de Marilena Chaui
Na maioria das culturas, a religião se apresenta como sistema explicativo geral, oferecendo causas e efeitos, relações entre seres, valores morais e também sustentação ao poder político. Nela se efetiva uma visão de mundo única, válida para toda a sociedade e fornecendo a seus membros uma comunidade de ação e de destino.
No caso da cultura ocidental, porém, a religião tornou-se apenas mais um sistema explicativo da realidade, entre outros. A ruptura com o mythos, efetuada pelo surgimento e desenvolvimento do logos, isto é, do pensamento racional, desfez o privilégio da religião como visão de mundo única. Filosofia e ciência elaboraram explicações cujos princípios são completamente diferentes dos da religião.
Vimos as principais características do pensamento filosófico e quando a Filosofia nasce na Grécia. Vimos também os traços que constituem o ideal científico. Diante dessas duas formas de conhecimento, o mito se apresenta como radicalmente distinto. Embora isso já tenha sido analisado anteriormente (veja-se sobretudo a Unidade 4, capítulos 5 e 6), vamos recapitular essa distinção:
● mythos – é uma fala, um relato ou uma narrativa, cujo tema principal é a origem (origem do mundo, dos homens, das técnicas, dos deuses, das relações entre homens e deuses, etc.);
● não se define pelo objeto da narrativa ou do relato, mas pelo modo como narra ou pelo modo como profere a mensagem, de sorte que qualquer tema e qualquer ser podem ser objeto de mito: tornam-se míticos ao se transformarem em valores e símbolos sagrados;
● tem como função resolver, num plano simbólico e imaginário, as antinomias, as tensões, os conflitos e as contradições da realidade social que não podem ser resolvidas ou solucionadas pela própria sociedade, criando, assim, uma segunda realidade, que explica a origem do problema e o resolve de modo que a realidade possa continuar com o problema sem ser destruída por ele. O mito cria uma compensação simbólica e imaginária para dificuldades, tensões e lutas reais tidas como insolúveis;
● consegue essa solução imaginária porque opera com a lógica invisível e subjacente à organização social. Ou seja, conflitos, tensões, lutas e antinomias não são visíveis e perceptíveis, mas invisíveis e imperceptíveis, comandando o funcionamento visível da organização social. O mito se refere a esse fundo invisível e tenso e o resolve imaginariamente para garantir a permanência da organização. Além de ser uma lógica da compensação, é uma lógica da conservação do social, instrumento para evitar a mudança e a desagregação do grupo. Em outras palavras, é elaborado para ocultar a experiência da História ou do tempo;
● não é apenas efeito das causas sociais, mas torna-se causa também, isto é, uma vez elaborado, passa a produzir efeitos sociais: instituições, comportamentos, sentimentos, etc. É uma ação social com efeitos sociais;
● ultrapassa as fronteiras da sociedade onde foi suscitado, pois sua explicação visa a exprimir estruturas universais do espírito humano e do mundo. Assim, por exemplo, os mitos teogônicos e cosmogônicos concernentes à proibição do incesto, embora referentes às necessidades internas de uma sociedade para a elaboração das leis de parentesco e do sistema de alianças, ressurge em todas as sociedades, exprimindo uma estrutura universal da Cultura;
● revela uma estrutura inconsciente da sociedade, de tal modo que é possível distinguir a estrutura inconsciente universal e as mensagens particulares que cada sociedade inventa para resolver as tensões e os conflitos ou contradições inconscientes. O mito conta uma história dramática, na qual a ordem do mundo (o reino mineral, vegetal, animal e humano) foi criada e constituída.
Os acontecimentos narrados exprimem, simultaneamente, uma estrutura geral do pensamento humano e uma solução parcial que uma sociedade determinada encontrou para o problema. Assim, a diferença homem-vegetal, homem-animal, homem-mulher, vida-morte, treva-luz é uma diferença que atormenta universalmente todas as culturas, mas cada uma delas possui uma narrativa mítica específica para responder a esse tormento;
● comparado ao discurso filosófico e científico, o discurso mítico opera, segundo Lévi-Strauss, pelo mecanismo do bricolage, isto é, assim como alguém junta pedaços e partes de objetos antigos para fazer um objeto novo, no qual se podem perceber as partes ou pedaços dos objetos anteriores, assim também o mythos constrói sua narrativa, não como o logos, elaborando de ponta a ponta seu objeto como algo específico, mas como um arranjo e uma construção com pedaços de narrativas já existentes.
O logos busca a coerência, construindo conceitualmente seu objeto, enquanto o mythos fabrica seu objeto pela reunião e composição de restos díspares e disparatados do mundo existente, dando-lhes unidade num novo sistema explicativo, no qual adquirem significado simbólico. O logos procura a unidade sob a diversidade e a multiplicidade; o mythos faz exatamente o oposto, isto é, procura a multiplicidade e a diversidade sob a unidade. É um pensamento empírico e concreto, e não um pensamento conceitual e abstrato;
● comparado ao discurso filosófico e científico, o mito se mostra uma operação lingüística oposta ao logos. Este purifica a linguagem dos elementos qualitativos e emotivos, busca retirar tanto quanto possível a ambigüidade dos termos que emprega, utilizando provas, demonstrações e argumentos racionais. O mito, ao contrário, opera por metaforização contínua, isto é, um mesmo significante (palavra ou conjunto de palavras) tenderá a possuir um número imenso de significações ou de sentidos.
O mito opera com a saturação do sentido, ou seja, um mesmo fato pode ser narrado de inúmeras maneiras diferentes, dependendo do que se queira enfatizar, e as coisas do mundo (minerais, vegetais, animais, humanos) podem receber inúmeros sentidos, conforme o lugar que ocupem na narrativa. Assim, a oposição vida-morte, homem-mulher, humano-animal, luz-treva, quente-frio, seco-úmido, bom-mau, justo-injusto, certo-errado, grande-pequeno, cru-cozido, pai-mãe, irmã-irmão, pai-filho, pai-filha, mãe-filho, mãe-filha, etc. serão oposições constantes e regulares em todos os mitos, mas os conteúdos que as exprimem são inumeráveis.
Ao instaurar a ruptura entre mythos e logos, a cultura ocidental provocou um acontecimento desconhecido em outras culturas: o conflito entre a fé e a razão, que se manifestou desde muito cedo. Já na Grécia antiga, as críticas de Heráclito, Pitágoras e Xenófanes à religião assinalavam a ruptura com ela. Mais tarde, Atenas forçou o filósofo Anaxágoras a fugir para evitar a condenação pública, acusado pelo tribunal ateniense de “inventar um novo deus”; Sócrates, julgado culpado de impiedade e de corrupção da juventude, foi condenado à morte.
Na Renascença, Giordano Bruno, que afirmara a imanência da Inteligência infinita ao mundo (“o Uno é forma e matéria, figura da Natureza inteira, operando de seu interior”, dizia ele), foi condenado à fogueira. Galileu, na época moderna, foi forçado a abjurar suas teses sobre o movimento solar, as manchas lunares e solares e o princípio da inércia, fundamento da mecânica clássica.
Nem sempre a Filosofia abandonou os temas da religião. Todavia, ocupou-se deles do ponto de vista do logos e não do mythos. Assim procedendo, despojou-os de sua condição de mistérios para transformá-los em conceitos e teorias. Para a alma religiosa, há um Deus; para a Filosofia, é preciso provar a existência da divindade. Para a alma piedosa, Deus é um ente perfeito, bom e misericordioso, mas justo, punindo os maus e recompensando os bons. Para a Filosofia, Deus é uma substância infinita, mas é preciso demonstrar que sua essência é constituída por um intelecto onisciente e uma vontade onipotente.
Para o crente, a espiritualidade divina não é incompatível com a esperança de poder ver Deus atuar materialmente sobre o mundo, realizando milagres; para a Filosofia, é preciso demonstrar a possibilidade de uma ação do espírito sobre a matéria e por que, sendo Deus onisciente, suspenderia a ordenação necessária do mundo, que Ele próprio estabeleceu, fazendo milagres.
Mais do que isso. Sendo Deus perfeito e infinito, que necessidade teria de criar um mundo material, finito e imperfeito? Como uma causa infinita produz um efeito finito? Mais ainda. Deus é eterno, portanto alheio ao tempo; mas o mundo não é eterno, pois foi criado por Deus e, nesse caso, como um ser eterno realiza uma ação temporal? Como falar em Deus antes do mundo e depois do mundo, se “antes” e “depois” são qualidades do tempo e não da eternidade?
Para o fiel, a alma é imortal e destinada a uma vida futura; para a Filosofia, cabe oferecer provas que demonstrem a imortalidade.
Os místicos experimentam a fusão plena no seio de Deus, sentem estar nele e nele viver. Para a Filosofia, não sentimos Deus, mas o conhecemos pela razão.
Essa peculiaridade da cultura ocidental afetou a própria religião. De fato, para competir com a Filosofia e suplantá-la, a religião precisou oferecer-se sob a forma de provas racionais, conceitos, teses, teorias. Tornou-se teologia, ciência sobre Deus. Transformou os textos da história sagrada em doutrina.
Todavia, certas crenças religiosas jamais poderão ser transformadas em teses e demonstrações racionais sem serem destruídas. Não há como provar racionalmente que Jeová falou a Moisés, no monte Sinai. Não há como provar racionalmente a virgindade de Maria, a encarnação do Filho de Deus, a Santíssima Trindade, a Eucaristia. São verdades da fé e, como tais, mistérios. Estes são verdades inquestionáveis, isto é, dogmas. Eis por que o apóstolo Paulo declarou que “a razão é um escândalo para a fé”.
Tomemos um exemplo do Antigo Testamento. Ali é narrado que, durante uma batalha, Josué fez o Sol parar, a fim de que, com o prolongamento do dia, pudesse vencer a guerra. Essa história sagrada pressupõe que o Sol se movimenta em torno da Terra e que esta permanece imóvel. Estando narrada no texto revelado pelo próprio Deus, a história de Josué não pode ser contestada.
A mesma teoria da mobilidade do Sol e imobilidade da Terra existia como tese filosófico-científica no pensamento de Aristóteles e, como tal, foi refutada pela ciência de Copérnico, Galileu e Kepler. Porém, se a estes era permitido refutar uma teoria filosófico-científica por meio de outra, não lhes era permitido negar a história de Josué. Eis por que, durante séculos, a Igreja considerou o heliocentrismo uma heresia, condenou-a e submeteu sábios, como Galileu, aos tribunais da Inquisição.
Um outro exemplo, agora vindo da biologia, vai na mesma direção: a teoria da evolução, de Darwin, que demonstra a origem do homem a partir de primatas. A Bíblia afirma que o homem foi criado diretamente por Deus, à sua imagem e semelhança, no sexto dia da criação. Sob essa perspectiva, a teoria darwiniana foi considerada heresia, condenada e, durante anos, não pôde ser ensinada nas escolas cristãs, tendo mesmo havido um caso, nos Estados Unidos, de um professor primário processado por um tribunal por ensiná-la.
Um exemplo, agora vindo do Novo Testamento, apresenta o mesmo problema. Historiadores, lingüistas e antropólogos fizeram estudos sobre as culturas de toda a região do Oriente Médio e do norte da África, nelas encontrando uma referência constante ao pão, ao vinho, ao cordeiro imolado e ao deus morto e ressuscitado. Eram culturas de uma sociedade agrária, com ritos de fertilidade da terra e dos animais, realizando cerimônias muito semelhantes às que seriam realizadas, depois, pela missa cristã. Desse ponto de vista, o ritual da missa pertence a uma tradição religiosa agrária, oriental e africana, muito anterior ao cristianismo. Essa descoberta científica, porém, contraria as verdades cristãs, na medida em que a missa é considerada liturgia que repete e rememora um conjunto único e novo de eventos relativos à vida, paixão e morte de Jesus.
Poderíamos prosseguir com os exemplos, mas não é necessário. O que queremos destacar aqui é a peculiaridade da relação que, na cultura ocidental, criadora da Filosofia e da ciência, se estabeleceu entre a razão e a fé. As dificuldades dessa relação ocuparam os medievais, modernos e nossos contemporâneos, parecendo insolúveis.
A religião acusa a Filosofia e a ciência de heresia e ateísmo, enquanto ambas acusam a religião de dogmatismo, atraso e intolerância.
Marilena Chauí escreveu:Mythos e logos
de Marilena Chaui
● mythos – é uma fala, um relato ou uma narrativa, cujo tema principal é a origem (origem do mundo, dos homens, das técnicas, dos deuses, das relações entre homens e deuses, etc.);
● tem como função resolver, num plano simbólico e imaginário, as antinomias, as tensões, os conflitos e as contradições da realidade social que não podem ser resolvidas ou solucionadas pela própria sociedade, criando, assim, uma segunda realidade, que explica a origem do problema e o resolve de modo que a realidade possa continuar com o problema sem ser destruída por ele. O mito cria uma compensação simbólica e imaginária para dificuldades, tensões e lutas reais tidas como insolúveis;
A principal função do mito é satisfazer a necessidade humana por respostas a certas questões fundamentais – de onde veio tudo? por que o mundo é assim? onde os homens se enquadram neste esquema?
Esta necessidade alimenta tanto o mito quanto o tal do logos, tanto a ciência quanto a religião.
Reduzir o significado da necessidade humana por respostas fundamentais à explicação de que o tudo é conseqüência da tentativa de solução dos conflitos e contradições da realidade social gira na órbita do pensamento marxista, que resume o universo humano à uma seqüência de eventos dirigida pelas necessidades materiais (econômicas) é tão primariamente simplista que estudiosos do futuro desenvolverão teses para explicar porque tais idéias foram tão apaixonadamente defendidas e difundidas por homens de saber dos séculos XX e XXI.
O mito não é uma compensação simbólica e imaginária para dificuldades, mas a SUPERAÇÃO simbólica e imaginária das dificuldades, o que não representa uma fuga, mas a abstração do problema.
Abstrair um problema é retira-lo da realidade física material e transporta-lo para uma realidade mental, onde o problema pode ser desmontado, analisado, entendido e finalmente então solucionado.
O mito representa a primeira etapa deste processo, uma etapa talvez primitiva, mas sem ele as etapas seguintes, logos, filosofia, ciência, teologia não seriam possíveis.
Marilena Chauí escreveu:O logos busca a coerência, construindo conceitualmente seu objeto, enquanto o mythos fabrica seu objeto pela reunião e composição de restos díspares e disparatados do mundo existente, dando-lhes unidade num novo sistema explicativo, no qual adquirem significado simbólico. O logos procura a unidade sob a diversidade e a multiplicidade; o mythos faz exatamente o oposto, isto é, procura a multiplicidade e a diversidade sob a unidade. É um pensamento empírico e concreto, e não um pensamento conceitual e abstrato;
Como uma dinâmica definida pela própria autora como sendo de criação de compensações imaginárias e simbólicas pode ser empírica e concreta e não conceitual e abstrata?
Marilena Chauí escreveu:● comparado ao discurso filosófico e científico, o mito se mostra uma operação lingüística oposta ao logos. Este purifica a linguagem dos elementos qualitativos e emotivos, busca retirar tanto quanto possível a ambigüidade dos termos que emprega, utilizando provas, demonstrações e argumentos racionais. O mito, ao contrário, opera por metaforização contínua, isto é, um mesmo significante (palavra ou conjunto de palavras) tenderá a possuir um número imenso de significações ou de sentidos.
Os significantes do mito não tendem a possuir um número imenso de significações, eles tendem a ADQUIRIR um número imenso de significações, já que em sua origem estes significantes deviam ser tão isento de ambigüidades quanto os significantes do logos.
O que não é explicado pela autora e ao não ser explicado invalida toda a sua tese é quando, como e por que os mitos surgem. Só reconhecemos um mito como tal séculos ou milênios depois de suas origens, que muitas vezes situam-se muito antes dos registros escritos que normalmente reproduzem o que a tradição oral recontou e retransmitiu.
Como responder à pergunta por que uma história contada por alguém foi recontada por milhares de anos e adquiriu importância cultural no processo, enquanto milhões de outras histórias não ultrapassam o tempo que as gerou?
Se comunicação é emissor, mensagem, meio e receptor, a explicação deve considerar que um ou mais destes quatro agentes tinham algo de excepcional, ao ponto de conferir à mensagem imortalidade.
Esta imortalidade do mito o torna algo mais relevante do que metaforização contínua ou outras classificações técnicas, o torna uma parte de nossa memória ancestral que sobreviveu, que nos liga ao modo de como nossos primitivos antepassados pensavam, uma coisa mais séria do que pode ser resumido em um artigo.
Marilena Chauí escreveu:Ao instaurar a ruptura entre mythos e logos, a cultura ocidental provocou um acontecimento desconhecido em outras culturas: o conflito entre a fé e a razão, que se manifestou desde muito cedo. Já na Grécia antiga, as críticas de Heráclito, Pitágoras e Xenófanes à religião assinalavam a ruptura com ela. Mais tarde, Atenas forçou o filósofo Anaxágoras a fugir para evitar a condenação pública, acusado pelo tribunal ateniense de “inventar um novo deus”; Sócrates, julgado culpado de impiedade e de corrupção da juventude, foi condenado à morte.
A execução do Sócrates tem muito pouco ou absolutamente nada a ver com o conflito entre fé e razão.
Um dado importantíssimo e surpreendentemente suprimido da maioria dos comentários sobre a execução de Sócrates é o posicionamento político reacionário do filósofo com relação a aristocracia Ateniense.
Atenas nos tempos de Sócrates vivia o esplendor de sua democracia clássica, que tanto admiramos, assim como admiramos Sócrates, logo tendemos a crer que Sócrates era um democrata.
A realidade é absolutamente o oposto. Sócrates (pela pena de Platão em “A República”) definiu a democracia como “o mais tirânico dos regimes”, enquanto defendia a aristocracia dos filósofos-reis como o regime ideal.
Esta questão política não pode ser ignorada quando se analisa a execução de Sócrates, que por sinal recebeu um processo e um julgamento perfeitamente legais, como descritos por Platão em “Apologia de Sócrates”.
Mais uma vez, reduzir todos os aspectos envolvidos na condenação do filósofo a um simples conflito entre fé e razão explica-se ou pela ignorância dos fatos (improvável no caso) ou pela desonestidade intelectual.
Marilena Chauí escreveu:Essa peculiaridade da cultura ocidental afetou a própria religião. De fato, para competir com a Filosofia e suplantá-la, a religião precisou oferecer-se sob a forma de provas racionais, conceitos, teses, teorias. Tornou-se teologia, ciência sobre Deus. Transformou os textos da história sagrada em doutrina.
Dizer que a teologia surgiu para competir com a filosofia e suplanta-la é outra afirmação que simplifica e distorce a história do conhecimento humano.
O conhecimento humano não surgiu ou se desenvolveu originalmente em estratos separados e especialistas – ciência, religião, arte, filosofia.
Os gregos formataram a filosofia, mas nela estava presente o estudo da música e a conceituação do belo que caracterizam a arte, e o pensamento sobre Deus, que caracteriza a teologia, assim como a observação da natureza, que é a ciência.
Aristóteles como filósofo era também teólogo e cientista.
Isto considerado num estrato tido como extremamente especialista do conhecimento que é a filosofia grega.
Fora destas designações específicas, tem-se que sobrepondo-se ao rótulo de filósofo, o conhecimento progrediu em torno dos chamados sábios, homens que olhavam as estrelas para descobrir os augúrios dos deuses e terminaram por descobrir e documentar os fundamentos da astronomia, tal como os alquimistas que buscavam a pedra filosofal são os pais da química moderna.
Marilena Chauí escreveu:A mesma teoria da mobilidade do Sol e imobilidade da Terra existia como tese filosófico-científica no pensamento de Aristóteles e, como tal, foi refutada pela ciência de Copérnico, Galileu e Kepler. Porém, se a estes era permitido refutar uma teoria filosófico-científica por meio de outra, não lhes era permitido negar a história de Josué. Eis por que, durante séculos, a Igreja considerou o heliocentrismo uma heresia, condenou-a e submeteu sábios, como Galileu, aos tribunais da Inquisição.
A repressão da Igreja à teoria heliocêntrica é com freqüência bastante exagerada. A condenação de Galileu não teve significado mais que simbólico. Num tempo em que a heresia era punida com a tortura e a morte, a exigência de uma simples retratação, seguida do retorno a vida normal – que incluía a continuação de suas práticas religiosas, já que Galileu era católico sinceramente devoto, demonstra que o Santo Ofício não via no cientista e em sua tese uma ameaça tão grande assim.
Ao contrário do que muitos acreditam, as pessoas cultas da época já tinham a idéia de que a Terra era redonda e para muitas a teoria heliocêntrica, demonstrada geometricamente por Kepler, era uma realidade matemática. Dentre estes homens cultos incluía-se necessariamente o alto clero católico.
A preocupação dos Inquisidores era sobre como tal teoria poderia ser tomada entre a população inculta e analfabeta, que incapaz de ver um plano divino na demonstração das órbitas elípticas, poderia reagir à notícia de que a Terra não era o centro do universo com a perda da fé na igreja.
Neste contexto, não é difícil concluir que a mensagem dada pela igreja a Galileu era bem simples – A Igreja não tem nada contra sua teoria, desde que a mantenha nos salões dos sábios e longe do povo ignorante, seja discreto.
Marilena Chauí escreveu:Um outro exemplo, agora vindo da biologia, vai na mesma direção: a teoria da evolução, de Darwin, que demonstra a origem do homem a partir de primatas. A Bíblia afirma que o homem foi criado diretamente por Deus, à sua imagem e semelhança, no sexto dia da criação. Sob essa perspectiva, a teoria darwiniana foi considerada heresia, condenada e, durante anos, não pôde ser ensinada nas escolas cristãs, tendo mesmo havido um caso, nos Estados Unidos, de um professor primário processado por um tribunal por ensiná-la.
Há que se estabelecer a diferença entre cristianismo e fundamentalismo cristão.
O catolicismo romano, religião formatada sobre uma consistente teologia, declara não ver incompatibilidade entre a teoria da evolução e a doutrina católica, observando apenas algumas restrições a aspectos particulares do darwinismo.
Para a Santa Sé, pouco importa como se desenvolveu o corpo do homem, a igreja defende que sua alma foi criada por Deus.
Já para os fundamentalistas, cujas crenças são baseadas numa teologia primária e mantidas por apelos emocionais, a evolução deve ser permanentemente negada, pois seus dogmas são frágeis demais para resistir à confrontação com a realidade científica.
Marilena Chauí escreveu: Um exemplo, agora vindo do Novo Testamento, apresenta o mesmo problema. Historiadores, lingüistas e antropólogos fizeram estudos sobre as culturas de toda a região do Oriente Médio e do norte da África, nelas encontrando uma referência constante ao pão, ao vinho, ao cordeiro imolado e ao deus morto e ressuscitado. Eram culturas de uma sociedade agrária, com ritos de fertilidade da terra e dos animais, realizando cerimônias muito semelhantes às que seriam realizadas, depois, pela missa cristã. Desse ponto de vista, o ritual da missa pertence a uma tradição religiosa agrária, oriental e africana, muito anterior ao cristianismo. Essa descoberta científica, porém, contraria as verdades cristãs, na medida em que a missa é considerada liturgia que repete e rememora um conjunto único e novo de eventos relativos à vida, paixão e morte de Jesus.
A missa é o resumo litúrgico da crença católica. O pão, o vinho e o cordeiro são alguns dentre os milhares de signos que o ritual opera, alguns tão sofisticados em seus significados ocultos que são absolutamente desconhecidos da maioria dos fiéis, mesmo os mais devotos.
A liturgia eucarística, fundamentada no dogma da transubstanciação e da presença real de Cristo na comunhão, embora utilize elementos que na forma tem características sincréticas com rituais pagãos, no conteúdo é um ritual único, de profunda complexidade e significado teológico que não podem ser equiparados aos ritos pagãos com os quais mantém alguma semelhança.
Uma forma de visualizar esta complexidade é perguntar como e porque os católicos acreditam que estão comendo carne e sangue humanos ao receberem a hóstia e como e porque esta ceia antropófagos os aproxima de Deus.
As respostas não são simples e pouquíssimos católicos saberiam responder.
Marilena Chauí escreveu:Poderíamos prosseguir com os exemplos, mas não é necessário. O que queremos destacar aqui é a peculiaridade da relação que, na cultura ocidental, criadora da Filosofia e da ciência, se estabeleceu entre a razão e a fé. As dificuldades dessa relação ocuparam os medievais, modernos e nossos contemporâneos, parecendo insolúveis.
A religião acusa a Filosofia e a ciência de heresia e ateísmo, enquanto ambas acusam a religião de dogmatismo, atraso e intolerância.
No passado ciência, filosofia e fé caminharam juntas. Os grandes cientistas eram também filósofos e teólogos.
Hoje cada ramo tomou seu rumo e o grande sábio não existe mais.
Pena.
Mas não há porque ter o antagonismo como regra, a ciência tem o seu lugar consolidado e uma missão definida na grande jornada humana. Não precisa acusar ninguém.
Mantida longe do estado e operando no âmbito exclusivo da fé, a religião também pode cumprir o papel que lhe cabe e que só ela pode fazer.
A autora parece negar propositalmente estas possibilidades, mais uma vez, a ideologia, e não a filosofia, formatam os pensamentos de Marilena Chauí.