Apostasia
Enviado: 20 Jun 2006, 04:48
obrigado
Apostasia no Islam
Por Mohamed O-Muktar O-Shinqiti
Tradução do Espanhol: Giuliano Morais
Faz oitenta anos que Marmaduke Pickthall, erudito britânico do Islã e tradutor do Corão, escreveu: "As nações ocidentais recém se fizeram mais tolerantes uma vez que abandonaram sua lei religiosa, e os muçulmanos diminuíram sua tolerância somente ao afastar-se de sua lei religiosa."
A tolerância foi desligada da religião no mundo cristão, mas forma parte essencial do Islã, apesar de que já não é atribuída aos muçulmanos.
Na atualidade, quanto mais "religiosos" se consideram alguns muçulmanos, menos tolerantes se mostram. A causa é uma inquietante decadência intelectual na civilização islâmica.
Embora os muçulmanos se queixem da falta ocidental de compreensão do Islã, esta má interpretação de textos religiosos prevalece infelizmente na mente muçulmana da atualidade.
A conversão ao cristianismo de Abdulrahman, o afegão que foi perdoado da pena capital depois de muita pressão ocidental, e suas repercussões, ilustram esta confusão.
Do ponto de vista dos textos e princípios islâmicos, todo o processo foi estúpido, sendo ou não doente mental o apóstata afegão.
Se tivesse existido um castigo mundano para a apostasia no Islã, Muhammad teria sido o primeiro em aplicá-lo.
Matar a uma pessoa por sua decisão intelectual contradiz a essência dos princípios islâmicos de liberdade de fé e culto, sublinhados repetidamente no Corão e na prática do Profeta Muhammad, a paz seja com ele.
Não há coação na religião
O abandono da própria fé islâmica é um pecado grave. É uma flagrante violação da aliança individual com Deus, mas não viola, de maneira nenhuma, a lei islâmica.
O Corão condena repetidamente aos que trocam sua fé islâmica, e lhes adverte de um castigo severo no Último Dia.
Mas o Corão nunca especificou uma pena mundana para a apostasia. Por isso, se um muçulmano deseja trocar sua fé, que assim seja. A crença emana por definição do coração do indivíduo. O Islã existe para crentes valorosos, não para temerosos hipócritas.
O Corão é inequívoco em que a fé é um assunto de eleição e convicção pessoais, por isso não terá que utilizar um poder compulsivo para obrigar às pessoas a adotar uma crença determinada ou impedir que troque sua fé.
Um dos fenômenos mais lamentáveis na cultura islâmica atual é a falta de distinção entre a moralidade e a legalidade.
O Corão diz:
"Que não haja compulsão na religião: a verdade se destaca claramente da falsidade". (2:256);
"Diz (Ò Muhammad): Esta é a verdade do Senhor de todos. Logo, quem desejar, deixem que creia, e quem desejar , que não creia." (18:29).
Além disso, foi dito a Muhammad no Corão que sua missão é a de ensinar e pregar, não a de impor ou obrigar:
"Recorde-lhes, porque é só um recordador. Não é alguém que coage" (88:21-22);
"Não é aquele que intimida pela força. Assim admoesta com o Corão a aqueles que temem Minha Advertência!" (50:45).
Seguindo esta guia corânica, Muhammad nunca castigou a alguém por abandono do Islã, embora alguns de seus contemporâneos renunciaram repetidamente a sua fé, como registra a condenação corânica daqueles que acreditaram e depois rejeitaram a fé, depois voltaram a acreditar, e depois rejeitaram de novo a fé, e seguiram aumentando sua descrença… (4:137).
É óbvio que Muhammad não queria castigar a ninguém por sua eleição espiritual e intelectual.
Se tivesse havido um castigo mundano da apostasia no Islã, Muhammad teria sido o primeiro em aplicá-lo. Mas sabia que Deus não lhe tinha dado uma autoridade semelhante.
Em conseqüência, o julgamento sobre os assuntos da fé deveria ser deixado em mãos de Deus no Dia do Julgamento Final.
Moralidade contra legalidade
Julgar uma conduta humana específica em termos como correto ou errôneo é algo relativamente direto e fácil. Mas para ser amplos e práticos temos que ir mais longe e determinar se essa conduta deve ser categorizada como ilegal ou imoral.
Esta distinção é muito importante uma vez que as pessoas ou as instituições decidem reagir ante algo que consideram errôneo. Uma ação pode ser legal mas imoral, ou vice-versa.
Na Sharia (ensinamentos islâmicos) existe uma clara distinção entre a moralidade e a legalidade: quase todos os ensinamentos islâmicos caem na categoria da moralidade.
É a responsabilidade de cada crente individual que observe esta moralidade em sua vida pessoal - é uma responsabilidade diante de Deus, não diante das pessoas. Não se deve utilizar nenhum meio coercitivo para impor a moral islâmica.
Isto se deve a que qualquer coerção semelhante terá conseqüências negativas: corromperá a consciência moral do indivíduo transformando-o de um crente consciente de Deus para ser hipócrita atemorizado pelo Estado.
O Islã quer que o indivíduo seja um servidor de Deus, não um escravo do Estado. No Islã, todos os assuntos de fé e quase todos os que têm a ver com condutas e preferências pessoais são de natureza moral - não legal.
Só perto de um por cento dos ensinos islâmicos caem na categoria da legalidade. Esta categoria é um conjunto de leis (leis de família, leis civis, leis penais, etc.) que devem ser impostas por um governo islâmico legítimo que exerce a autoridade do Estado.
Só ações que prejudicam os outros ou que representam um dano potencial formam parte desta categoria.
Isto inclui o castigo pelo assassinato de pessoas inocentes ou a tomada de sua propriedade.
Geralmente se aceita, nas leis divinas e laicas, que a responsabilidade primitiva dos governos é proteger as vidas e as posses das pessoas.
Infelizmente, numerosos muçulmanos, incluindo alguns "eruditos" auto-proclamados, não distinguem claramente, hoje em dia, entre a moralidade e a legalidade, uma distinção bem compreendida por todo estudante aplicado de direito.
O Islã quer que o indivíduo seja um servidor de Deus, não um escravo do Estado.
Esta confusão intelectual permite que alguns governos muçulmanos misturem as convicções pessoais e as preferências de seus cidadãos, enquanto afirmam que aplicam a lei de Deus.
Ao fazê-lo, só encobrem sua ilegitimidade e irresponsabilidade ao infringir os direitos dos indivíduos, e entram em temas que no Islã não caem em sua área de jurisdição.
Traição contra apostasia
Pode aparecer uma pergunta: Se o Corão afirma explicitamente a liberdade de fé, por que existe toda esta controvérsia sobre a morte de apostatas? É uma boa pergunta.
O problema começa com a má interpretação de uns poucos hadizes (ditos do Profeta Muhammad) que sugerem a pena capital como castigo pela apostasia.
Entretanto, o que o Profeta quis dizer com esses hadizes não tem nada a ver com decisões intelectuais relacionadas com a fé, mas sim com a traição política e a rebelião militar dentro da comunidade, que preocupava Muhammad como parte de sua responsabilidade política.
A fonte desta confusão é que o termo "apostasia" (riddah em árabe) foi utilizado nas escrituras islâmicas com dois significados diferentes: o primeiro era a apostasia privada, que é uma decisão intelectual que não é castigada no Islã. Tudo o que se pede aos muçulmanos diante de uma pessoa que decide renunciar a sua fé é que lhe recorde a aliança sagrada com seu criador (Deus), e lhe aconselhe a que se arrependa.
O outro uso do termo se relaciona com a apostasia político-militar, que inclui a rebelião violenta contra a paz social da comunidade e sua direção legítima.
Toda pessoa considerada culpada desse crime é punível sob a lei islâmica, a menos que se arrependa e se entregue antes de ser capturada pelas autoridades. Este tipo de apostasia equivale ao que chamamos atualmente de "alta traição".
A traição à própria sociedade, mediante atos de "alta traição" e rebelião militar contra sua paz e harmonia, é punível sob todas as leis divinas e laicas. A lei islâmica não constitui uma exceção a respeito.
Existem numerosos políticos traidores e dirigentes tribais no Afeganistão atual que merecem ser castigados por alta traição segundo a lei islâmica.
Alguns deles se encontram agora entre os dirigentes "respeitados" do novo Afeganistão. Abdulrahman não é evidentemente um deles.
*
Mohamed O-Muktar O-Shinqiti é um erudito muçulmano da Mauritania, que vive nos EUA.
-
Este artigo está no seu original em espanhol no endereço: http://www.webislam.com/?idt=4770