Flash Gordon e a liberdade
Enviado: 07 Jun 2006, 15:33
EntreLivros
Flash Gordon e a liberdade
UMBERTO ECO
Art Spiegelman [artista gráfico sueco, naturalizado americano] se tornou famoso com a sua formidável série de quadrinhos Maus, na qual demonstrou que, com o formato, pode-se abordar o Holocausto com a força de uma grande saga. Enfim, eu o considero um gênio. Estava em minha casa, tomando um aperitivo comigo, quando lhe mostrei minha coleção de quadrinhos do tempo do onça, alguns originais já desgastados e algumas boas cópias anastáticas, e ele se espantou ao ver as capas dos velhos álbuns de Mandrake, Fantasma e Flash Gordon.
Se pegarem na mão uma boa história dos quadrinhos elaborada nos Estados Unidos decerto encontrarão ali uma menção ao Fantasma e companheiros, mas – mesmo visitando a internet – vê-se que as grandes releituras se dão notadamente em torno do Super-Homem e da liga de heróis como o Homem Aranha, e por aquelas bandas se atualizam Batman em chave pós-moderna. Tentem procurar Tim e Tom (série que, aliás, no original se chama Tim Tyler’s Luck): encontrarão inúmeras menções ao péssimo filme ou telefilme (assim como tinha se feito uma penosíssima série de Flash Gordon, agora objeto de culto trash), mas de suas tirinhas originais se fala muito pouco. É que, contava-me Spiegelman, parece que Fantasma, Mandrake e companhia são mais populares na Itália do que na terra deles. Perguntava-me o porquê, e eu lhe dei minha explicação, que, aliás, é a de uma testemunha histórica que os viu nascer e chegar às inverossímeis e solecistas traduções italianas, quase logo em seguida a seu aparecimento americano.
Era que, comparados aos quadrinhos do regime fascista, Flash Gordon vinha revelar à garotada italiana que era possível lutar pela liberdade do planeta Mongo contra um acirrado e sanguinário autocrata como Ming, que o Fantasma lutava não contra os negros mas com eles, para domar aventureiros brancos, que existia uma África imensa por onde vagava a Patrulha para prender os traficantes de marfim, que havia heróis que andavam por aí não de camisa negra, mas de fraque e com aquilo que Storace chamava de “tubo de tecido” na cabeça e tantas outras coisas, para terminar com a revelação da liberdade de imprensa por meio das aventuras de Mickey Mouse jornalista. Pois é, naqueles anos obscuros as tirinhas americanas ensinaram- nos algo e marcaram nossa vida, mesmo a vida adulta. O ano de 1934 foi um grande ano para os quadrinhos. A primeira aventura de Flash Gordon apareceu em 1934, desenhada por Alex Raymond.
Duas semanas depois, do mesmo autor, o Agente Secreto X-9 (com texto de Dashiell Hammett!). Logo depois, sai na Itália L’avventuroso, com a primeira aventura de Gordon, exceto que o herói não é apresentado como jogador de pólo (excessivamente burguês), mas como comandante de polícia. Em junho daquele ano, entra em cena Mandrake, de Lee Falk e Phil Davis, e em agosto Li’l Abner, de Al Capp (na Itália chegaria somente no pós-guerra). Em setembro, Walt Disney marca a estréia do Pato Donald. Em outubro, lá está Terry and the pirates de Milton Caniff (que aqui na Itália estrearia timidamente nos anos seguintes). No mesmo ano, na França, nasce Le journal de Mickey, com as histórias de Mickey Mouse em francês. Digam-me se não foi um ano interessante para se sentir saudades.
Flash Gordon e a liberdade
UMBERTO ECO
Art Spiegelman [artista gráfico sueco, naturalizado americano] se tornou famoso com a sua formidável série de quadrinhos Maus, na qual demonstrou que, com o formato, pode-se abordar o Holocausto com a força de uma grande saga. Enfim, eu o considero um gênio. Estava em minha casa, tomando um aperitivo comigo, quando lhe mostrei minha coleção de quadrinhos do tempo do onça, alguns originais já desgastados e algumas boas cópias anastáticas, e ele se espantou ao ver as capas dos velhos álbuns de Mandrake, Fantasma e Flash Gordon.
Se pegarem na mão uma boa história dos quadrinhos elaborada nos Estados Unidos decerto encontrarão ali uma menção ao Fantasma e companheiros, mas – mesmo visitando a internet – vê-se que as grandes releituras se dão notadamente em torno do Super-Homem e da liga de heróis como o Homem Aranha, e por aquelas bandas se atualizam Batman em chave pós-moderna. Tentem procurar Tim e Tom (série que, aliás, no original se chama Tim Tyler’s Luck): encontrarão inúmeras menções ao péssimo filme ou telefilme (assim como tinha se feito uma penosíssima série de Flash Gordon, agora objeto de culto trash), mas de suas tirinhas originais se fala muito pouco. É que, contava-me Spiegelman, parece que Fantasma, Mandrake e companhia são mais populares na Itália do que na terra deles. Perguntava-me o porquê, e eu lhe dei minha explicação, que, aliás, é a de uma testemunha histórica que os viu nascer e chegar às inverossímeis e solecistas traduções italianas, quase logo em seguida a seu aparecimento americano.
Era que, comparados aos quadrinhos do regime fascista, Flash Gordon vinha revelar à garotada italiana que era possível lutar pela liberdade do planeta Mongo contra um acirrado e sanguinário autocrata como Ming, que o Fantasma lutava não contra os negros mas com eles, para domar aventureiros brancos, que existia uma África imensa por onde vagava a Patrulha para prender os traficantes de marfim, que havia heróis que andavam por aí não de camisa negra, mas de fraque e com aquilo que Storace chamava de “tubo de tecido” na cabeça e tantas outras coisas, para terminar com a revelação da liberdade de imprensa por meio das aventuras de Mickey Mouse jornalista. Pois é, naqueles anos obscuros as tirinhas americanas ensinaram- nos algo e marcaram nossa vida, mesmo a vida adulta. O ano de 1934 foi um grande ano para os quadrinhos. A primeira aventura de Flash Gordon apareceu em 1934, desenhada por Alex Raymond.
Duas semanas depois, do mesmo autor, o Agente Secreto X-9 (com texto de Dashiell Hammett!). Logo depois, sai na Itália L’avventuroso, com a primeira aventura de Gordon, exceto que o herói não é apresentado como jogador de pólo (excessivamente burguês), mas como comandante de polícia. Em junho daquele ano, entra em cena Mandrake, de Lee Falk e Phil Davis, e em agosto Li’l Abner, de Al Capp (na Itália chegaria somente no pós-guerra). Em setembro, Walt Disney marca a estréia do Pato Donald. Em outubro, lá está Terry and the pirates de Milton Caniff (que aqui na Itália estrearia timidamente nos anos seguintes). No mesmo ano, na França, nasce Le journal de Mickey, com as histórias de Mickey Mouse em francês. Digam-me se não foi um ano interessante para se sentir saudades.