Em clima de copa do mundo
Enviado: 28 Mai 2006, 00:56
Der Spiegel
Bolas de futebol e grilhões
Futebol e globalização
Uwe Buse
As bolas de futebol do mundo são feitas em Sialkot, Paquistão. Mas a relativa prosperidade da cidade está ameaçada -por produtores concorrentes do Extremo Oriente e por ativistas de direitos humanos do Ocidente.
Os prédios se agrupam nos arredores da cidade, no fim de uma rua onde começa o mato. A água é escassa. O mato é seco e magro. Assim como os bodes, ovelhas, búfalos -e as pessoas. Uma imagem de monotonia.
As casas são rudimentares; algumas são feitas de esterco, as melhores de tijolos. Elas possuem dois cômodos, às vezes três. Os pisos são de concreto. Prateleiras de madeira nas paredes guardam pilhas de jornais velhos, algumas canecas e pratos.
Sehzadi Akhtar vive em Sialkot há anos, desde que se casou com um homem que não consegue mais sustentar sua família. Ele quebrou o braço e o osso não se solidificou de forma apropriada. O marido de Akhtar continua aleijado, de forma que ela agora carrega dois fardos: ela cuida do lar e sustenta a família. Como seus vizinhos, ela fica sentada no quintal por sete ou oito horas por dia, costurando bolas. Bolas de futebol.
O trabalho deles é vendido sob a marca "Derbystar" -um produto de qualidade; é preciso força para fazer a agulha penetrar no plástico espesso. Uma bola como esta pode custar 99 euros nas lojas européias. Akhtar leva três horas e 750 pontos para costurar os 32 gomos separados com fio encerado, para produzir uma bola que ela entregará para um fabricante no centro. Ela receberá 40 rúpias, cerca de 60 centavos. Akhtar consegue costurar três bolas por dia, depois é hora de cuidar dos deveres do lar. Ela é magra, cansada e profundamente devota. E, alguns diriam, uma das perdedoras da cidade -uma vítima de uma tentativa bem-intencionada mas mal concebida para tornar o mundo um lugar melhor.
Esta experiência foi lançada no nordeste do Paquistão. Em Sialkot, a cidade está crescendo fora de controle. Novas casas, novas choupanas, surgem diariamente em seus limites. No centro as pessoas sufocam no trânsito: uma selva de carroças puxadas por burros, ônibus expelindo fumaça preta, carros compactos e motos scooters que transportam famílias inteiras.
Os recém-chegados vêm das províncias do oeste que fazem fronteira com o Afeganistão -e com a guerra. E também das províncias do sul, uma região onde as realidades da vida são ainda mais duras. Eles sonham em encontrar trabalho, um futuro em Sialkot. Se não aqui -no coração industrial do Paquistão, a capital mundial da produção de bola de futebol- onde mais poderiam ganhar a vida?
As pessoas vêm a esta cidade de lugares distantes; 60% das bolas de futebol do mundo são feitas aqui, por mais de 200 produtores. Eles possuem nomes como "Laser", "Estrella International", "Ali Trading Company" e "Fox & Associates". Algumas são estruturas de apenas uma sala equipada com um telefone e alguns arquivos. Outras possuem escritórios em torres de vidro e concreto que caberiam nas paisagens urbanas européias. Como regra estas empresas enviam sua produção para exterior. Elas estão integradas na economia global, elos na cadeia internacional de valor. Os proprietários prestam serviço para Nike, Adidas e outras corporações que anunciam produtos "estilo de vida". Seus ganhos transformaram a região no Eldorado do Paquistão. As pessoas aqui ganham cerca de U$ 1 mil por ano, quase o dobro da média nacional.
As bolas são todas feitas à mão -em 2 mil oficinas, galpões e quintais onde 40 mil homens e mulheres costuram, cada um subcontratado por uma empresa paquistanesa, cada um deles um empreendedor à sua própria maneira. Os trabalhadores são pagos por bola. As famílias sem campos para cultivar e sem búfala para ordenhar precisam de pelo menos dois costureiros em tempo integral para colocar três refeições na mesa por dia. Estas pessoas são membros do proletariado global. Sua pobreza torna o produto acessível aos ricos. E permitem que as marcas façam campanhas de imagem exorbitantemente caras.
É assim que as coisas são hoje. E como eram em 1996, quando a Inglaterra recebeu a Eurocopa: um momento oportuno para mudar o mundo. A iniciativa nasceu nos Estados Unidos. Zakauddin Khawaja ainda lembra vividamente do momento: tudo começou com um telefonema de seu agente nos Estados Unidos. Irritado, o agente descreveu o que via como um escândalo, um ataque da imprensa americana à economia de Sialkot, ao bom nome do Paquistão. Uma ação imediata era exigida, ele disse.
Naquela época, Khawaja era executivo-chefe da Capital Sports. Ele empregava cerca de 2 mil costureiros: homens, mulheres -e crianças. Ele nem contesta o fato nem pede desculpas por ele; afinal, sua empresa nem de longe era a única infratora. Na época, pelo menos um quarto de sua força de trabalho era menor de idade.
Colocando um fim ao trabalho infantil
Segundo o agente de Khawaja, grupos de direitos humanos estavam assediando a visita do primeiro-ministro paquistanês aos Estados Unidos. Sua missão: alertar o mundo do futebol que seus principais astros estavam chutando bolas manchadas com o suor do trabalho infantil.
Noticiários de televisão desfilaram representantes da Nike e outras marcas fingindo surpresa. Seus porta-vozes alegavam que não havia relatos de trabalho infantil, mas investigariam as alegações. Logo depois as marcas apresentaram um ultimato aos seus parceiros comerciais asiáticos. As crianças deviam desaparecer das fábricas ou as encomendas deixariam de ser feitas. Os ativistas de direitos humanos festejaram. Khawaja não.
"Nós não tínhamos alternativa", disse Khawaja, sentado na cadeira de seu escritório, um velho de 72 anos encurvado pela idade e abatido pelo câncer. Ele não precisa mais medir suas palavras ou adoçar a verdade amarga. "Nós não proibimos o trabalho infantil por bondade de nossos corações. Nós o fizemos porque perderíamos o negócio."
Antes do prazo final do ultimato, os fabricantes de Sialkot, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) assinaram um acordo. As corporações não quiseram participar diretamente das negociações. O assunto todo era feio demais.
O Acordo de Atlanta, como passou a ser conhecido, foi saudado como um avanço pelas organizações de direitos humanos. Ele marcava a primeira vez que arrancaram uma concessão obrigatória de toda uma indústria -a proibição de trabalho infantil em suas fábricas. Os fabricantes tinham 18 meses para cumprir as condições estabelecidas pelo acordo de oito páginas, um documento que representava rendição incondicional. Mesmo hoje, quando Khawaja fala a respeito, ele ainda mal consegue conter sua raiva.
"Nossa única preocupação era atender nossos clientes", ele disse. O trabalho de fato era feito por intermediários, que forneciam pessoal, alugavam as oficinas e eram responsáveis pela entrega no prazo, ele acrescentou.
"Se alguém era responsável, eram os intermediários", argumentou Khawaja -e, é claro, os pais das crianças. Afinal, eram eles que arrastavam seus filhos e filhas ao trabalho. "Ninguém os encorajava." Ter crianças nas fábricas não beneficiava em nada as empresas, não aumentava os lucros em uma única rúpia: "Nós pagamos por bola, não por hora". Ele não mencionou os salários de fome que seus trabalhadores recebem. Ele ainda sente que foi tratado injustamente; ele é apenas outro empresário tentando ganhar a vida. E isto é difícil o suficiente em uma economia global, onde é preciso competir com países como a China. Um país onde os salários são mais baixos, as horas de trabalho mais longas e as condições são ainda piores do que no Paquistão.
Onde máquinas produzem bolas dez vezes mais rapidamente do que os costureiros manuais e onde a produção mecanizada é protegida por patentes -e, portanto, fora do alcance das empresas de Sialkot. Khawaja reclama como um dono de pequena empresa na Alemanha.
A "interferência" dos autonomeados defensores de direitos humanos do exterior não foi requisitada, ele sente. Mas novamente estes senhores coloniais modernos estavam impondo seus próprios valores e normas a outros países. Khawaja não disse isto em tantas palavras, mas a recriminação estava nas entrelinhas. Os estrangeiros o forçaram a pensar nos trabalhadores e reconhecer suas dificuldades. Ele preferiria não saber. Tudo se resume, ele resmunga com revolta, a apenas outra cruzada ao estilo "salve as crianças".
Seu tom se tornou de desdém e ele encerrou a entrevista, dizendo estar cansado, pois a quimioterapia o tinha esgotado. Se apoiando fortemente em sua bengala, ele seguiu pelos corredores da Câmara de Comércio até seu escritório. As pessoas pelas quais passou no corredor o cumprimentaram com respeito, se curvando. Elas o consideram um visionário, o homem que salvou a indústria do colapso.
O aliado mais importante de Khawaja sempre foi um líder sindical, um pragmático que compartilha sua visão de mundo: Nasir Dogar, uma figura garbosa, vitoriana, que usa óculos sem haste empoleirado em seu nariz e gravata plastrom. Dogar cultiva um ritmo cadenciado e fala em baixo tom para atrair atenção, freqüentemente respondendo suas próprias perguntas. Há muito aposentado do serviço ativo da luta de classes, a boa luta contra a exploração, ele agora se reclina em sua cadeira de couro preta, de onde orquestra as atividades da Imac.
A Imac, a Associação para Monitoramento Independente do Trabalho Infantil, é uma força policial comercial. Seus investigadores são encarregados de manter as crianças de Sialkot longe das oficinas de bolas de futebol. A criação da Imac foi uma das condições do Acordo de Atlanta, e os fabricantes paquistaneses são obrigados a custear a organização. Seus clientes, as empresas e entidades globais, não se envolvem -apesar de lucrarem com a melhoria de imagem. A Federação Mundial da Indústria de Materiais Esportivos é uma exceção. Ela fez uma doação. Uma vez.
A Imac é desconfortavelmente híbrida. Ela não é tão independente quanto seu nome sugere, já que é custeada pelas empresas que monitora. Até o momento nenhum escândalo de corrupção abalou a organização; aparentemente os fiscais ainda seguem as regras. Para assegurar que continuem assim, Dogar tem um computador contendo todos os dados relevantes sobre os centros de produção e um software que seleciona aleatoriamente os lugares que serão inspecionados.
O computador está instalado em um escritório onde, a cada manhã, ele traça um plano diário de ação. Um clique de mouse é a forma de Dogar coibir a corrupção de fiscais individuais, para impedir que os fabricantes comprem imunidade do seu sistema. As inspeções ocorrem sem aviso. Elas são breves e os fiscais são tão cordiais quanto a polícia rodoviária durante inspeções. Os fiscais se movem rapidamente pelas instalações: as salas onde os costureiros ficam sentados enfileirados ou as pequenas salas que contêm até cinco pessoas. Os trabalhadores ficam sentados em tapetes ou acocorados em almofadas. Na parede invariavelmente há um pôster da Adidas, Nike ou alguma outra grande marca -detalhando regras de trabalho, salários mínimos ou máximo de horas de trabalho. Em algumas salas há aparelhos de TV pendurados no teto exibindo partidas de críquete. Paquistão contra Índia é sempre um grande sucesso.
Os costureiros reconhecem a presença dos fiscais mas não se dirigem a eles. Por sua vez, os fiscais não confraternizam com os trabalhadores. Eles verificam suas idades e checam suas identidades quando alguém parece jovem demais. Mas nenhum trabalhador menor de idade foi encontrado nos últimos anos. A violação de um princípio básico do Acordo de Atlanta constituiria base para o cancelamento dos contratos -e a falência certa. Os fiscais checam as condições dos banheiros e da água para beber; eles avaliam o espaço fornecido a cada empregado: 80 centímetros quadrados é o mínimo legal. Dogar prefere não revelar quando a última criança foi encontrada.
Antes da Copa do Mundo de 2002, fotos de crianças trabalhando em Sialkot apareceram na imprensa. "Falsificações!" espumou Dogar. As crianças não estavam sentadas da forma correta, as ferramentas não eram as certas e o fundo era sempre o mesmo -apesar das fotos terem sido supostamente tiradas em lugares diferentes. Agora, às vésperas do novo torneio, mesmo uma entrevista com uma ex-criança operária poderia causar dano permanente. O passado é história, disse Dogar. Ele ainda está em seu escritório e no chão há uma pilha de citações e prêmios. A no topo é do Texas. Dogar é um bom orador, um convidado bastante procurado para conferências internacionais. Ele ajuda a reduzir a culpa que persegue suas platéias quando pensam estar comprando produtos feitos por crianças.
É claro que o trabalho infantil é errado, disse Dogar; é claro que precisa ser abolido. Mas ele nunca deixa de ficar surpreso com a suposição unânime dos visitantes estrangeiros, a de que o trabalho infantil é produto da pobreza. Dogar se descreve como pragmático em vez de um romântico social. A verdadeira causa do trabalho infantil, ao seu ver, não é a pobreza dos pais, mas a ganância dos pais. Nas aldeias ficou rapidamente aparente que as famílias que enviavam seus filhos ao trabalho viviam em casas melhores, as de tijolos, não nas feitas de esterco. Muitas tinham aparelhos de TV. E ele soube que os pais -Dogar se reclinou para frente e baixou sua voz- gastavam grande parte do dinheiro em filmes pornográficos ou em apostas em bilhares.
Ele olhou para seu relógio; o tempo passou voando. Ele seguiu para o jardim, despejou carvão na churrasqueira e ajeitou os kebabs de carneiro sobre as chamas. Dogar estava promovendo naquele dia seu churrasco mensal, um evento que visa promover o espírito de equipe entre os fiscais. Eram 4 da tarde e os fiscais estavam voltando de suas rotas. Eles pareciam à vontade, satisfeitos: eles eram os vencedores da experiência de Sialkot. Suas vidas estavam tão em ordem quanto as de funcionários públicos alemães. Seus empregos são seguros -com um pouco de sorte os manterão até o dia de se aposentarem.
Do ponto de vista de Dogar a experiência poderia ser considerada um sucesso. Mas o ponto de vista dele não é o único.
O dilema de uma mãe
Com um marido inválido ao seu lado, Sehzadi Akhtar -o único arrimo da família- às vezes desejava que sua filha também pudesse fazer bolas de futebol. Akhtar reconhece quase que pedindo desculpas. Os vizinhos sentados ao lado dela no quintal fingem não ouvir. Você não diz tal coisa em Sialkot; isto poderia lhe custar seu emprego. Akhtar não se encaixa no esquemas da coisas de Dogar. Nem ela e nem seu marido desperdiçam seu dinheiro; é tudo o que podem fazer para sobreviver. A renda deles é suficiente para farinha, açúcar, sal e frutas -o essencial. Abida, a vizinha dela, reconheceu com relutância que um de seus filhos trabalhou na indústria quando era criança.
Ela ainda sente falta da renda que ele trazia. É difícil alimentar a família, ela disse, porque as empresas se recusaram a aumentar o valor pago para os adultos quando o trabalho infantil foi proibido. Elas não se importam com os apuros financeiros dos trabalhadores, ela acrescentou.
Apesar dos salários terem aumentado nos anos após a intervenção, a inflação subiu ainda mais e engoliu a diferença. Resumindo: os trabalhadores da indústria da bola de futebol agora ganham menos do que há cinco anos.
Quando informados que crianças podiam trabalhar na Alemanha, que os filhos dos agricultores tradicionalmente ajudam na colheita, Akhtar e seus vizinhos ficaram ultrajados. Como isto era possível? Vocês tiram parte de nossa renda, eles disseram, proíbem nossas crianças de produzirem mesmo uma única bola depois das aulas e então permitem que seus próprios filhos trabalhem?
"É obra das grandes corporações. Elas não querem fotos de crianças trabalhando na mídia", disse Dogar. O mantra delas sempre foi "escola sim, trabalho não" -nunca "escola e trabalho".
Os pais de ex-crianças operárias fizeram o óbvio. Em vez de enviarem seus filhos para uma das novas escolas, elas as enviaram para as olarias e fábricas metalúrgicas. O trabalho é mais difícil e mais perigoso, mas está fora do alcance do Acordo de Atlanta -que apenas se aplica à indústria de bolas de futebol de Sialkot.
A tentativa de tornar o mundo um lugar melhor não apenas privou as famílias da renda de seus filhos. Antes de Atlanta as bolas eram produzidas localmente, nas aldeias. As mulheres podiam cuidar de seus filhos e dos lares enquanto faziam algumas bolas. O novo regime acabou com isto. O Acordo de Atlanta criou um forte motivo para a centralização da produção: a supervisão. Para ajudar a garantir o cumprimento das normas pelos fabricantes foi necessário reduzir o número de locais de costura. Alguns construíram grandes galpões, outros alugaram prédios vagos. As costureiras precisaram deixar seus bairros e aldeias e pegar condução aos locais de trabalho -algo intolerável para muitos maridos. Algumas mulheres criaram rodas de costura nos bairros, mas nem todas puderam aderir. O número de trabalhadores caiu.
Akhtar e suas amigas tiveram sorte; elas trabalham em seu próprio bairro. E outro golpe de sorte poderá estar a caminho. Elas poderão obter ajuda de um homem com poder e dinheiro suficiente para romper com o costume que as prende aos seus bairros e mina a capacidade da indústria de competir globalmente. Elas poderão em breve deixar suas casas e quintais e -como as mulheres na Europa e nos Estados Unidos- irem trabalhar em fábricas.
O futuro da bola de futebol
O homem que quer ajudá-las é Masood Akhtar Khawaja. A empresa dele, a Forward Sports, está localizada em um dos imponentes prédios de vidro espelhado que parecem tão deslocados ao lado das choupanas de Sialkot.
Khawaja é um fabricante de bolas de futebol e filho de um fabricante de bolas de futebol. Caso o futuro e o mercado global permitam, a próxima geração dará continuidade a esta tradição. O filho de Khawaja agora dirige as atividades de pesquisa e desenvolvimento da empresa -que são voltadas tanto para garantir o futuro da dinastia quanto o estilo de vida confortável da família.
As instalações de pesquisa e desenvolvimento estão localizadas no porão, atrás de paredes espessas. Em salas divididas como gabinetes, do outro lado de uma porta de vidro, homens em aventais brancos de laboratório -parecidos com médicos- trabalham em mesas de metal e utilizam instrumentos de aparência estranha. Khawaja está pagando para que estes homens aperfeiçoem um objeto aparentemente simples: a bola de futebol.
Como é possível reduzir a retenção de água, estabilizar o formato da bola, otimizar suas propriedades aerodinâmicas? Quão suave ou áspera deve ser a superfície para permitir ao lateral fazer um cruzamento perfeito e como isto afeta a durabilidade da bola?
Estas são as perguntas que ocupam os cientistas de Khawaja. Eles procuram por respostas usando banhos de imersão, sistemas de lixamento e disparadores automáticos de bolas. Eles medem elasticidade, disparam bolas contra placas de metal a 80 km/h e registram quando elas murcham. Após 24, 48 ou 72 horas.
Estes testes visam assegurar a qualidade e assegurar o futuro da empresa. Como todos na indústria, Khawaja está em uma situação delicada. A concorrência chinesa ataca de um lado, inundando o mercado com bolas baratas, costuradas mecanicamente. Os produtores tailandeses atacam de outro, tomando parte do mercado de Khawaja com seus produtos de alta tecnologia, colados. Seus concorrentes já obtiveram uma grande vitória. Neste ano, os estádios da Copa do Mundo não contarão com as bolas costuradas à mão da Adidas, feitas em Sialkot. Bolas coladas da Tailândia tomarão seu lugar.
Se ele quiser continuar nos negócios, e permanecer no lado vencedor do jogo da globalização, as bolas de Khawaja precisarão ser melhores e mais baratas. Sialkot já produziu 4/5 das bolas de futebol do mundo; esta participação de mercado já encolheu em ¼. Khawaja espera que a pressão aumentará nos próximos anos. As bolas baratas da China melhorarão, as bolas de alta tecnologia da Tailândia ficarão mais baratas. Ele precisa explorar todas as chances que tiver, ou o jogo estará perdido.
Em uma de suas fábricas, centenas de costureiros trabalham com máquinas que mantêm o fio em constante tensão. Isto garante uma qualidade consistente -mesmo no final do expediente, quando os trabalhadores começam a se cansar. Outro espaço possui uma linha de produção totalmente automatizada para laminação, uma tecnologia que Khawaja importou da Europa. E um terceira espaço ainda aguarda pelo início do futuro.
Este espaço está reservado para as costureiras. Muitas delas e todas mulheres. Khawaja considera as mulheres mais conscientes -e menos propensas a distração- do que os homens. Ele quer que elas comecem a trabalhar aqui o mais cedo possível. Para tranqüilizar seus maridos, ele transportará as mulheres de casa para o trabalho e de volta para casa. Se necessário, ele pagará a elas mais do que aos homens. Os tradicionalistas na cidade estão enfurecidos com estas propostas. Khawaja não dá a mínima.
Seus maiores críticos são pares de Zakauddin Khawaja -o tio de Masood. Eles são aqueles que salvaram a indústria da ruína na década passada. O trabalho deles está concluído. Chegou o momento de se afastarem e permitirem que Masood Khawaja assuma o comando, para moldar o novo século do Paquistão.
Bolas de futebol e grilhões
Futebol e globalização
Uwe Buse
As bolas de futebol do mundo são feitas em Sialkot, Paquistão. Mas a relativa prosperidade da cidade está ameaçada -por produtores concorrentes do Extremo Oriente e por ativistas de direitos humanos do Ocidente.
Os prédios se agrupam nos arredores da cidade, no fim de uma rua onde começa o mato. A água é escassa. O mato é seco e magro. Assim como os bodes, ovelhas, búfalos -e as pessoas. Uma imagem de monotonia.
As casas são rudimentares; algumas são feitas de esterco, as melhores de tijolos. Elas possuem dois cômodos, às vezes três. Os pisos são de concreto. Prateleiras de madeira nas paredes guardam pilhas de jornais velhos, algumas canecas e pratos.
Sehzadi Akhtar vive em Sialkot há anos, desde que se casou com um homem que não consegue mais sustentar sua família. Ele quebrou o braço e o osso não se solidificou de forma apropriada. O marido de Akhtar continua aleijado, de forma que ela agora carrega dois fardos: ela cuida do lar e sustenta a família. Como seus vizinhos, ela fica sentada no quintal por sete ou oito horas por dia, costurando bolas. Bolas de futebol.
O trabalho deles é vendido sob a marca "Derbystar" -um produto de qualidade; é preciso força para fazer a agulha penetrar no plástico espesso. Uma bola como esta pode custar 99 euros nas lojas européias. Akhtar leva três horas e 750 pontos para costurar os 32 gomos separados com fio encerado, para produzir uma bola que ela entregará para um fabricante no centro. Ela receberá 40 rúpias, cerca de 60 centavos. Akhtar consegue costurar três bolas por dia, depois é hora de cuidar dos deveres do lar. Ela é magra, cansada e profundamente devota. E, alguns diriam, uma das perdedoras da cidade -uma vítima de uma tentativa bem-intencionada mas mal concebida para tornar o mundo um lugar melhor.
Esta experiência foi lançada no nordeste do Paquistão. Em Sialkot, a cidade está crescendo fora de controle. Novas casas, novas choupanas, surgem diariamente em seus limites. No centro as pessoas sufocam no trânsito: uma selva de carroças puxadas por burros, ônibus expelindo fumaça preta, carros compactos e motos scooters que transportam famílias inteiras.
Os recém-chegados vêm das províncias do oeste que fazem fronteira com o Afeganistão -e com a guerra. E também das províncias do sul, uma região onde as realidades da vida são ainda mais duras. Eles sonham em encontrar trabalho, um futuro em Sialkot. Se não aqui -no coração industrial do Paquistão, a capital mundial da produção de bola de futebol- onde mais poderiam ganhar a vida?
As pessoas vêm a esta cidade de lugares distantes; 60% das bolas de futebol do mundo são feitas aqui, por mais de 200 produtores. Eles possuem nomes como "Laser", "Estrella International", "Ali Trading Company" e "Fox & Associates". Algumas são estruturas de apenas uma sala equipada com um telefone e alguns arquivos. Outras possuem escritórios em torres de vidro e concreto que caberiam nas paisagens urbanas européias. Como regra estas empresas enviam sua produção para exterior. Elas estão integradas na economia global, elos na cadeia internacional de valor. Os proprietários prestam serviço para Nike, Adidas e outras corporações que anunciam produtos "estilo de vida". Seus ganhos transformaram a região no Eldorado do Paquistão. As pessoas aqui ganham cerca de U$ 1 mil por ano, quase o dobro da média nacional.
As bolas são todas feitas à mão -em 2 mil oficinas, galpões e quintais onde 40 mil homens e mulheres costuram, cada um subcontratado por uma empresa paquistanesa, cada um deles um empreendedor à sua própria maneira. Os trabalhadores são pagos por bola. As famílias sem campos para cultivar e sem búfala para ordenhar precisam de pelo menos dois costureiros em tempo integral para colocar três refeições na mesa por dia. Estas pessoas são membros do proletariado global. Sua pobreza torna o produto acessível aos ricos. E permitem que as marcas façam campanhas de imagem exorbitantemente caras.
É assim que as coisas são hoje. E como eram em 1996, quando a Inglaterra recebeu a Eurocopa: um momento oportuno para mudar o mundo. A iniciativa nasceu nos Estados Unidos. Zakauddin Khawaja ainda lembra vividamente do momento: tudo começou com um telefonema de seu agente nos Estados Unidos. Irritado, o agente descreveu o que via como um escândalo, um ataque da imprensa americana à economia de Sialkot, ao bom nome do Paquistão. Uma ação imediata era exigida, ele disse.
Naquela época, Khawaja era executivo-chefe da Capital Sports. Ele empregava cerca de 2 mil costureiros: homens, mulheres -e crianças. Ele nem contesta o fato nem pede desculpas por ele; afinal, sua empresa nem de longe era a única infratora. Na época, pelo menos um quarto de sua força de trabalho era menor de idade.
Colocando um fim ao trabalho infantil
Segundo o agente de Khawaja, grupos de direitos humanos estavam assediando a visita do primeiro-ministro paquistanês aos Estados Unidos. Sua missão: alertar o mundo do futebol que seus principais astros estavam chutando bolas manchadas com o suor do trabalho infantil.
Noticiários de televisão desfilaram representantes da Nike e outras marcas fingindo surpresa. Seus porta-vozes alegavam que não havia relatos de trabalho infantil, mas investigariam as alegações. Logo depois as marcas apresentaram um ultimato aos seus parceiros comerciais asiáticos. As crianças deviam desaparecer das fábricas ou as encomendas deixariam de ser feitas. Os ativistas de direitos humanos festejaram. Khawaja não.
"Nós não tínhamos alternativa", disse Khawaja, sentado na cadeira de seu escritório, um velho de 72 anos encurvado pela idade e abatido pelo câncer. Ele não precisa mais medir suas palavras ou adoçar a verdade amarga. "Nós não proibimos o trabalho infantil por bondade de nossos corações. Nós o fizemos porque perderíamos o negócio."
Antes do prazo final do ultimato, os fabricantes de Sialkot, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) assinaram um acordo. As corporações não quiseram participar diretamente das negociações. O assunto todo era feio demais.
O Acordo de Atlanta, como passou a ser conhecido, foi saudado como um avanço pelas organizações de direitos humanos. Ele marcava a primeira vez que arrancaram uma concessão obrigatória de toda uma indústria -a proibição de trabalho infantil em suas fábricas. Os fabricantes tinham 18 meses para cumprir as condições estabelecidas pelo acordo de oito páginas, um documento que representava rendição incondicional. Mesmo hoje, quando Khawaja fala a respeito, ele ainda mal consegue conter sua raiva.
"Nossa única preocupação era atender nossos clientes", ele disse. O trabalho de fato era feito por intermediários, que forneciam pessoal, alugavam as oficinas e eram responsáveis pela entrega no prazo, ele acrescentou.
"Se alguém era responsável, eram os intermediários", argumentou Khawaja -e, é claro, os pais das crianças. Afinal, eram eles que arrastavam seus filhos e filhas ao trabalho. "Ninguém os encorajava." Ter crianças nas fábricas não beneficiava em nada as empresas, não aumentava os lucros em uma única rúpia: "Nós pagamos por bola, não por hora". Ele não mencionou os salários de fome que seus trabalhadores recebem. Ele ainda sente que foi tratado injustamente; ele é apenas outro empresário tentando ganhar a vida. E isto é difícil o suficiente em uma economia global, onde é preciso competir com países como a China. Um país onde os salários são mais baixos, as horas de trabalho mais longas e as condições são ainda piores do que no Paquistão.
Onde máquinas produzem bolas dez vezes mais rapidamente do que os costureiros manuais e onde a produção mecanizada é protegida por patentes -e, portanto, fora do alcance das empresas de Sialkot. Khawaja reclama como um dono de pequena empresa na Alemanha.
A "interferência" dos autonomeados defensores de direitos humanos do exterior não foi requisitada, ele sente. Mas novamente estes senhores coloniais modernos estavam impondo seus próprios valores e normas a outros países. Khawaja não disse isto em tantas palavras, mas a recriminação estava nas entrelinhas. Os estrangeiros o forçaram a pensar nos trabalhadores e reconhecer suas dificuldades. Ele preferiria não saber. Tudo se resume, ele resmunga com revolta, a apenas outra cruzada ao estilo "salve as crianças".
Seu tom se tornou de desdém e ele encerrou a entrevista, dizendo estar cansado, pois a quimioterapia o tinha esgotado. Se apoiando fortemente em sua bengala, ele seguiu pelos corredores da Câmara de Comércio até seu escritório. As pessoas pelas quais passou no corredor o cumprimentaram com respeito, se curvando. Elas o consideram um visionário, o homem que salvou a indústria do colapso.
O aliado mais importante de Khawaja sempre foi um líder sindical, um pragmático que compartilha sua visão de mundo: Nasir Dogar, uma figura garbosa, vitoriana, que usa óculos sem haste empoleirado em seu nariz e gravata plastrom. Dogar cultiva um ritmo cadenciado e fala em baixo tom para atrair atenção, freqüentemente respondendo suas próprias perguntas. Há muito aposentado do serviço ativo da luta de classes, a boa luta contra a exploração, ele agora se reclina em sua cadeira de couro preta, de onde orquestra as atividades da Imac.
A Imac, a Associação para Monitoramento Independente do Trabalho Infantil, é uma força policial comercial. Seus investigadores são encarregados de manter as crianças de Sialkot longe das oficinas de bolas de futebol. A criação da Imac foi uma das condições do Acordo de Atlanta, e os fabricantes paquistaneses são obrigados a custear a organização. Seus clientes, as empresas e entidades globais, não se envolvem -apesar de lucrarem com a melhoria de imagem. A Federação Mundial da Indústria de Materiais Esportivos é uma exceção. Ela fez uma doação. Uma vez.
A Imac é desconfortavelmente híbrida. Ela não é tão independente quanto seu nome sugere, já que é custeada pelas empresas que monitora. Até o momento nenhum escândalo de corrupção abalou a organização; aparentemente os fiscais ainda seguem as regras. Para assegurar que continuem assim, Dogar tem um computador contendo todos os dados relevantes sobre os centros de produção e um software que seleciona aleatoriamente os lugares que serão inspecionados.
O computador está instalado em um escritório onde, a cada manhã, ele traça um plano diário de ação. Um clique de mouse é a forma de Dogar coibir a corrupção de fiscais individuais, para impedir que os fabricantes comprem imunidade do seu sistema. As inspeções ocorrem sem aviso. Elas são breves e os fiscais são tão cordiais quanto a polícia rodoviária durante inspeções. Os fiscais se movem rapidamente pelas instalações: as salas onde os costureiros ficam sentados enfileirados ou as pequenas salas que contêm até cinco pessoas. Os trabalhadores ficam sentados em tapetes ou acocorados em almofadas. Na parede invariavelmente há um pôster da Adidas, Nike ou alguma outra grande marca -detalhando regras de trabalho, salários mínimos ou máximo de horas de trabalho. Em algumas salas há aparelhos de TV pendurados no teto exibindo partidas de críquete. Paquistão contra Índia é sempre um grande sucesso.
Os costureiros reconhecem a presença dos fiscais mas não se dirigem a eles. Por sua vez, os fiscais não confraternizam com os trabalhadores. Eles verificam suas idades e checam suas identidades quando alguém parece jovem demais. Mas nenhum trabalhador menor de idade foi encontrado nos últimos anos. A violação de um princípio básico do Acordo de Atlanta constituiria base para o cancelamento dos contratos -e a falência certa. Os fiscais checam as condições dos banheiros e da água para beber; eles avaliam o espaço fornecido a cada empregado: 80 centímetros quadrados é o mínimo legal. Dogar prefere não revelar quando a última criança foi encontrada.
Antes da Copa do Mundo de 2002, fotos de crianças trabalhando em Sialkot apareceram na imprensa. "Falsificações!" espumou Dogar. As crianças não estavam sentadas da forma correta, as ferramentas não eram as certas e o fundo era sempre o mesmo -apesar das fotos terem sido supostamente tiradas em lugares diferentes. Agora, às vésperas do novo torneio, mesmo uma entrevista com uma ex-criança operária poderia causar dano permanente. O passado é história, disse Dogar. Ele ainda está em seu escritório e no chão há uma pilha de citações e prêmios. A no topo é do Texas. Dogar é um bom orador, um convidado bastante procurado para conferências internacionais. Ele ajuda a reduzir a culpa que persegue suas platéias quando pensam estar comprando produtos feitos por crianças.
É claro que o trabalho infantil é errado, disse Dogar; é claro que precisa ser abolido. Mas ele nunca deixa de ficar surpreso com a suposição unânime dos visitantes estrangeiros, a de que o trabalho infantil é produto da pobreza. Dogar se descreve como pragmático em vez de um romântico social. A verdadeira causa do trabalho infantil, ao seu ver, não é a pobreza dos pais, mas a ganância dos pais. Nas aldeias ficou rapidamente aparente que as famílias que enviavam seus filhos ao trabalho viviam em casas melhores, as de tijolos, não nas feitas de esterco. Muitas tinham aparelhos de TV. E ele soube que os pais -Dogar se reclinou para frente e baixou sua voz- gastavam grande parte do dinheiro em filmes pornográficos ou em apostas em bilhares.
Ele olhou para seu relógio; o tempo passou voando. Ele seguiu para o jardim, despejou carvão na churrasqueira e ajeitou os kebabs de carneiro sobre as chamas. Dogar estava promovendo naquele dia seu churrasco mensal, um evento que visa promover o espírito de equipe entre os fiscais. Eram 4 da tarde e os fiscais estavam voltando de suas rotas. Eles pareciam à vontade, satisfeitos: eles eram os vencedores da experiência de Sialkot. Suas vidas estavam tão em ordem quanto as de funcionários públicos alemães. Seus empregos são seguros -com um pouco de sorte os manterão até o dia de se aposentarem.
Do ponto de vista de Dogar a experiência poderia ser considerada um sucesso. Mas o ponto de vista dele não é o único.
O dilema de uma mãe
Com um marido inválido ao seu lado, Sehzadi Akhtar -o único arrimo da família- às vezes desejava que sua filha também pudesse fazer bolas de futebol. Akhtar reconhece quase que pedindo desculpas. Os vizinhos sentados ao lado dela no quintal fingem não ouvir. Você não diz tal coisa em Sialkot; isto poderia lhe custar seu emprego. Akhtar não se encaixa no esquemas da coisas de Dogar. Nem ela e nem seu marido desperdiçam seu dinheiro; é tudo o que podem fazer para sobreviver. A renda deles é suficiente para farinha, açúcar, sal e frutas -o essencial. Abida, a vizinha dela, reconheceu com relutância que um de seus filhos trabalhou na indústria quando era criança.
Ela ainda sente falta da renda que ele trazia. É difícil alimentar a família, ela disse, porque as empresas se recusaram a aumentar o valor pago para os adultos quando o trabalho infantil foi proibido. Elas não se importam com os apuros financeiros dos trabalhadores, ela acrescentou.
Apesar dos salários terem aumentado nos anos após a intervenção, a inflação subiu ainda mais e engoliu a diferença. Resumindo: os trabalhadores da indústria da bola de futebol agora ganham menos do que há cinco anos.
Quando informados que crianças podiam trabalhar na Alemanha, que os filhos dos agricultores tradicionalmente ajudam na colheita, Akhtar e seus vizinhos ficaram ultrajados. Como isto era possível? Vocês tiram parte de nossa renda, eles disseram, proíbem nossas crianças de produzirem mesmo uma única bola depois das aulas e então permitem que seus próprios filhos trabalhem?
"É obra das grandes corporações. Elas não querem fotos de crianças trabalhando na mídia", disse Dogar. O mantra delas sempre foi "escola sim, trabalho não" -nunca "escola e trabalho".
Os pais de ex-crianças operárias fizeram o óbvio. Em vez de enviarem seus filhos para uma das novas escolas, elas as enviaram para as olarias e fábricas metalúrgicas. O trabalho é mais difícil e mais perigoso, mas está fora do alcance do Acordo de Atlanta -que apenas se aplica à indústria de bolas de futebol de Sialkot.
A tentativa de tornar o mundo um lugar melhor não apenas privou as famílias da renda de seus filhos. Antes de Atlanta as bolas eram produzidas localmente, nas aldeias. As mulheres podiam cuidar de seus filhos e dos lares enquanto faziam algumas bolas. O novo regime acabou com isto. O Acordo de Atlanta criou um forte motivo para a centralização da produção: a supervisão. Para ajudar a garantir o cumprimento das normas pelos fabricantes foi necessário reduzir o número de locais de costura. Alguns construíram grandes galpões, outros alugaram prédios vagos. As costureiras precisaram deixar seus bairros e aldeias e pegar condução aos locais de trabalho -algo intolerável para muitos maridos. Algumas mulheres criaram rodas de costura nos bairros, mas nem todas puderam aderir. O número de trabalhadores caiu.
Akhtar e suas amigas tiveram sorte; elas trabalham em seu próprio bairro. E outro golpe de sorte poderá estar a caminho. Elas poderão obter ajuda de um homem com poder e dinheiro suficiente para romper com o costume que as prende aos seus bairros e mina a capacidade da indústria de competir globalmente. Elas poderão em breve deixar suas casas e quintais e -como as mulheres na Europa e nos Estados Unidos- irem trabalhar em fábricas.
O futuro da bola de futebol
O homem que quer ajudá-las é Masood Akhtar Khawaja. A empresa dele, a Forward Sports, está localizada em um dos imponentes prédios de vidro espelhado que parecem tão deslocados ao lado das choupanas de Sialkot.
Khawaja é um fabricante de bolas de futebol e filho de um fabricante de bolas de futebol. Caso o futuro e o mercado global permitam, a próxima geração dará continuidade a esta tradição. O filho de Khawaja agora dirige as atividades de pesquisa e desenvolvimento da empresa -que são voltadas tanto para garantir o futuro da dinastia quanto o estilo de vida confortável da família.
As instalações de pesquisa e desenvolvimento estão localizadas no porão, atrás de paredes espessas. Em salas divididas como gabinetes, do outro lado de uma porta de vidro, homens em aventais brancos de laboratório -parecidos com médicos- trabalham em mesas de metal e utilizam instrumentos de aparência estranha. Khawaja está pagando para que estes homens aperfeiçoem um objeto aparentemente simples: a bola de futebol.
Como é possível reduzir a retenção de água, estabilizar o formato da bola, otimizar suas propriedades aerodinâmicas? Quão suave ou áspera deve ser a superfície para permitir ao lateral fazer um cruzamento perfeito e como isto afeta a durabilidade da bola?
Estas são as perguntas que ocupam os cientistas de Khawaja. Eles procuram por respostas usando banhos de imersão, sistemas de lixamento e disparadores automáticos de bolas. Eles medem elasticidade, disparam bolas contra placas de metal a 80 km/h e registram quando elas murcham. Após 24, 48 ou 72 horas.
Estes testes visam assegurar a qualidade e assegurar o futuro da empresa. Como todos na indústria, Khawaja está em uma situação delicada. A concorrência chinesa ataca de um lado, inundando o mercado com bolas baratas, costuradas mecanicamente. Os produtores tailandeses atacam de outro, tomando parte do mercado de Khawaja com seus produtos de alta tecnologia, colados. Seus concorrentes já obtiveram uma grande vitória. Neste ano, os estádios da Copa do Mundo não contarão com as bolas costuradas à mão da Adidas, feitas em Sialkot. Bolas coladas da Tailândia tomarão seu lugar.
Se ele quiser continuar nos negócios, e permanecer no lado vencedor do jogo da globalização, as bolas de Khawaja precisarão ser melhores e mais baratas. Sialkot já produziu 4/5 das bolas de futebol do mundo; esta participação de mercado já encolheu em ¼. Khawaja espera que a pressão aumentará nos próximos anos. As bolas baratas da China melhorarão, as bolas de alta tecnologia da Tailândia ficarão mais baratas. Ele precisa explorar todas as chances que tiver, ou o jogo estará perdido.
Em uma de suas fábricas, centenas de costureiros trabalham com máquinas que mantêm o fio em constante tensão. Isto garante uma qualidade consistente -mesmo no final do expediente, quando os trabalhadores começam a se cansar. Outro espaço possui uma linha de produção totalmente automatizada para laminação, uma tecnologia que Khawaja importou da Europa. E um terceira espaço ainda aguarda pelo início do futuro.
Este espaço está reservado para as costureiras. Muitas delas e todas mulheres. Khawaja considera as mulheres mais conscientes -e menos propensas a distração- do que os homens. Ele quer que elas comecem a trabalhar aqui o mais cedo possível. Para tranqüilizar seus maridos, ele transportará as mulheres de casa para o trabalho e de volta para casa. Se necessário, ele pagará a elas mais do que aos homens. Os tradicionalistas na cidade estão enfurecidos com estas propostas. Khawaja não dá a mínima.
Seus maiores críticos são pares de Zakauddin Khawaja -o tio de Masood. Eles são aqueles que salvaram a indústria da ruína na década passada. O trabalho deles está concluído. Chegou o momento de se afastarem e permitirem que Masood Khawaja assuma o comando, para moldar o novo século do Paquistão.