Hum...
A Cura de Schopenhauer, de Irvin D. Yalom (tradução de Beatriz Horta; Ediouro; 336 páginas; 44,90 reais) – Psicoterapeuta e professor da Universidade Stanford, o americano Irvin Yalom fez sucesso com Quando Nietzsche Chorou, romance sobre o encontro fictício entre o filósofo Friedrich Nietzsche e o médico Josef Breuer, parceiro de Freud nos primórdios da psicanálise. No novo livro, o protagonista é um terapeuta que entra em crise ao descobrir-se com uma doença terminal. Ele reencontra um ex-paciente que tinha compulsão por sexo, e que não foi curado pela terapia. Para sua surpresa, o sujeito diz ter achado a cura na obra pessimista do filósofo alemão Arthur Schopenhauer.
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– Todo mundo tem uma vida sexual sombria – disse Tony. – Quem não tem? Talvez os machos estejam apenas sendo machos. Olha, passei um tempo na cadeia, só por exagerar um pouco, querendo que Lizzie me chupasse. Conheço muitos caras que fizeram pior e não sofreram nada, pensa no Schwarzenegger.
– Tony, você está sendo agressivo com as mulheres presentes ou pelo menos com essa que vos fala – disse Rebecca. – Mas não quero sair do assunto. Philip, continue, você ainda não contou.
– Primeiro – prosseguiu Philip, sem titubear – , em vez de criticar esse comportamento perverso, há duzentos anos Schopenhauer entendeu a realidade que estava por trás: a simples e enorme força do sexo. O sexo é nosso maior impulso (o de viver e se reproduzir), não pode ser reprimido. Não pode ser afastado com argumentos. Já falei como Schopenhauer observa que o sexo se infiltra em tudo. Vejam o escândalo dos padres católicos pedófilos, pensem em todas as áreas de atuação humana, todas as profissões, todas as culturas, todas as épocas. Perceber isso foi muito importante para mim, assim que conheci a obra de Schopenhauer: ele, uma das grandes inteligências do mundo fez com que, pela primeira vez na vida, eu me sentisse totalmente compreendido.
– Então? – perguntou Pam, que esteve calada.
– Então o quê? – devolveu Philip, sensivelmente nervoso, como sempre que Pam se dirigia a ele.
– O que mais? Foi só isso? Melhorou porque Schopenhauer lhe compreendeu?
Philip pareceu não entender a ironia de Pam e respondeu com calma e sinceridade. – Foi muito mais. Schopenhauer me fez ver que estamos condenados a girar sempre na roda da vontade: desejamos uma coisa, conseguimos, desfrutamos um instante de satisfação que logo passa a tédio e seguimos para o próximo "eu quero". O desejo não acaba, seria preciso pular da roda da vontade. Foi o que fez Schopenhauer e o que eu fiz.
– Pular da roda? O que quer dizer isso? – perguntou Pam.
– Quer dizer anular completamente a vontade. Aceitar que nossa natureza mais íntima é uma luta implacável, que esse sofrimento está em nós desde o começo, e que somos condenados por nossa própria natureza. Quer dizer que precisamos primeiro entender o nada essencial desse mundo de ilusão e depois procurar uma forma de negar a vontade. Como todos os grandes artistas, temos de procurar viver no mundo das idéias platônicas. Algumas pessoas fazem isso através da arte; outras, do ascetismo religioso. Schopenhauer fez evitando o mundo do desejo, comungando com os grandes pensadores e praticando a contemplação estética; tocava flauta uma ou duas horas por dia. Quer dizer que, além de atores, precisamos ser platéia. Precisamos admitir a força vital que existe na natureza e que se manifesta na vida de cada um e que acabará sendo recuperada quando a pessoa deixar de existir.
– É o modelo que sigo. Minha maior relação é com os grandes pensadores, que leio diariamente. Procuro não encher minha cabeça com coisas corriqueiras e pratico a contemplação jogando xadrez ou ouvindo música, também diariamente. Ao contrário de Schopenhauer, não tenho talento para tocar um instrumento.
Julius ficou encantado com o diálogo. Será que Philip não percebia o rancor de Pam? Nem tinha medo da raiva dela? E o que dizer da solução que ele encontrou para seu vício? Julius se encantou com aquilo e também achou graça. O comentário de Philip de que, ao ler Schopenhaur, sentiu-se compreendido pela primeira vez na vida, foi como um tapa na cara de Julius. "Será que eu não sou nada?", pensou. Trabalhei três anos com ele, tentei compreendê-lo e ter empatia por ele. Mas Julius não disse nada. Aos poucos, Philip mudava. Às vezes, é melhor guardar as coisas e voltar a elas na hora certa, um dia.
Semanas depois, o grupo tocou nesses assuntos por ele, na sessão que começou com Rebecca e Bonnie dizendo a Pam que ela havia mudado (para pior) desde que Philip chegou. Bonnie reclamou que Pam tinha perdido a gentileza, o afeto e a generosidade e, embora tivesse menos raiva dele que nas primeiras discussões, o ódio continuava, congelado de forma dura e implacável.
– Acho que Philip mudou muito nos últimos meses – constatou Rebecca. – Mas você é tão dura com ele quanto foi com seu ex-marido e com seu ex-amante. Quer odiar pelo resto da vida?
Outros observaram que Philip tinha sido gentil, respondeu a tudo o que Pam quis saber, mesmo quando foi muito irônica.
– Seja gentil, assim poderá manipular os outros, como se aquece a cera para depois usá-la – disse Pam.
– O quê? – perguntou Stuart. Outras pessoas também pareceram não entender o que ela disse.
– Estou só citando o guru de Philip. Esse é um dos conselhos de Schopenhauer e é também o que acho da gentileza de Philip. Nunca falei isso aqui, mas pensei em me especializar em Schopenhauer, desisti depois de estudar semanas a vida e a obra dele. Passei a desprezar tanto a pessoa que mudei de idéia.
– Então, você identifica Philip com Schopenhauer? – perguntou Bonnie.
– Identificar? Philip é Schopenhauer, uma alma gêmea, encarnação viva daquele maldito homem. Posso contar coisas da filosofia e da vida dele que gelará o sangue de vocês. E acho que Philip manipula as pessoas, ao invés de relatar. Digo mais: me arrepia pensar nele doutrinando outras pessoas com o mesmo ódio à vida que tinha Schopenhauer.
– Você não consegue ver Philip como é hoje? – perguntou Stuart. – Não é a mesma pessoa que você conheceu há quinze anos. O que houve entre vocês muda tudo, você não consegue esquecer nem perdoar.
– Você chama de fato, como se fosse uma cutícula de unha? É mais que um fato. Quanto a perdoar, não acha que há coisas que não se perdoam?
– Se você não consegue perdoar, não significa que as coisas não possam ser perdoadas – disse Philip numa voz emocionada, que não era comum nele. – Anos atrás, você e eu fizemos um contrato social de curta duração. Nós nos oferecemos excitação sexual e alívio. Cumpri minha parte. Garanti que você ficasse sexualmente satisfeita e não achei que tivesse outras obrigações. A verdade é que obtive algo e você também: alívio sexual. Não devo nada a você. Quando conversamos depois, avisei que a noite tinha sido agradável, mas eu não queria continuar o relacionamento. Podia ser mais claro?
– Não estou falando de clareza, estou falando de afeto, isto é, amor, caritas, preocupação com os outros.
– Você quer que eu tenha a mesma visão que você das coisas, que viva como você.
– Só queria que tivesse sofrido o que eu sofri.