Bolívia, na Antártida ou no Sudeste Asiático. Não há continente ou oceano onde não tenha sido "identificada" alguma versão da terra perdida. Se parece igualmente fácil localizá-la em qualquer parte, é porque não está em parte alguma da história real. Os registros do desenvolvimento gradual, espaçado e em grande parte independente das primeiras civilizações do Oriente Médio, do Extremo Oriente e do Novo Mundo a partir de culturas pré-históricas contam uma história totalmente diferente. Mas, para os apaixonados por essa terra misteriosa, pouco importa se os conhecimentos hoje acumulados não só dispensam a idéia da influência de uma civilização primordial desaparecida, como são cada vez mais incompatíveis com ela.
Foi diferente no início da idade moderna, quando a Bíblia começou a perder sua autoridade, mas a arqueologia científica e a ciência da pré-história ainda não existiam. Sobre as primeiras civilizações, antes dos gregos, sabia-se de mitos, das pouco confiáveis narrativas de Heródoto e quase nada mais. Em Os Gregos, os Historiadores e a Democracia (Cia. das Letras, 2002), Pierre Vidal-Naquet conta em detalhes o papel da Atlântida nos primórdios do pensamento histórico moderno, da qual só cabem aqui algumas indicações.
Um marco foi Nova Atlântida, obra póstuma do filósofo Francis Bacon publicada em 1627. O autor imaginou, numa ilha para além do Peru, um centro de ciência muito adiante de seu tempo, incluindo submarinos, máquinas voadoras e meios de comunicação à distância. Unia sua fé na ciência nascente ao tema do aperfeiçoamento social já presente na Utopia de Thomas Morus, de 1516. Para dar mais plausibilidade à sua fantasia, Bacon colocou-a no contexto daquela era de descobrimentos, surpreendida por novas invenções e por novas terras cujas civilizações, apesar de ignorarem as tradições bíblicas e clássicas, muitas vezes se mostravam inesperadamente sofisticadas, como a dos astecas, dos incas e dos chineses.
Criou para sua terra uma história imaginária, na qual havia tido contatos com a "verdadeira" Atlântida, imaginada como uma fase anterior e mais avançada das civilizações pré-colombianas do México e Peru, depois reduzidas por uma inundação temporária a um estado mais primitivo: era uma especulação recorrente na época, embora poucos a levassem realmente a sério. Apesar de obviamente utópico, esse romance inovou o imaginário sobre a Atlântida ao associá-la a uma alta tecnologia, idéia ausente da narrativa de Platão.
Veio então o médico e erudito sueco Olavo Rudbeck, reitor da Universidade de Uppsala. Em 1679, publicou uma obra chamada Atlantica, com a qual queria - seriamente - provar que a Suécia era o berço da História. O frontispício do livro mostra um arrogante Rudbeck a dissecar o mapa da Europa e revelar, sob a superfície da Suécia, a "ilha dos Deuses" - a velha Atlântida e, ao mesmo tempo, a terra dos hiperbóreos da mitologia grega -, para espanto de sábios, filósofos e historiadores da Antiguidade, entre eles o próprio Platão. Será preciso acrescentar que localizou a metrópole desaparecida exatamente em Uppsala?
Décadas depois, o italiano Gian Rinaldo Carli, não satisfeito com o papel de sua pátria na criação do Império Romano, escreveu outra obra para argumentar que sua península havia sido a principal colônia da Atlântida na Europa e a partir dela havia se difundido a civilização para o resto do mundo. Também os britânicos reivindicaram, pela voz do poeta William Blake, o papel de pais da civilização: "vossos ancestrais" diz, dirigindo-se aos hebreus, "se originaram de Abraão, Heber, Sem e Noé, os quais eram druidas". Para ele, Albion, ancestral mítico dos bretões, seria "o Atlas dos gregos".
A Atlântida do iluminismo
A esses extremos já era capaz de chegar o messianismo nacionalista nascente, até - se não principalmente - entre os mais instruídos. A Europa já perdia a fé nas narrativas bíblicas sobre a origem da humanidade e tomava conhecimento das narrativas de outras culturas sobre suas raízes, mas ainda não possuía uma alternativa cientificamente bem fundada. Escolher o que chamar de mito e o que considerar realidade em meio a tantas tradições vagas e contraditórias era uma questão de gosto - ou de ideologia.
No espaço deixado vago pelo Jardim do Éden, pela arca de Noé e pela torre de Babel, nos milênios que se estendiam entre o suposto tempo de Adão e a batalha de Maratona, qualquer homem culto sabia como construir suas próprias fantasias sem correr o risco de um desmentido cabal. Muitos tentaram provar que sua pátria nada devia a estrangeiros e seu povo tinha um direito antigo e legítimo a reinar sobre o mundo.
Não era essa, porém, a única motivação por trás dos sonhos sobre a Atlântida. No auge da Idade da Razão, o astrônomo Jean-Sylvain Bailly, que em 1789 também se tornou o primeiro prefeito da Paris revolucionária, tentou deduzir o local de origem da civilização de uma maneira que lhe parecia lógica e científica.
Muitos iluministas, como Voltaire, pensavam encontrar a origem da civilização nas margens do Ganges e do Indo. Não só os mitos indianos atribuíam à sua cultura uma antiguidade fantástica, como os lingüistas já sabiam que as línguas da Europa não se relacionavam ao hebreu bíblico, ao passo que a grande maioria tinha um claro parentesco com as línguas da Índia e Irã ditas "arianas" e que, de todas as línguas indo-européias então conhecidas, a mais próxima da raiz comum era o sânscrito, língua sagrada da Índia antiga.
Acreditando ser mesmo a Índia a mais antiga civilização conhecida, Bailly aludiu a uma série supostamente muito antiga de tábuas astronômicas hindus, cujas indicações, a seu ver, sugeriam terem compiladas não no sul da Ásia, mas perto do paralelo 49. A isso, somou lendas zoroastristas segundo as quais os ancestrais dos iranianos vinham do "pólo norte" e o mito grego dos hiperbóreos, um povo feliz que vivia em uma terra de clima ameno "além do vento norte". Concebeu uma pré-história segundo a qual a Atlântida havia se situado no extremo norte, no arquipélago norueguês de Spitzbergen, quando o mundo era mais quente.
Ainda não se ouvira falar da fissão nuclear, dos processos de desintegração radioativa que, sabe-se hoje, mantém quente o interior da Terra (e muito menos do processo de fusão do hidrogênio que sustenta o calor do Sol). Os astrônomos da época pensavam que nosso planeta havia esfriado continuamente a partir da bola de lava que fora há não mais que algumas dezenas de milhares de anos. Segundo essa idéia, o mundo devia ter sido bem mais quente há alguns milênios e, dentro de alguns mais, estaria completamente congelado.
Por isso, especulou Bailly, à medida que o clima esfriou, os atlantes se mudaram de Spitzbergen - às vezes identificada com Ultima Thule, a terra indicada por geógrafos antigos como o extremo Norte - para a Sibéria, entre os rios Obi e Yenisei e depois para o Altai, no paralelo 49 (onde hoje se encontram as fronteiras da Rússia, China, Mongólia e Cazaquistão), a partir do qual se espalharam para a Índia, a Pérsia e a Europa.
Fiel ao espírito revolucionário, Bailly procurava ser menos nacionalista e mais universalista, mas não abandonou o eurocentrismo. Fez a civilização nascer de uma imaginária pré-história da raça "branca", confundida com a família lingüística indo-européia ou "ariana" cujo berço os lingüistas procuravam - e ainda procuram - nos montes Altai, na Ásia Central, na Europa Oriental ou no Cáucaso (um dos motivos pelos quais se chamaram "caucasianas" as etnias de origem européia).
Antonio Luiz M. C. Costa formou-se em engenharia de produção e filosofia, fez pós-graduação em economia e é um entusiasta das ciências sociais e naturais. Ex-analista de investimentos, atua no jornalismo desde 1996.
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