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Lula se diz otimista com o futuro do gigante Brasil

Enviado: 25 Mai 2006, 10:53
por spink
Le Monde


Lula se diz otimista com o futuro do gigante Brasil

Sylvie Kauffmann e Paulo A. Paranaguá
enviados especiais a Brasília

Em entrevista exclusiva a "Le Monde", o presidente brasileiro comenta as tensões com a Bolívia e a Venezuela, faz um balanço de sua gestão, diz que "não há comparação" entre ela e as dos governos anteriores, afirma que "o PT tem pela frente uma tarefa imensa: recuperar sua razão de ser para continuar a ser um partido poderoso", e se mostra confiante, porém cauteloso com o favoritismo da seleção nesta Copa do mundo.

Le Monde - Como o senhor explica as tensões recentes entre o Brasil, a Bolívia e a Venezuela?

Lula - Eu não considero que tenha havido uma tensão muito grave no caso da Bolívia. Eu cheguei a dizer a alguns líderes europeus, que se mostravam preocupados com os eventos na Bolívia, que se o referendo em que os franceses rejeitaram a Constituição européia tivesse ocorrido num país da América do Sul, a crise teria sido mais grave do que na França. O povo foi chamado a se manifestar e ele muito simplesmente não quis uma Constituição única. A história da Bolívia é marcada por tensões internas em torno dos recursos do seu subsolo e da sua utilização. Houve várias nacionalizações desde 1937. Recentemente, o [presidente] Sanchez de Lozada demitiu-se por causa do gás e o presidente Carlos Mesa convocou um referendo, no qual o povo boliviano pronunciou-se a favor da nacionalização. O que fez Evo Morales foi aplicar esta decisão, que não é muito grave. Há espaços para a negociação, se o bom senso prevalecer. A imprensa brasileira argumenta que eu deveria ser duro com a Bolívia. Se eu não endureci o jogo nem com os Estados Unidos nem com a Europa, por que haveria de ser duro para com a Bolívia, um país mais pobre e desprovido de recursos que o Brasil? Eu prefiro apostar na negociação em vez de manter um discurso que possa agradar a meu público.

Em Viena [na Áustria], eu liguei para o presidente Evo Morales e eu lhe disse que eu estava de acordo com a nacionalização, que o gás pertence aos bolivianos e que portanto eles têm todo o direito de fazer algumas exigências. Mas eu também lembrei a Morales que o Brasil é o principal comprador do gás boliviano, que o Brasil depende da Bolívia tanto quanto a Bolívia depende das compras do Brasil, e que nós deveríamos, portanto, encontrar um denominador comum favorável para os dois países em volta de uma mesa. Evo Morales sabe que o gás boliviano é importante para o Brasil e ele sabe, ao mesmo tempo, que o Brasil é o seu mais importante comprador potencial. Se o gás não for vendido para o Brasil, ele terá dificuldades para escoá-lo. O meu ministro das Relações Exteriores foi a La Paz. Creio que nós só encontraremos uma solução com menos discursos, e um maior bom senso e realismo.

Com os presidentes [argentino Nestor] Kirchner e [venezuelano Hugo] Chávez, nós afirmamos claramente que a integração política entre países tão importantes quanto a Argentina, a Venezuela e o Brasil pressupõe que a confiança esteja instaurada entre nós. O nosso continente tem pouca experiência democrática, e uma história de muitos golpes de Estado militares e de pobreza. Para consolidar a integração regional, é preciso levar em conta as assimetrias existentes, e os grandes países devem sempre se mostrar generosos com os mais pobres. O Brasil e a Argentina devem contribuir para o desenvolvimento do Paraguai, do Uruguai e da Bolívia, porque nós não temos nenhum interesse em viver cercados por países mais pobres. Na América do Sul, não raro é preciso contar até dez antes de tomar uma decisão. Por vezes, sou pego de surpresa por um problema do século 19 que interfere na política do século 21. E ainda, nós não temos tempo para discutir do futuro, porque nós permanecemos atolados nas disputas do passado.

Le Monde - O senhor acha que a integração latino-americana tem por objetivo a confrontação com os Estados Unidos e que ela seja incompatível com tratados comerciais bilaterais, conforme afirmou o presidente venezuelano, Hugo Chávez, a respeito dos países andinos?

Lula - Nós não devemos praticar uma ideologia com as nossas relações políticas e comerciais. [Hugo] Chávez não deve pensar desta forma, uma vez que ele vende 85% do seu petróleo para os Estados Unidos. O Brasil tampouco deve ter este tipo de pensamento, uma vez que nós temos consciência da importância das nossas relações com os Estados Unidos. O que nós queremos é evitar nos encontrar numa posição de dependência em relação a uma potência ou a um grupo de potências; queremos construir nossa soberania a partir das nossas capacidades tecnológicas e produtivas. Apesar de uma integração consolidada com a América do Sul e de um estreitamento das nossas relações com a África, a China, a Índia e o Oriente Médio, os nossos intercâmbios comerciais com os Estados Unidos e a União Européia aumentaram. Eu não preciso brigar com ninguém para avançar rumo à integração da América Latina.
O desenvolvimento de relações mais numerosas e heterogêneas consolida a democracia no mundo.

Le Monde - A utilização dos recursos energéticos como instrumento de poder o deixa preocupado?

Lula - Não, porque o Brasil será dentro de vinte ou trinta anos a maior potência energética do planeta Terra. Nós já alcançamos a auto-suficiência em petróleo. Dentro de dois anos, nós iremos produzir a maior parte do gás que nós consumimos, e nós somos os mais competitivos no plano da produção do etanol e do bio-diesel. Na quinta-feira [18 de maio], a Comissão Nacional de política energética anunciou a implantação do processo de refinamento do óleo bruto, do óleo vegetal, que será misturado com o petróleo. Isso resultará numa maior quantidade de gasolina e de gás, e num diesel de qualidade, com muito menos enxofre. O Brasil está vivendo uma revolução energética. Nós já fizemos a do etanol, e nós vamos fazer a do bio-diesel. Então, não me preocupa o fato de um país utilizar seu petróleo como meio de pressão. Isso não data de hoje, já que nos anos 70, a OPEP assustou o mundo com os preços do petróleo bruto. Naquela ocasião, o Brasil havia lançado seu programa do álcool. Agora, num momento em que estamos novamente preocupados com a alta do petróleo, nós decidimos apostar com tudo nas energias alternativas. O Brasil investe muito na biomassa, na energia eólica e no bio-diesel. Poucos países poderão fazer concorrência ao Brasil na hora de extrair da terra o combustível do futuro, por causa da sua extensão territorial.

Le Monde - O senhor acredita na viabilidade técnica e econômica do grande gasoduto que deve passar por uma região tão sensível como é a Amazônia?

Lula - O Brasil terá uma participação ativa na elaboração do projeto. Trata-se de um gasoduto intercontinental de mais de 8.000 quilômetros, que conectará vários países. Nós estamos estudando sua viabilidade técnica e econômica, e a de tudo o que deverá se desenvolver em torno dele. Por enquanto, é só uma idéia, que nós precisamos pôr no papel. Os nossos ministros e técnicos estão trabalhando nisso. Se o projeto for economicamente viável e se um contrato garantir seu funcionamento, por que não realizá-lo? A interconexão da Europa é garantida por um gasoduto que passa por vários países. Nós precisamos de quê? De uma segurança contratual, para que as regras não sejam modificadas por ocasião das mudanças de governo. O gás existe, a demanda também. Transformemos, portanto, este projeto num negócio viável que seja do interesse de todos os países participantes.

Le Monde - A reivindicação do Brasil de ter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU não parece ter tido grande repercussão...

Lula - Ao contrário, ele obteve uma grande repercussão. Em primeiro lugar, nunca um debate havia sido iniciado no nível da discussão atual. Em segundo lugar, nós temos o apoio da França, da Alemanha, do Japão, da Índia, de uma grande parte da África e da América do Sul. Numa primeira etapa, a questão em discussão é de fazer ou não uma reforma da ONU, antes de discutir a respeito dos países que integrarão [o Conselho de Segurança]. Está havendo uma forte convergência em torno da necessidade de reformular a ONU. Os grandes países que se opõem a isso são os Estados Unidos e a China, que evidentemente têm muito peso. Então, o que descobrimos? Que a Itália de opõe a um ingresso da Alemanha, que a China se opõe ao Japão. Na América Latina, o México e a Argentina têm dúvidas em relação ao Brasil, assim como alguns países da África. Portanto, acho que é preciso, primeiro, decidir se haverá uma reforma e de que natureza ela será, antes de falar dos países. A ONU não pode continuar do jeito que ela está, tal como ela foi organizada sessenta anos atrás; ela precisa ser fortalecida, para que as suas decisões sejam mais seguidas e respeitadas. Isso é tudo o que nós queremos e defendemos.
Não é uma tarefa fácil, mas ela não é impossível. É só uma questão de persistência. Nós chegaremos lá, um dia ou outro.

Le Monde - O senhor estão da mesma forma otimista em relação à Organização Mundial do Comércio (OMC)?

Lula - Existem muitos pessimistas no mundo, mas há também pessoas otimistas. Eu sou otimista. Por ocasião da reunião da OMC em Cancún [México], muita gente afirmou que ela havia fracassado. Mas foi em Cancún que o G20 [grupo dos países emergentes] viu a luz do dia; este está modificando a geografia comercial do mundo.

Queira ou não, as decisões não são mais tomadas por uma meia-dúzia de países; todos querem participar das decisões. Qual é a situação neste momento? Em 25 de maio, vou conversar com o presidente Chirac. Já conversei muito sobre esta questão com Tony Blair, com a chanceler Angela Merkel, com o presidente Bush. Nós estamos mais perto de um acordo de que muitos imaginam. A fase durante a qual os técnicos tentam alcançar um acordo já foi encerrada; chegou a hora de uma decisão política. Cabe agora aos chefes de Estado e de governo tomarem uma resolução, com base no seguinte princípio: todos devem fazer um sacrifício proporcional, e os que devem ganhar são os países pobres.

A agricultura representa no Brasil 25% da população, que dela depende. Na União Européia, esta dependência não supera os 4%. Portanto, as concessões em matéria agrícola devem ser proporcionais ao seu peso em cada país. As subvenções americanas desequilibram o comércio agrícola no mundo. Os Estados Unidos devem fazer concessões neste plano. Por sua vez, os países emergentes, tais como o Brasil, devem fazer concessões em relação aos bens industriais. Nós temos um triângulo: os Estados Unidos devem reduzir as subvenções, a UE oferecer acesso aos produtos agrícolas e os países emergentes o acesso aos produtos industriais. Na cúpula de Viena, eu disse a Angela Merkel, Tony Blair e José Luis Rodriguez Zapatero que nós iríamos nos encontrar no G8, em São Petersburgo. Uma vez que Putin não participa da OMC, nós não estamos obrigados a discutir a questão nesta ocasião, mas nada impede que antes ou depois, nós nos encontremos em Paris, em Berlim ou em outro lugar, e que anunciemos a vitória do bom senso no campo comercial, para tornar o mundo menos pobre e mais justo no decorrer deste século. Se nós não fizermos isso agora, será preciso esperar por mais trinta anos. Eu disse aos presidentes que nós seremos uma geração de dirigentes que fracassou em resolver o problema da pobreza no mundo.

Le Monde - Será que conceitos da esquerda tais como o anti-imperialismo e a revolução perderam sua pertinência hoje?

Lula - Para mim, sim. Mas como eu sou um defensor da liberdade de expressão, acho que cada um deve utilizar as palavras que lhe convêm.
Principalmente porque as mesmas palavras têm sentidos diferentes conforme os países. O Partido Socialista francês não é o mesmo que o seu equivalente sueco, nem que o SPD alemão ou que o PSOE espanhol, ou que a esquerda italiana. Cada esquerda reflete a realidade cultural e política do país. É a mesma coisa na América Latina. Um tipo de discurso de esquerda no Brasil não tem o mesmo peso no México, que por sua vez é diferente do de um outro país.

As palavras são utilizadas com os valores retóricos que determinam a cultura de cada povo. Nunca fiz questão de encampar o rótulo de esquerda. Sou um torneiro mecânico de profissão, um militante político de um partido chamado PT [Partido dos Trabalhadores], cujo compromisso fundamental é com a construção de uma sociedade mais justa. É o que nós tentamos fazer, com os sacrifícios e as diferenças que implica o fato de estar na oposição ou no governo, duas situações muito diferentes entre si. Quando você passa da fase do "eu acho" para aquela do "eu faço", há uma bela diferença, porque você depende do Congresso, do orçamento, da legislação, da burocracia, de muitas coisas. Eu me sinto extremamente feliz com tudo o que nós realizamos até agora. Deus foi muito generoso ao permitir-me fazer certas coisas que pareciam impossíveis e que eram apenas difíceis. A perseverança nos permite realizá-las.

Le Monde - O Estado de São Paulo foi abalado na semana passada por cenas graves de violência, originadas das prisões. Como o senhor explica o que aconteceu?

Lula - Algum tempo atrás, nós vimos na França milhares de pessoas nas ruas, carros que queimavam e tivemos dificuldades para acreditar que num país cuja economia é tão sólida, cuja cultura é tão antiga, tais coisas pudessem ocorrer. Essas coisas acontecem na América Latina, não na Europa!
Em todo lugar pelo mundo afora, os problemas sociais estão presentes e estão sempre prestes a explodir. Aqui, no Brasil, todos nós sabemos, já faz muito tempo, que o nosso sistema penitenciário vai mal. Todos nós sabemos quais são as convulsões que agitam nossas prisões. Todos nós sabemos que a partir das suas celas, chefes do crime organizado promovem assaltos, crimes, operações de contrabando e assassinatos. O que aconteceu em São Paulo revelou a fragilidade do nosso sistema carcerário, a fragilidade de uma parte da nossa polícia e, não há por que esconder isso de nós mesmos, a fragilidade da sociedade brasileira como um todo frente a um problema desta amplidão. Muitos destes detentos nasceram e cresceram no decorrer dos anos 80, e nós tivemos, no Brasil, duas décadas perdidas. duas décadas, é uma geração inteira! Mais é preciso curar o mal, isto é, melhorar nosso sistema
penitenciário: o governo federal está construindo cinco prisões, das quais três estarão prontas já neste ano. É também preciso criar mecanismos para evitar que os detentos possam utilizar telefones celulares.

Contudo, mais importante ainda do que curar a doença existente, é preciso evitar que ela se amplie. É por isso que eu acredito, profundamente, que este país deve investir de maneira pesada na educação, para que os nossos adolescentes possam ter perspectivas de estudos e de trabalho. Isso não será suficiente para acabar com a criminalidade, e menos ainda com o crime organizado que é sofisticado, porque o crime organizado possui uma ramificação internacional, uma ramificação política, uma ramificação judiciária, uma ramificação em empresas e uma ramificação entre os pobres. É uma indústria que é muito mais difícil de enfrentar que o crime ordinário. É por isso que todos nós devemos, em vez de sair à procura dos culpados, assumir nossas responsabilidades e oferecer uma resposta à sociedade brasileira.

Le Monde - O que aconteceu com o plano de segurança pública que o senhor promoveu antes da sua eleição? Por que ele não foi implementado?

Lula - Ele foi implementado. Primeiro, nós criamos um secretariado da segurança nacional. Depois, nós implantamos um polícia nacional, para a qual nós já formamos entre 4.000 e 5.000 homens. Por fim, nós estamos investindo como nunca na Polícia Federal, porque nós acreditamos que investir num sistema de inteligência é a primeira coisa que deve ser feita para que a polícia possa combater de forma eficiente o crime organizado. Nós temos uma política forte contra a lavagem de dinheiro. A polícia vem sendo equipada com dispositivos entre os mais modernos para que se possa saber, em tempo real, o que está acontecendo em diversos lugares do país. O problema é que a segurança pública não é da alçada do poder federal: no Brasil, ela é da competência dos Estados federados. O governo federal só pode intervir caso um pedido for feito nesse sentido, assim como foi o caso no Espírito Santo, onde nós intervimos a pedido do governador, ou em Minas Gerais, quando o governador Aécio Neves pediu a intervenção do exército, e que, em 24 horas, o exército já estava a postos. Se os governadores pedirem por isso, nós estamos prontos para ajudá-los, com a Polícia Federal, a Polícia Nacional ou as Forças Armadas, sempre para apoiar as forças de segurança locais. Mas se eles não pediram por isso, nós nada podemos fazer. No caso de São Paulo, logo no primeiro dia enviei o ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, para oferecer nossa ajuda.

Le Monde - A sua prioridade principal, ao chegar ao poder, era a luta contra a fome e a pobreza. O senhor está satisfeito, três anos e meio depois, dos progressos que foram realizados?

Lula - Vamos comparar os quarenta meses do meu governo com os oito anos do governo precedente. Em janeiro de 2003, o Brasil gastava menos de R$ 7 bilhões em programas sociais; hoje, nós estamos investindo R$ 22 bilhões. Em junho de 2003, quando foi concluído o Plano agrícola para a agricultura familiar, o governo havia investido R$ 2,4 bilhões. No final deste ano, nós disporemos de R$ 9 bilhões, dos quais R$ 8 bilhões já foram utilizados pelo povo. De 1998 a 2001, o Brasil não investiu praticamente nada no sistema de esgoto e no saneamento da água. Em quarenta meses, nós dedicamos R$ 9 bilhões a esta questão. Cerca de 9,3 milhões de famílias foram beneficiadas com o programa Bolsa Família.

Nós aprovamos o Estatuto da Terceira Idade. Nós criamos o programa das farmácias populares. Hoje, uma pessoa que sofre de diabetes no Brasil e que precisa tomar insulina não gasta mais que R$ 13 por mês, contra R$ 132 anteriormente. Nós temos a maior política de saúde dentária que este país já teve: no final do ano de 2006, nós teremos 400 centros de saúde dentária para tratamentos e próteses, aos quais até então apenas uma pequena parte da sociedade tinha acesso. Nós aumentamos de 8 para 9 anos o número de anos de estudos do ciclo de base.

Nós inauguramos neste ano 32 escolas técnicas, enquanto nenhuma havia sido construída desde 1998. Nós estamos abrindo 4 novas universidades federais, e 42 cursos de pós-graduação universitários no interior do país. Nós lançamos o programa ProUni, que, por meio de convenções com as universidades privadas, transforma um imposto que elas nos pagam em bolsas de estudos para os adolescentes dos bairros pobres, oriundos do ensino público. Em quatorze meses, nós criamos assim 204.000 bolsas, das quais 40% se destinam a pessoas de origem africana e 1.200 a indígenas. Para que vocês possam ter uma idéia da dimensão do ProUni, o conjunto do sistema escolar público de São Paulo, que é o maior Estado da nossa Federação, comporta 98.000 estudantes Em quatorze mois, o ProUni permitiu que 64.000 jovens prosseguissem seus estudos. Em quatorze meses, nós criamos o equivalente de uma Unicamp e de uma USP juntas [universidade de Campinas e universidade de São Paulo, os dois principais centros de ensino superior do Estado].

Le Monde - E em matéria de redistribuição das terras, o senhor cumpriu suas promessas?

Lula - Em oito anos de governo, o meu predecessor expropriou, a título da reforma agrária, 18 milhões de hectares. Eu, em 36 meses, expropriei 22 milhões. Foi no campo social que nós realizamos coisas de uma amplidão imensurável, quando se sabe que nós acumulamos séculos de negligência em relação à população pobre. Todas as pesquisas mostram que a mortalidade infantil diminuiu, assim como a desnutrição. O número de pobres diminuiu de três milhões. Dito isso, nós também realizamos aquilo que eu acredito ser a maior conquista do meu governo: em momento algum na história do Brasil a economia reuniu tantos fatores positivos. Quando nós chegamos ao poder, nós não tínhamos dólares para financiar nossas importações. Hoje, nós reembolsamos o FMI [Fundo Monetário Internacional], nós pagamos o Clube de Paris [créditos], nós reembolsamos a moratória de 1986, e nós ainda temos US$ 61 bilhões em reservas. A nossa balança comercial era deficitária: hoje ela é superavitária. As nossas contas correntes eras deficitárias, elas se tornaram superavitárias. O Brasil vendia dólares para tentar fazer baixar sua cotação: hoje nós compramos dólares para sustentar a cotação. Nós passamos de US$ 60 bilhões de exportações para US$ 120 bilhões em três anos. Os salários aumentaram, o salário mínimo aumentou, o emprego cresceu. Ao longo de quarenta meses consecutivos, nós tivemos um índice positivo de emprego no Brasil. Nunca havíamos tido uma tal quantidade de crédito no Brasil, principalmente aquele destinado aos trabalhadores e aos aposentados. Quando assumi as minhas funções, nós não tínhamos dólares o bastante para financiar nossas importações. É por isso que eu sou otimista.

Ainda há muito por ser feito, mas as bases estão consolidadas para que nós possamos fazer muito mais. Você sabe, é difícil governar porque às 9h da manhã entra alguém no meu escritório para me dizer: "senhor presidente, é preciso valorizar a taxa de câmbio, o dólar está muito baixo". Há pessoas que propõem um dólar barato para a importação e um dólar mais elevado para a exportação, um dólar para a agricultura e um dólar para a indústria. E eu, o que respondo a eles? Primeiro, que não se pode desenvolver uma política econômica conforme a conveniência de alguns ou de outros. A política econômica exige um comportamento sério para que todo mundo entenda que há uma normalização dos procedimentos. Nas é mais seguro do que o câmbio flutuante. Qual é o problema da taxa de câmbio flutuante? É que ela flutua, ora para baixo, ora para cima. Há pessoas que gostariam que ela só flutuasse de um lado! É nesses momentos que nós precisamos ser pacientes, não nos deixar levar pelo pânico frente às manchetes dos jornais, não nos deixar irritar pelos discursos da oposição, contar até 10, por vezes até mesmo até 20, e não permitir que o nervosismo passageiro venha perturbar a serenidade daqueles que governam. Porque o Brasil está repleto de histórias fantásticas nas quais, numa noite são anunciadas medidas mágicas e, alguns dias mais tarde, é o povo que paga a conta. A magia, isso não existe.

Le Monde - Se os fundamentos da economia foram saneados, não seria uma boa hora para proceder a um salto qualitativo na redistribuição da renda?

Lula - É preciso, primeiro, abordar a política fiscal muito seriamente. Ao longo da minha vida, aprendi que eu só podia gastar aquilo que o meu salário me permitia pagar. No governo, só se pode gastar aquilo que se pode ganhar. Eu herdei uma dívida muito grande que nós estamos tentando diminuir, sempre respeitando um superávit primário de 4,25%, porque é importante mostrar para os meus credores que eu sou responsável e que eu pago minhas dívidas, uma coisa da qual eu não abrirei mão. Depois, é preciso mostrar que até mesmo com uma política fiscal dura, é possível conduzir uma política social forte. É o que nós estamos fazendo, uma vez que está ocorrendo algo que muitos achavam impossível. Durante décadas, no Brasil, dizia-se: "É preciso crescer para distribuir". Mas nós, estamos distribuindo para crescer. Programas tais como o Bolsa Família, o crédito popular, os investimentos nas infra-estruturas das pequenas cidades, engendram desenvolvimento regional, geram empregos e permitem progressivamente melhorar as coisas.

Le Monde - No que diz respeito à economia, aos programas sociais, à educação ou à segurança pública, existem convergências entre as suas reformas e as que preconiza o Partido Social-Democrata brasileiro [PSDB, oposição]. Como explicar que o PT e o PSDB estejam em campos opostos, e que o senhor esteja aliado a pequenos partidos sem verdadeira consistência política?

Lula - A proximidade entre o PT e o PSDB não existe. No início, alguns vieram me dizer: "é o mesmo programa, existe uma continuidade". Se tivesse mesmo uma continuidade, a inflação teria alcançado os 40%, o risco Brasil teria aumentado. Não existe qualquer relação. Existem certamente pontos comuns entre partidos como o PSDB ou o PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro, centrista], ou partidos de esquerda menores. Mas o que nós fizemos é uma pequena revolução, pois nós modificamos o quadro da economia brasileira. Eu até mesmo elaborei um pequeno quadro para mostrar o que aumentou ou diminuiu. No Brasil, a distribuição da renda, o PIB, a criação de empregos formais, o salário mínimo, a massa salarial, aumentaram.

O equilíbrio fiscal, os aumentos de salários, a estabilidade econômica, as exportações, as importações, a balança comercial, a produção industrial, a poupança interna, o crédito, melhoraram. E o que foi que diminuiu? A desigualdade social, a pobreza, a fome, a desnutrição, o desemprego, a inflação, a dívida externa, a dívida interna, o risco-país, a vulnerabilidade externa, as taxas de juros, o número de falências, diminuíram. Não existe, portanto, nenhuma comparação possível entre este governo e o precedente. A verdade nua e crua é que uma revolução silenciosa vem ocorrendo: a melhora da vida dos habitantes deste país. As pessoas estão comendo mais. Eu queria citar só mais um número. Ao longo de oito anos, o orçamento da merenda escolar não aumentou. Era de R$ 0,13 por aluno. Nós o aumentamos para R$ 0,22, ou seja, quase o dobro. Em 31 de dezembro, eu quero comparar meus 48 meses de governo, em matéria de política social ou salarial, com qualquer outro governo da história do Brasil.

Le Monde - O PT decepcionou depois da sua chegada ao poder. Ele esteve envolvido em escândalos de corrupção. Quais lições o senhor tira disso?

Lula - O PT pagará por seus erros, é inevitável. Mas seria preciso distinguir os erros cometidos, os quais a Justiça julgará, do crime que os adversários do PT lhe atribuem. O PT cometeu erros. Algumas pessoas já foram punidas. Eu afastei as que estavam no governo ou elas foram embora. O Congresso instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que se pronunciou sobre certas pessoas. O relatório da CPI foi transmitido para o Ministério Público, que o encaminhou para o poder judiciário. Eu não estou em condições de dizer se as acusações contra essas pessoas serão provadas. Mas eu acredito que muitas dentre elas serão inocentadas. De qualquer forma, o PT tem pela frente uma tarefa imensa: recuperar sua razão de ser para continuar a ser um partido poderoso. Nós já vimos casos desse tipo no Partido Comunista italiano, no Partido Socialista francês, no PSOE espanhol. Nós temos que tirar as lições disso e evitar que membros do partido voltem a cometer esses erros.

Le Monde - Uma última pergunta a respeito da Copa do Mundo de futebol. A seleção brasileira é uma equipe de estrelas ou uma equipe que vai ganhar?

Lula - O nosso treinador convocou o que o Brasil tem de melhor. Se levarmos em conta apenas a história e o que cada jogador brasileiro pode fazer, temos uma perspectiva muito favorável para que o Brasil volte a ser campeão mundial. Mas não basta ter a melhor seleção ou os melhores jogadores, pois a história mostra também que equipes consideradas como favoritas foram eliminadas já na primeira fase: a França e a Argentina em 2002, o Brasil em 1950, 1982 e 1986. há momentos na história em que os favoritos não ganham. Sempre digo que se os jogadores brasileiros estiverem fisicamente preparados e psicologicamente motivados - já que esta será a última Copa para muitos dentre eles -, e que se eles puserem na cabeça, assim como a seleção de 1970, que é importante ganhar, que esta é a sua última oportunidade, então eu estimo que nós temos muitas chances. Mas, em matéria de futebol, é melhor esperar pelo início do campeonato.