A insignificância da raça humana
Enviado: 12 Nov 2005, 15:07
Publicado em 10 de novembro de 2005 "O Globo"
Arthur Dapieve
A vaca e o frango
Bem, se o artista for mesmo a antena da raça, como escreveu o poeta americano Ezra Pound, seu colega e compatriota T.S. Eliot é a parabólica da raça. Ele parece-me ter captado, no ar do começo do século passado, sinais que só agora fazem pleno sentido. “Os homens ocos”, por exemplo. Tenho pensado muito neste poema de 1925.
A certa altura, Eliot nele versejou: “Esta é a terra morta/ Esta é a terra do cacto/ Aqui as imagens de pedra/ Estão eretas, aqui recebem elas/ A súplica da mão de um morto/ Sob o lampejo de uma estrela agonizante” (a preciosa tradução da Nova Fronteira foi feita pelo poeta Ivan Junqueira, atual presidente da Academia Brasileira de Letras).
Na quadra final, Eliot arremata uma prece: “Assim expira o mundo/ Assim expira o mundo/ Assim expira o mundo/ Não com uma explosão, mas com um suspiro”. A Humanidade, que se tem em tão alta conta, sempre imaginou para si própria um final redentor. Os cristãos anteviram, poeticamente, um Apocalipse de Cecil B. DeMille.
Esperávamos um fim do mundo a reboque de quatro cavalos, uma explosão. Estamos entregues à vaca e ao frango, um suspiro. Ou o hálito da febre aftosa e da gripe aviária. Some-se a ele a agonia do peixe nos rios secos da Amazônia e teremos uma nova raça de vegetarianos compulsórios. Até quando o buraco na camada de ozônio deixar, claro.
Sério. A febre aftosa não afeta as gentes, a pandemia da gripe aviária ainda é uma especulação científica e a salvadora temporada das chuvas é esperada para breve lá naquela região que George W. Bush não sabia onde ficava. Tais fatos, entretanto, somam-se a outros, de natureza distinta, para transmitir a sensação de que o mundo já vai tarde.
Neste desânimo cósmico, tsunamino Sul da Ásia, furacão na América do Norte, terremoto na Cachemira, desastres naturais, aliam-se à incapacidade do governo dos EUA para ajudar Nova Orleans, à incapacidade do governo da França para entender a revolta dos banlieues , à incapacidade do Estado brasileiro para governar, desastres humanos.
Então o mundo estaria mesmo acabando, climática, biológica e historicamente? Ora, que besteira... O mundo tal como o conhecemos nunca deixou de estar acabando. Apenas o processo é tão lento que tomamos o nosso agora - e não me refiro a 11 de novembro de 2005, mas à existência da Humanidade, uma brevidade astronômica - como a eternidade.
É imperiosa, louvável e, diria, até comovente a defesa da natureza contra as agressões do homem. Nossos filhos, netos e sabe-se lá quantas outras gerações depois deles agradecem. Bush poderia assinar logo o Protocolo de Kyoto, o Brasil poderia declarar guerra ao desmatamento da Amazônia, o Greenpeace poderia substituir a ONU.
Tudo isto, porém, ainda omitiria da consciência a perturbadora realidade: as maiores devastações do meio ambiente são causadas pelo próprio meio ambiente. Mesmo o homo ecologicus pouco pode diante de seus acessos de fúria. Repare na retórica antropomórfica desta expressão, sintoma de megalomania e onipotência. A natureza não fica furiosa. Ela também não é sábia, como se diz. A natureza nem irracional é. A natureza simplesmente é.
Num livro recentemente editado pela Jorge Zahar, “Uma breve história do homem”, o historiador inglês Michael Cook nos ajuda a entender a efemeridade desta nossa idéia de eternidade. Antes de se debruçar sobre as civilizações, do Paleolítico ao mundo moderno, ele tem de se indagar por que elas surgiram quando surgiram, ou seja, por que surgiram nos últimos dez mil anos. Boa parte da explicação, lógico, está fora do homem.
Cook lembra que os últimos dez mil anos - período chamado pelos geólogos de Holoceno - se caracterizam por serem “inusitadamente quentes” e terem uma “extraordinária estabilidade climática”. No Pleistoceno, precisar-se-ia recuar 100 mil anos, até o Eemiano, para se encontrar um período parecido em termos de temperatura. Contudo, ainda assim, 120 mil anos atrás havia muito mais oscilações bruscas do que na nossa era.
“A história (...) encaixa-se confortavelmente nesse quente e estável nicho climático do Holoceno”, escreve Cook, na tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. “Não há nada de muito misterioso nessa associação. Tentar fazer história numa idade do gelo - que foi o que se teve na maior parte do tempo entre o Eemiano e o Holoceno - não teria sido muito divertido. Mais especificamente, a história humana funda-se na agricultura, e faz sentido supor que seu desenvolvimento e manutenção teriam sido muito difíceis, se não de todo impossíveis, num clima mundial que não fosse ao mesmo tempo quente e estável.”
Do ponto de vista geológico, portanto, o aquecimento global agudiza uma característica do Holoceno. Ao fim de nosso período quente, relativamente curto, a história da Terra prevê um longo período frio, coisa de 100 mil anos. Bem antes de a estrela agonizante da qual falava Eliot dar seu último suspiro, a civilização tal como a conhecemos terá se tornado inviável. Qual nosso poder nisso? Algumas pessoas têm feito esta pergunta.
Por exemplo e por vias transversas, Michael Crichton, autor americano de livros de ficção científica. Ele chegou a pensar em escrever um ensaio questionando a existência do aquecimento global. Lançou foi o romance “Estado de medo”, recém-publicado pela Rocco. Excomungado pelos ecologistas, Crichton gerou uma polêmica das boas lá fora. Talvez um aspecto positivo dela venha a ser o redimensionamento de nossa insignificância.
Arthur Dapieve
A vaca e o frango
Bem, se o artista for mesmo a antena da raça, como escreveu o poeta americano Ezra Pound, seu colega e compatriota T.S. Eliot é a parabólica da raça. Ele parece-me ter captado, no ar do começo do século passado, sinais que só agora fazem pleno sentido. “Os homens ocos”, por exemplo. Tenho pensado muito neste poema de 1925.
A certa altura, Eliot nele versejou: “Esta é a terra morta/ Esta é a terra do cacto/ Aqui as imagens de pedra/ Estão eretas, aqui recebem elas/ A súplica da mão de um morto/ Sob o lampejo de uma estrela agonizante” (a preciosa tradução da Nova Fronteira foi feita pelo poeta Ivan Junqueira, atual presidente da Academia Brasileira de Letras).
Na quadra final, Eliot arremata uma prece: “Assim expira o mundo/ Assim expira o mundo/ Assim expira o mundo/ Não com uma explosão, mas com um suspiro”. A Humanidade, que se tem em tão alta conta, sempre imaginou para si própria um final redentor. Os cristãos anteviram, poeticamente, um Apocalipse de Cecil B. DeMille.
Esperávamos um fim do mundo a reboque de quatro cavalos, uma explosão. Estamos entregues à vaca e ao frango, um suspiro. Ou o hálito da febre aftosa e da gripe aviária. Some-se a ele a agonia do peixe nos rios secos da Amazônia e teremos uma nova raça de vegetarianos compulsórios. Até quando o buraco na camada de ozônio deixar, claro.
Sério. A febre aftosa não afeta as gentes, a pandemia da gripe aviária ainda é uma especulação científica e a salvadora temporada das chuvas é esperada para breve lá naquela região que George W. Bush não sabia onde ficava. Tais fatos, entretanto, somam-se a outros, de natureza distinta, para transmitir a sensação de que o mundo já vai tarde.
Neste desânimo cósmico, tsunamino Sul da Ásia, furacão na América do Norte, terremoto na Cachemira, desastres naturais, aliam-se à incapacidade do governo dos EUA para ajudar Nova Orleans, à incapacidade do governo da França para entender a revolta dos banlieues , à incapacidade do Estado brasileiro para governar, desastres humanos.
Então o mundo estaria mesmo acabando, climática, biológica e historicamente? Ora, que besteira... O mundo tal como o conhecemos nunca deixou de estar acabando. Apenas o processo é tão lento que tomamos o nosso agora - e não me refiro a 11 de novembro de 2005, mas à existência da Humanidade, uma brevidade astronômica - como a eternidade.
É imperiosa, louvável e, diria, até comovente a defesa da natureza contra as agressões do homem. Nossos filhos, netos e sabe-se lá quantas outras gerações depois deles agradecem. Bush poderia assinar logo o Protocolo de Kyoto, o Brasil poderia declarar guerra ao desmatamento da Amazônia, o Greenpeace poderia substituir a ONU.
Tudo isto, porém, ainda omitiria da consciência a perturbadora realidade: as maiores devastações do meio ambiente são causadas pelo próprio meio ambiente. Mesmo o homo ecologicus pouco pode diante de seus acessos de fúria. Repare na retórica antropomórfica desta expressão, sintoma de megalomania e onipotência. A natureza não fica furiosa. Ela também não é sábia, como se diz. A natureza nem irracional é. A natureza simplesmente é.
Num livro recentemente editado pela Jorge Zahar, “Uma breve história do homem”, o historiador inglês Michael Cook nos ajuda a entender a efemeridade desta nossa idéia de eternidade. Antes de se debruçar sobre as civilizações, do Paleolítico ao mundo moderno, ele tem de se indagar por que elas surgiram quando surgiram, ou seja, por que surgiram nos últimos dez mil anos. Boa parte da explicação, lógico, está fora do homem.
Cook lembra que os últimos dez mil anos - período chamado pelos geólogos de Holoceno - se caracterizam por serem “inusitadamente quentes” e terem uma “extraordinária estabilidade climática”. No Pleistoceno, precisar-se-ia recuar 100 mil anos, até o Eemiano, para se encontrar um período parecido em termos de temperatura. Contudo, ainda assim, 120 mil anos atrás havia muito mais oscilações bruscas do que na nossa era.
“A história (...) encaixa-se confortavelmente nesse quente e estável nicho climático do Holoceno”, escreve Cook, na tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. “Não há nada de muito misterioso nessa associação. Tentar fazer história numa idade do gelo - que foi o que se teve na maior parte do tempo entre o Eemiano e o Holoceno - não teria sido muito divertido. Mais especificamente, a história humana funda-se na agricultura, e faz sentido supor que seu desenvolvimento e manutenção teriam sido muito difíceis, se não de todo impossíveis, num clima mundial que não fosse ao mesmo tempo quente e estável.”
Do ponto de vista geológico, portanto, o aquecimento global agudiza uma característica do Holoceno. Ao fim de nosso período quente, relativamente curto, a história da Terra prevê um longo período frio, coisa de 100 mil anos. Bem antes de a estrela agonizante da qual falava Eliot dar seu último suspiro, a civilização tal como a conhecemos terá se tornado inviável. Qual nosso poder nisso? Algumas pessoas têm feito esta pergunta.
Por exemplo e por vias transversas, Michael Crichton, autor americano de livros de ficção científica. Ele chegou a pensar em escrever um ensaio questionando a existência do aquecimento global. Lançou foi o romance “Estado de medo”, recém-publicado pela Rocco. Excomungado pelos ecologistas, Crichton gerou uma polêmica das boas lá fora. Talvez um aspecto positivo dela venha a ser o redimensionamento de nossa insignificância.