O Espiritismo é científico ? por Silvio Seno Chibeni
Enviado: 12 Nov 2005, 14:10
Então vejamos :
O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal.
Allan Kardec, Qu'est-ce que le Spiritisme, Preâmbulo.
Evidentemente, o estatuto científico de uma teoria não pode ser decidido através da mera deliberação de se definir como uma "ciência". Esse atributo é inerente à natureza intrínseca da teoria, e não à denominação que se lhe dê.
A tarefa de determinar quais as características de uma teoria são necessárias e suficientes ao seu enquadramento na categoria de ciência cabe à sub-área da Filosofia intitulada Filosofia da Ciência. Essa disciplina, assim como outros ramos do saber, vem evoluindo constantemente. Em seu caso específico, progressos essenciais ocorreram no século XX, e , mais acentuadamente, a partir da década de 60. Os trabalhos de vários filósofos, entre os quais Karl Popper, Willard Quine, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Imre Lakatos, evidenciaram graves problemas na concepção de ciência que prevaleceu durante séculos, e ainda hoje é muito freqüente encontrar-se entre os não filósofos.
A compreensão dessa visão "antiga" de ciência, de suas várias dificuldades, dos argumentos avançados por esses filósofos e das novas concepções que propuseram requer estudos especializados de muitos anos, não podendo pois ser avançada dentro de um artigo, por maior que seja sua extensão. Em trabalho anterior tivemos ocasião de tentar fornecer uma tosca idéia dessas questões. Procuraremos aqui relembrar algo do que ali foi exposto, a fim de dar substância à nossa presente argumentação. [nota 2]
Muito simplificadamente, poderíamos dizer que pelo menos desde o surgimento da ciência moderna, por volta do século XVII, acreditava-se que a Ciência consistia na catalogação neutra de um grande número de "fatos", dos quais então resultariam, de maneira "espontânea", certa e infalível, as leis gerais que o regem; a reunião de tais leis constituiria então uma teoria científica.
Conforme mencionamos, essa visão "clássica" de ciência mostrou-se insustentável. Percebeu-se que a descrição, busca e classificação dos fatos necessariamente envolve pressuposições teóricas de um tipo ou de outro; que nenhuma lei teórica pode resultar lógica e infalivelmente de um conjunto de fatos, qualquer que ele seja; que uma teoria científica não é um simples amontoado de leis, sendo, antes, uma estrutura dinâmica complexa, na qual participam elementos de diversas naturezas, como resultados observacionais, hipóteses livremente concebidas, regras para o desenvolvimento futuro da teoria, decisões metodológicas, fragmentos de outras teorias etc.
Imre Lakatos sistematizou as novas idéias surgidas na Filosofia da Ciência, propondo que a atividade científica desenvolve-se em torno do que denominou "programa científico de pesquisa". [nota 3] Um tal programa de pesquisa consiste, em termos simplificados, de um "núcleo rígido" de hipóteses teóricas básicas, suplementado por um "cinturão protetor" de hipóteses auxiliares, que serve para ligar e ajustar o núcleo aos fenômenos de que a ciência trata. A cada programa ainda estão associadas duas "heurísticas", uma "negativa", que é a decisão metodológica de se manter inalteradas as hipóteses do núcleo, e outra "positiva", que é um conjunto de sugestões ou idéias de como mudar ou desenvolver o cinturão protetor de modo que o programa dê conta de novos fenômenos e explique os já conhecidos de maneira mais precisa. Um programa de pesquisa é dito "progressivo" caso leve sistematicamente à descoberta de novos fatos, que sejam por ele explicados; caso contrário, será dito "degenerante".
Tomando o exemplo de um dos mais bem sucedidos programas de pesquisa da Física, a Mecânica Newtoniana, vemos que possui um núcleo rígido formado pelas três leis newtonianas do movimento e pela lei da gravitação universal, que a heurística negativa do programa recomenda sejam mantidas inalteradas: eventuais discrepâncias com a experiência devem ser eliminadas através de ajustes nas hipóteses auxiliares do cinturão protetor. Esse processo ocorreu várias vezes durante o desenvolvimento do programa, como quando, no século XIX, se verificou que as previsões teóricas para a trajetória do planeta Urano conflitavam com os dados da observação astronômica; ao invés de imputar esse desvio a possível falsidade das leis do núcleo rígido, assumiu-se que deveria existir um corpo celeste desconhecido perturbando a trajetória do planeta; mais tarde, foi, de fato, observada a existência desse corpo, o planeta Netuno. Assim como nesse episódio, a conjunção das heurísticas negativa e positiva do programa newtoniano levou à inúmeros desenvolvimentos: novas teorias ópticas, novos aparelhos e técnicas de observação, criação de novos ramos da Matemática etc. A partir do início de nosso século, porém, o programa tornou-se degenerante, por motivos vários que não cabe expor aqui, vindo a ser substituído pelos programas das Teorias da Relatividade e da Mecânica Quântica.
Olhando agora para o Espiritismo, vemos que traz em si todas as características de um programa de pesquisa progressivo, sendo, portanto, genuinamente científico, segundo o critério lakatosiano.
Possui um núcleo rígido formado pelo princípio da existência de uma "inteligência suprema, causa primária de todas as coisas", dotada da suprema justiça e bondade; pela lei de causa e feito; pela imortalidade dos seres vivos; por sua evolução ilimitada; pela existência do livre arbítrio, a partir de determinado estágio evolutivo. Desse núcleo pode-se, com o auxílio da lógica ("raciocínio") e de assunções auxiliares, deduzir ("explicar") a infinidade de fenômenos de que trata o Espiritismo: os fenômenos mediúnicos e anímicos, a evolução dos seres, seus estados psicológicos, sua condição após a morte etc. Todos esses fato, analisados extensiva e objetivamente pelo Espiritismo, embasam e sancionam o corpo de seus princípios teóricos; este, a seu turno, concatena, torna inteligíveis, explica aqueles fatos.
Allan Kardec percebeu, em admirável antecipação às conquistas recentes da Filosofia da Ciência, a importância fundamental dessa "simbiose" entre fenômeno e teoria, e expendeu extensos comentários sobre ela em várias de suas obras. Os três capítulos iniciais da primeira parte de O Livro dos Médiuns, por exemplo, são uma obra prima de argumentação filosófica que, embora visando à elucidação de uma questão ligeiramente diferente, contém valiosos elementos relevantes ao assunto que estamos analisando. Comecemos por estas considerações do Parágrafo 19:
É crença geral que, para convencer, basta apresentar fatos. Esse, com efeito, parece o caminho mais lógico. Entretanto, mostra a experiência que nem sempre é o melhor, pois que a cada passo se encontram pessoas que os mais patentes fatos absolutamente não convenceram. A que se deve atribuir isso? É o que vamos tentar demonstrar.
No Parágrafo 29 Kardec volta ao ponto:
Podemos dizer que, para a maioria dos que não se preparam pelo raciocínio, os fenômenos materiais quase nenhum peso têm. Quanto mais extraordinários são esses fenômenos, quanto mais se afastam das leis conhecidas, maior oposição encontram e isto por uma razão muito simples: é que todos somos naturalmente a duvidar de uma coisa que não tem sanção racional. Cada um a considera de seu ponto de vista e a explica a seu modo [...].
Essa "sanção racional" é a que advém da explicação dos fatos através da teoria. No Parágrafo 34, após ressaltar a importância dos fatos na fundamentação da teoria, Kardec considera, por outro lado, que de dez pessoas novatas que assistam a uma sessão de experimentação espírita "nove sairão sem estar convencidas e algumas mais incrédulas do que antes, por não terem as experiências correspondido ao que esperavam". Prossegue então Kardec:
O inverso se dará com as que puderem compreender os fatos, mediante antecipado conhecimento teórico. Paras estas pessoas, a teoria constitui um meio de verificação, sem que coisa alguma as surpreenda, nem mesmo o insucesso, porque sabem em que condições os fenômenos se produzem e que não se lhes deve pedir o que não podem dar. Assim, pois, a inteligência prévia dos fatos não só as coloca em condições de se aperceberem de todas as anomalias, mas também de apreenderem um sem número de particularidades, de matizes, às vezes muito delicados, que escapam ao observador ignorante.
Considerações interessantes nesse mesmo sentido encontram-se também em O que é o Espiritismo. No diálogo com o Crítico (Cap. I, Primeiro Diálogo) Kardec pondera, em resposta à solicitação que este lhe faz de permissão para assistir a algumas experiências:
E julgais que isto vos baste para poder, ex professo, falar de Espiritismo? Como poderíeis compreender essas experiências e, ainda mais, julgá-las, quando não estudaste os princípios em que elas se baseiam? Como apreciaríeis o resultado, satisfatório ou não, de ensaios metalúrgicos, por exemplo, não conhecendo a fundo a metalurgia?
Mais adiante, no diálogo com o Céptico (Cap. I, Segundo Diálogo, seção "Elementos de convicção") Kardec coloca a questão em termos explícitos:
Há duas coisas no Espiritismo: a parte experimental das manifestações e a doutrina filosófica. Ora, eu sou todos os dias visitado por pessoas que ainda nada viram e crêem tão firmemente como eu, pelo só estudo que fizeram da parte filosófica; para elas o fenômeno das manifestações é acessório; o fundo é a doutrina, a ciência; eles a vêem tão grande, tão racional, que nela encontram tudo quanto possa satisfazer às suas aspirações interiores, à parte o fato das manifestações; do que concluem que, supondo não existissem as manifestações, a doutrina não deixaria de ser sempre a que melhor resolve uma multidão de problemas reputados insolúveis.
Quantos me disseram que essas idéias estavam em germe no seu cérebro, conquanto em estado de confusão. O Espiritismo veio coordená-las, dar-lhes corpo, e foi para eles como um raio de luz. É o que explica o número de adeptos que a simples leitura de O Livro dos Espíritos produziu. Acreditais que esse número seria o que é hoje, se nunca tivéssemos passado das mesas girantes e falantes ?
A primeira sentença que destacamos revela uma vez mais que Kardec localizava o caráter científico do Espiritismo na "doutrina", na sua "parte filosófica", que, no contexto de nossa análise, deve ser entendido como aquilo a que vimos denominando "teoria". Os fatos em si não constituem a ciência.
Nosso segundo destaque mostra que Kardec já entendia o papel da teoria como dando "corpo", ou seja, coesão, inteligibilidade, aos fenômenos, que é a tarefa que Lakatos atribui aos princípios teóricos do programa de pesquisa, notadamente os de seu núcleo rígido.
No decorrer das próximas seções a tese da cientificidade do Espiritismo pela qual vimos argumentando receberá indiretamente mais elementos de comprovação.
O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal.
Allan Kardec, Qu'est-ce que le Spiritisme, Preâmbulo.
Evidentemente, o estatuto científico de uma teoria não pode ser decidido através da mera deliberação de se definir como uma "ciência". Esse atributo é inerente à natureza intrínseca da teoria, e não à denominação que se lhe dê.
A tarefa de determinar quais as características de uma teoria são necessárias e suficientes ao seu enquadramento na categoria de ciência cabe à sub-área da Filosofia intitulada Filosofia da Ciência. Essa disciplina, assim como outros ramos do saber, vem evoluindo constantemente. Em seu caso específico, progressos essenciais ocorreram no século XX, e , mais acentuadamente, a partir da década de 60. Os trabalhos de vários filósofos, entre os quais Karl Popper, Willard Quine, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Imre Lakatos, evidenciaram graves problemas na concepção de ciência que prevaleceu durante séculos, e ainda hoje é muito freqüente encontrar-se entre os não filósofos.
A compreensão dessa visão "antiga" de ciência, de suas várias dificuldades, dos argumentos avançados por esses filósofos e das novas concepções que propuseram requer estudos especializados de muitos anos, não podendo pois ser avançada dentro de um artigo, por maior que seja sua extensão. Em trabalho anterior tivemos ocasião de tentar fornecer uma tosca idéia dessas questões. Procuraremos aqui relembrar algo do que ali foi exposto, a fim de dar substância à nossa presente argumentação. [nota 2]
Muito simplificadamente, poderíamos dizer que pelo menos desde o surgimento da ciência moderna, por volta do século XVII, acreditava-se que a Ciência consistia na catalogação neutra de um grande número de "fatos", dos quais então resultariam, de maneira "espontânea", certa e infalível, as leis gerais que o regem; a reunião de tais leis constituiria então uma teoria científica.
Conforme mencionamos, essa visão "clássica" de ciência mostrou-se insustentável. Percebeu-se que a descrição, busca e classificação dos fatos necessariamente envolve pressuposições teóricas de um tipo ou de outro; que nenhuma lei teórica pode resultar lógica e infalivelmente de um conjunto de fatos, qualquer que ele seja; que uma teoria científica não é um simples amontoado de leis, sendo, antes, uma estrutura dinâmica complexa, na qual participam elementos de diversas naturezas, como resultados observacionais, hipóteses livremente concebidas, regras para o desenvolvimento futuro da teoria, decisões metodológicas, fragmentos de outras teorias etc.
Imre Lakatos sistematizou as novas idéias surgidas na Filosofia da Ciência, propondo que a atividade científica desenvolve-se em torno do que denominou "programa científico de pesquisa". [nota 3] Um tal programa de pesquisa consiste, em termos simplificados, de um "núcleo rígido" de hipóteses teóricas básicas, suplementado por um "cinturão protetor" de hipóteses auxiliares, que serve para ligar e ajustar o núcleo aos fenômenos de que a ciência trata. A cada programa ainda estão associadas duas "heurísticas", uma "negativa", que é a decisão metodológica de se manter inalteradas as hipóteses do núcleo, e outra "positiva", que é um conjunto de sugestões ou idéias de como mudar ou desenvolver o cinturão protetor de modo que o programa dê conta de novos fenômenos e explique os já conhecidos de maneira mais precisa. Um programa de pesquisa é dito "progressivo" caso leve sistematicamente à descoberta de novos fatos, que sejam por ele explicados; caso contrário, será dito "degenerante".
Tomando o exemplo de um dos mais bem sucedidos programas de pesquisa da Física, a Mecânica Newtoniana, vemos que possui um núcleo rígido formado pelas três leis newtonianas do movimento e pela lei da gravitação universal, que a heurística negativa do programa recomenda sejam mantidas inalteradas: eventuais discrepâncias com a experiência devem ser eliminadas através de ajustes nas hipóteses auxiliares do cinturão protetor. Esse processo ocorreu várias vezes durante o desenvolvimento do programa, como quando, no século XIX, se verificou que as previsões teóricas para a trajetória do planeta Urano conflitavam com os dados da observação astronômica; ao invés de imputar esse desvio a possível falsidade das leis do núcleo rígido, assumiu-se que deveria existir um corpo celeste desconhecido perturbando a trajetória do planeta; mais tarde, foi, de fato, observada a existência desse corpo, o planeta Netuno. Assim como nesse episódio, a conjunção das heurísticas negativa e positiva do programa newtoniano levou à inúmeros desenvolvimentos: novas teorias ópticas, novos aparelhos e técnicas de observação, criação de novos ramos da Matemática etc. A partir do início de nosso século, porém, o programa tornou-se degenerante, por motivos vários que não cabe expor aqui, vindo a ser substituído pelos programas das Teorias da Relatividade e da Mecânica Quântica.
Olhando agora para o Espiritismo, vemos que traz em si todas as características de um programa de pesquisa progressivo, sendo, portanto, genuinamente científico, segundo o critério lakatosiano.
Possui um núcleo rígido formado pelo princípio da existência de uma "inteligência suprema, causa primária de todas as coisas", dotada da suprema justiça e bondade; pela lei de causa e feito; pela imortalidade dos seres vivos; por sua evolução ilimitada; pela existência do livre arbítrio, a partir de determinado estágio evolutivo. Desse núcleo pode-se, com o auxílio da lógica ("raciocínio") e de assunções auxiliares, deduzir ("explicar") a infinidade de fenômenos de que trata o Espiritismo: os fenômenos mediúnicos e anímicos, a evolução dos seres, seus estados psicológicos, sua condição após a morte etc. Todos esses fato, analisados extensiva e objetivamente pelo Espiritismo, embasam e sancionam o corpo de seus princípios teóricos; este, a seu turno, concatena, torna inteligíveis, explica aqueles fatos.
Allan Kardec percebeu, em admirável antecipação às conquistas recentes da Filosofia da Ciência, a importância fundamental dessa "simbiose" entre fenômeno e teoria, e expendeu extensos comentários sobre ela em várias de suas obras. Os três capítulos iniciais da primeira parte de O Livro dos Médiuns, por exemplo, são uma obra prima de argumentação filosófica que, embora visando à elucidação de uma questão ligeiramente diferente, contém valiosos elementos relevantes ao assunto que estamos analisando. Comecemos por estas considerações do Parágrafo 19:
É crença geral que, para convencer, basta apresentar fatos. Esse, com efeito, parece o caminho mais lógico. Entretanto, mostra a experiência que nem sempre é o melhor, pois que a cada passo se encontram pessoas que os mais patentes fatos absolutamente não convenceram. A que se deve atribuir isso? É o que vamos tentar demonstrar.
No Parágrafo 29 Kardec volta ao ponto:
Podemos dizer que, para a maioria dos que não se preparam pelo raciocínio, os fenômenos materiais quase nenhum peso têm. Quanto mais extraordinários são esses fenômenos, quanto mais se afastam das leis conhecidas, maior oposição encontram e isto por uma razão muito simples: é que todos somos naturalmente a duvidar de uma coisa que não tem sanção racional. Cada um a considera de seu ponto de vista e a explica a seu modo [...].
Essa "sanção racional" é a que advém da explicação dos fatos através da teoria. No Parágrafo 34, após ressaltar a importância dos fatos na fundamentação da teoria, Kardec considera, por outro lado, que de dez pessoas novatas que assistam a uma sessão de experimentação espírita "nove sairão sem estar convencidas e algumas mais incrédulas do que antes, por não terem as experiências correspondido ao que esperavam". Prossegue então Kardec:
O inverso se dará com as que puderem compreender os fatos, mediante antecipado conhecimento teórico. Paras estas pessoas, a teoria constitui um meio de verificação, sem que coisa alguma as surpreenda, nem mesmo o insucesso, porque sabem em que condições os fenômenos se produzem e que não se lhes deve pedir o que não podem dar. Assim, pois, a inteligência prévia dos fatos não só as coloca em condições de se aperceberem de todas as anomalias, mas também de apreenderem um sem número de particularidades, de matizes, às vezes muito delicados, que escapam ao observador ignorante.
Considerações interessantes nesse mesmo sentido encontram-se também em O que é o Espiritismo. No diálogo com o Crítico (Cap. I, Primeiro Diálogo) Kardec pondera, em resposta à solicitação que este lhe faz de permissão para assistir a algumas experiências:
E julgais que isto vos baste para poder, ex professo, falar de Espiritismo? Como poderíeis compreender essas experiências e, ainda mais, julgá-las, quando não estudaste os princípios em que elas se baseiam? Como apreciaríeis o resultado, satisfatório ou não, de ensaios metalúrgicos, por exemplo, não conhecendo a fundo a metalurgia?
Mais adiante, no diálogo com o Céptico (Cap. I, Segundo Diálogo, seção "Elementos de convicção") Kardec coloca a questão em termos explícitos:
Há duas coisas no Espiritismo: a parte experimental das manifestações e a doutrina filosófica. Ora, eu sou todos os dias visitado por pessoas que ainda nada viram e crêem tão firmemente como eu, pelo só estudo que fizeram da parte filosófica; para elas o fenômeno das manifestações é acessório; o fundo é a doutrina, a ciência; eles a vêem tão grande, tão racional, que nela encontram tudo quanto possa satisfazer às suas aspirações interiores, à parte o fato das manifestações; do que concluem que, supondo não existissem as manifestações, a doutrina não deixaria de ser sempre a que melhor resolve uma multidão de problemas reputados insolúveis.
Quantos me disseram que essas idéias estavam em germe no seu cérebro, conquanto em estado de confusão. O Espiritismo veio coordená-las, dar-lhes corpo, e foi para eles como um raio de luz. É o que explica o número de adeptos que a simples leitura de O Livro dos Espíritos produziu. Acreditais que esse número seria o que é hoje, se nunca tivéssemos passado das mesas girantes e falantes ?
A primeira sentença que destacamos revela uma vez mais que Kardec localizava o caráter científico do Espiritismo na "doutrina", na sua "parte filosófica", que, no contexto de nossa análise, deve ser entendido como aquilo a que vimos denominando "teoria". Os fatos em si não constituem a ciência.
Nosso segundo destaque mostra que Kardec já entendia o papel da teoria como dando "corpo", ou seja, coesão, inteligibilidade, aos fenômenos, que é a tarefa que Lakatos atribui aos princípios teóricos do programa de pesquisa, notadamente os de seu núcleo rígido.
No decorrer das próximas seções a tese da cientificidade do Espiritismo pela qual vimos argumentando receberá indiretamente mais elementos de comprovação.