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Mudanças na América Latina incitam debate

Enviado: 29 Mai 2006, 13:44
por spink
El País


Mudanças na América Latina incitam debate
Com críticas ou apoio, os intelectuais buscam explicações para a transformação política e social

Winston Manrique
Em Madri

As transformações políticas, econômicas, sociais e culturais que a América Latina enfrenta causaram dúvidas na comunidade internacional sobre seu futuro. EL PAÍS convidou 20 intelectuais latino-americanos para que expliquem essa reinvenção continental, dominada pelos novos ares de esquerda que vão da Terra do Fogo ao rio Bravo. Opiniões polarizadas, mas unidas pela expectativa de uma energia que tenta superar o desencanto de anos de frustrações com seus governantes e o desprezo internacional, depois da queda do Muro de Berlim em 1989 e aguçados pelo 11 de setembro de 2001. Trata-se da primeira geração latino-americana que revoluciona democraticamente o destino de seus países.

Os fantasmas sufocados da América Latina começaram a aparecer, prova de que o continente está mais vivo que nunca. Que se reinventa depois de décadas de governos que saquearam as promessas e as esperanças de seus cidadãos.

É o que percebem os intelectuais latino-americanos, com dúvidas e opiniões polarizadas diante das mudanças políticas e econômicas que ocorrem na região, mas unidos por uma mesma sensação de expectativa e otimismo. "Há decepção. Mas embora tudo esteja muito nublado, e as relações entre os países sejam tensas, é fundamental que as pessoas opinem", afirma Nélida Piñon, escritora brasileira vencedora do Prêmio Príncipe de Astúrias em 2005.

Uma América Latina que muda de rumo e se mostra fragmentada. Como se viu há pouco em Viena na cúpula União Européia-América Latina, que reuniu 60 chefes de Estado e de governo. E que terá outra representação na quinta-feira em Buenos Aires, com uma manifestação na praça de Maio na qual o público pedirá a Nestor Kirchner e sua mulher, no melhor estilo Perón-Perón, que se apresente à reeleição presidencial na Argentina em 2007. E, como ruído de fundo, slogans contra o sistema e a reivindicação de nacionalismos e de unidade continental.

Será a romaria de todos os fantasmas latino-americanos que assustam, mas já não espantam: os ressuscitados da esquerda em suas diversas manifestações e fórmulas políticas que eram consideradas anacrônicas e a perpetuação das desigualdades e injustiças em todos os níveis. Mas seus habitantes decidiram dar-se outra oportunidade. É o que se percebe desde o rio Bravo até a Terra do Fogo, um território de 450 milhões de pessoas que dão vida a 22 nações. E onde tradicionalmente os intelectuais tiveram uma presença relevante. EL PAÍS convidou 20 deles, que não foram muito escutados na Espanha sobre o tema, para que dêem as chaves do presente da América Latina.

Como preâmbulo de um continente com vocação para laboratório de revoluções e reformas, as palavras do narrador e poeta colombiano Álvaro Mutis, prêmio Príncipe de Astúrias das Letras de 1997, que resume o sentimento tão legendário quanto real do latino-americano: "Nunca participei de política. Nunca votei nem votarei. Os políticos me parecem todos um desastre de cinismo e egoísmo. Aqui estamos chegando ao nível mais crítico desse egoísmo e cinismo. Não creio nem na esquerda nem na direita. Tudo são pretextos cínicos para tomar o poder e ganhar dinheiro. Na Europa do século 18 havia intercâmbio de soluções, também destruídas pelo político profissional. Havia um caminho que se construía, aqui não se faz nada. Só há mortos, miséria, corrupção, falta de sentido. Já não há fissuras entre países, há abismos! Por isso não vejo o que se pode fazer. Supõe-se que os governos tenham mecanismos para buscar soluções. Mas não querem, e deixam que tudo aconteça como nas fotos mais macabras e cínicas".

Uma vertigem de decepções, onde abre caminho Carlos Monsiváis, um dos escritores e pensadores de referência no México, para indicar os fantasmas que trouxeram consigo este momento: "Na América Latina, e isso é fundamental, já é possível falar de América Latina, e não como se costumava fazer, da soma mecânica dos países. Para a unidade, ainda não muito clara mas irreversível, contribuem vários fatores: os efeitos do neoliberalismo (o desemprego, as grandes migrações, os ecocídios...), a presença militante dos hispânicos ou latinos nos EUA, o aspecto das grandes cidades (com suas redes de franquias), o impulso das indústrias culturais, as catástrofes dos sistemas educacionais, as pressões poderosas da América do Norte e do sistema financeiro internacional e, especialmente no campo cultural, a confluência da literatura, música, artes plásticas, arquitetura, teatro de cada país.
A democracia e a sociedade civil são os conceitos que substituíram em quase toda parte a revolução como técnica de afirmação comunitária e meta histórica nunca totalmente alcançada, mas capaz de modificar as vidas. Mas há um limite: a impunidade da classe governante, que em quase todos os países aceita a democracia mas em rigor quase não a leva em conta. As crises do continente são econômicas, sociais, de racismo interminável, de reconsideração do projeto histórico, de injustiça com as mulheres e desamparo diante da violência, onde o narcotráfico joga um papel fundamental. Além disso, a democracia é substituída em muitos países pela mercadologia, que transforma os candidatos em produtos e os cidadãos em falsos consumidores".

Identificados os fantasmas, os analistas reconhecem o aguçamento de uma crise que modificou a geopolítica latino-americana e na qual continua vigente a presença do regime cubano. Para o poeta venezuelano Eugenio Montejo, tudo tem origem no fato de que "diante dos crescentes problemas de pobreza, desemprego, insegurança ou educação, as ações governamentais das últimas décadas foram consideradas em boa parte insatisfatórias ou inviáveis, e como reação aumentaram a radicalização e o descontentamento.

Percebe-se uma tendência a escolher governos de esquerda, cujos processos correspondem à insatisfação atual. Convém distinguir entre a esquerda democrática (Bachelet, Lula ou Tabaré) e a esquerda de evidentes hábitos autocráticos, como a de Chávez".

É uma revolução frágil e conjuntural, segundo o narrador equatoriano Leonardo Valencia. "Uma revolta que surge do cansaço pela exploração indiscriminada, do enfraquecimento da habitual ingerência dos EUA na América Latina, por ter tantas frentes abertas no Oriente e Oriente Médio, e da falta de políticos de nível que tenham voz para não se submeter aos interesses capitalistas. Mas é uma revolução que não ocorre em todos os países. A radical e populista surgiu na Venezuela e Bolívia, pelo peso de seus recursos em petróleo, gás e minerais, e provavelmente ocorrerá no Peru por suas reservas de gás. O Equador, porém, grande produtor de petróleo, tem o dólar americano como moeda e está submetido às pressões dos EUA em conivência com grupos de poder nacionais e uma corrupção desenfreada".

É a hora da discórdia. É o que diz o romancista Horacio Castellanos Moya, de El Salvador. "Não há revolução, mas sim caricatura e fanfarronada; não há renovação, mas sim um enorme desespero das massas empobrecidas. As lideranças políticas se repelem e se repugnam: os argentinos e os uruguaios pela instalação de uma fábrica de papel, os brasileiros e os bolivianos pelo gás, os nicaragüenses e os costarriquenhos pela migração dos primeiros, os venezuelanos e os mexicanos por sua relação com Bush. Não há uma regra nem um modelo. Os EUA estão metidos em sua própria crise e a Europa fica longe demais. O que vejo é caos. Talvez só o Chile se governe pelo senso comum".

Dos principais países, só a Colômbia continua fiel aos EUA, e continuará por mais quatro anos porque é quase certo que Álvaro Uribe seja reeleito. É uma América Latina que surge de uma frustração generalizada e do fracasso de um modelo, reflete o escritor brasileiro Cristovam Buarque, ex-ministro da Educação de Lula e candidato à presidência este ano. "As pessoas se decepcionaram com a democracia e seus partidos." Ele mostra-se preocupado diante dos que dizem ter alternativas como as de Chávez e Morales, "fórmulas do passado que não sabem propor um salto à frente. Vivem a pré-globalização e não buscam a pós-globalização".

Em um ano em que há dez eleições presidenciais, o artista peruano Fernando Bryce diz que o novo mapa deve ser visto com cautela. "Entre as tendências populistas e autoritárias, hoje revestidas de discurso antiimperialista, e a nova centro-esquerda liberal, o que dá na mesma, não vejo nada que se assemelhe a uma idéia de futuro coerente e esperançoso."

Até que aparece o nome do penúltimo responsável por tudo isso: o neoliberalismo. Para o autor chileno Rafael Gumucio, a importação desse modelo nos anos 90 foi mal adaptada. "Estava cheio de incoerências. É um momento apaixonante, em que surge uma esquerda que não adere aos mitos dos 60, e o diálogo de intelectuais torna-se frutífero."
Para o autor boliviano José Edmundo Paz Soldán, o modelo neoliberal deu certa estabilidade ao continente. "Mas não conseguiu, exceto em raras ocasiões, reativar a economia. Revolucionou as expectativas e deixou claro que os problemas estruturais do país exigem mais de uma geração para ser solucionados." Ele lembra que a crise do modelo abriu portas por onde entraram líderes de esquerda e de estirpe populista. "O que não surpreende, porque aqui há tradição de confiança no caudilho, no homem providencial. Do retorno a um discurso conhecido, o nacionalismo populista, e de uma reestruturação do sistema com uma crise que destruiu os partidos tradicionais."

Mas com a chegada de Lula em 2002 se renovou a esperança. Ninguém nega que se vive uma revolução política e social sem precedentes, afirma o artista chileno Alfredo Jaar. "A razão mais clara é a lucidez das novas gerações que reagem sem medo diante da realidade insuportável, e com uma participação ativa em tudo. Quando no resto do mundo sopram ares fascistas, aqui se dá o exemplo de um pensar e agir progressista. Não podemos nos dar o luxo da apatia política da Europa e dos EUA." E, embora haja diferenças entre dirigentes e países, reina o mesmo espírito: "Um novo espírito de sensibilidade social e uma vontade de progresso em todas as esferas da sociedade".

Esse atlas oral da América Latina também tem vozes cheias de espanto. Mario Benedetti é um dos que comemoram o presente. O escritor uruguaio afirma que "no meio de tudo, das contradições internas que existem, a América Latina está melhorando. Vários países elegeram governos progressistas, mas cada país tem seu próprio estilo. Creio inclusive que os EUA estão aprendendo a ser menos agressivos conosco". É importante notar, ele acrescenta, que pela primeira vez os grupos indígenas estão tendo certa presença e se fazendo ouvir. O boliviano Morales é o primeiro presidente indígena do continente.

Uma das mais otimistas é a narradora mexicana Ángeles Mastretta. Não acredita que hoje exista um caos maior que o de outras épocas. "Passei a vida pecando por otimismo, e tive razão. Mas o que continua sendo um desafio e uma vergonha é a desigualdade que propiciamos. Esse é o problema a resolver. Caminhamos bem na consolidação do sistema democrático, é uma conquista. Os eleitos podem nos agradar ou não, mas já são eleições limpas e com credibilidade, depois de longos períodos ditatoriais ou de concertação em alguns países. Isso é um milagre!"
Por isso, o cineasta argentino Juan José Campanella e seu colega peruano Javier Corcuera são contra o preconceito de que tudo é roubado do pobre. O primeiro reconhece que "é uma combinação de crise e sucessos que se tensionam entre si. Os novos governos eleitos marcam um rechaço ao neoliberalismo dos anos 90, que só gerou um aumento da pobreza". Para Corcuera, "o que acontece em países como a Bolívia é um trabalho de longo prazo das organizações sociais de base, que buscaram alternativas de mudança real através da democracia".

Há uma América Latina emaranhada de opiniões que tem duas maneiras ruins de entender, segundo o escritor nicaragüense Sergio Ramírez: "Como uma clonagem de fenômenos, ou buscando culpados como faz o governo dos EUA. As duas são reduções fáceis. Acontece que começaram a naufragar modelos corroídos pela traça, como na Venezuela, tanto que as pessoas chegaram a ver com esperança um golpe de estado, e os golpistas como redentores. Quando os que dão o golpe ficam, surgem ditaduras militares, ou caudilhos populistas, Chávez.

Ocorreu também que o ressurgimento da democracia veio embrulhado no papel de presente de uma economia que traria casa e emprego. Essa falácia desmoronou e os eleitores puderam separar o presente da embalagem. A direita neoliberal provou-se um fracasso, e as pessoas provam algo diferente sob o nome amplo de esquerda ou socialismo".

A verdade é que há uma febre por uma nova América Latina, e Eduardo Galeano não nega que são "processos complexos, contraditórios, que é melhor não rotular nem classificar". O autor uruguaio adverte que dirão que as coisas não estão claras, "e é verdade". Mas lembra que "em tempos obscuros deve-se aprender a voar na escuridão, como os morcegos. O que importa é a energia do vôo, que foi despertada com vontade".

Saídas para o futuro

Os indígenas, os agricultores marginalizados, aprendem o valor do voto, afirma Sergio Ramírez. "E ambos os fenômenos, sentido de soberania e força popular emergente, são ferramentas de um bom futuro." Expressões de uma democracia que se deve cuidar, incentivar e potencializar, opina o autor cubano Pedro Juan Gutiérrez: "Além de manter as liberdades de expressão, reduzir a repressão, e que a Europa tenha um papel importante, enquanto a Espanha deveria ser nosso cordão umbilical". A democracia como grande valor em ascensão também é o que resgata Ángeles Mastretta. Ela espera que os novos governos acabem com o caciquismo e a corrupção como via para atacar a miséria. Diz que, diante das críticas ou da desconfiança que alguns governos possam estar levantando, "os povos não são idiotas, e se se enganarem consertarão. Em todo caso, são donos de seu destino".

A América Latina vive uma crise no processo de integração, segundo a escritora Ana Maria Machado, membro da Academia Brasileira de Letras. "As políticas de pactos associativos são incompatíveis com o retrocesso e a regressão representados pelas políticas populistas. Estas, demagogicamente, dão prioridade à retórica vazia e sonora. E só podem se manter devido à ignorância, à educação precária e à falta de leitura da população. Somos membros de sociedades em que a educação nos foi recusada por muito tempo, e até se negou o voto aos analfabetos.
Avançamos com a ampliação do universo de eleitores. Mas a educação ainda demora." Seu compatriota Cristovam Buarque vê o futuro em garantir educação para todas as crianças.

E levar em conta palavras como as da mexicana Bárbara Jacobs: "Reconhecer que não são intrínsecas, próprias, naturais ou sine qua non as desvantagens que sofro por ser mulher; por ser mulher e escritora; por ser mulher, escritora e mexicana no país dos machos por excelência; dos homens e escritores; dos homens escritores mexicanos me sensibilizei a reconhecer que não são intrínsecas, próprias, naturais ou sine qua non as desvantagens que sofrem os mexicanos, que apesar de ser homens nem tiveram as vantagens que eu tive apesar de ser mulher.
Alimentação, casa, trabalho, educação, acesso a tratamentos de saúde".

O cineasta Javier Corcuera reconhece que a integração entre os países não é real, mas começa a falar de algo: "Não há uma saída nacional para os problemas do continente, só saídas nas quais nos ajudemos uns aos outros.

Saídas continentais para problemas nacionais". E para que essas energias não diminuam Eduardo Galeano pede para "lutar contra a cultura da impotência, essa herança colonial que nos impede de voar com nossas próprias asas, e contra a ditadura do medo, que em nome do realismo nos impõe a resignação. E também lutar contra a terrível tradição que divorcia a palavra do ato".